SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.45 número2InconscienteCondenados à interpretação: Kafka e os sentidos do mundo índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.45 no.2 São Paulo abr./jun. 2011

 

47º CONGRESSO DA IPA - MÉXICO PAINÉIS PRINCIPAIS
COMENTÁRIO

 

Inconsciente ou inconscientes?

 

Unconscious: one or several?

 

¿Inconsciente o inconscientes?

 

 

Ruggero Levy

Membro efetivo da Sociedade Psicanalítica de Porto Alegre SPPA

Correspondência

 

 


RESUMO

O autor inicia seu texto com uma contextualização da evolução do conceito de inconsciente na teoria psicanalítica, destacando que houve uma ampliação da metapsicologia freudiana, principalmente a partir das contribuições de Klein e de Bion. Propõe que as contribuições de Bion inauguram um modelo teórico que prevê zonas mentalizadas e não mentalizadas em que o inconsciente se organiza de modo diverso. Ao final, estabelece um diálogo imaginário com quatro autores convidados pela IPA a produzirem textos sobre o tema do inconsciente.

Palavras-chave: inconsciente; evolução do conceito de inconsciente; ampliação da metapsicologia psicanalítica.


ABSTRACT

The author begins the text by counterclaiming the evolution of the concept of the unconscious in psychoanalytic theory, pointing out that there was a gradual expansion of Freudian metapsychology, specially with the contributions of Klein and Bion. He suggests that Bion's contributions inaugurate a theoretic model which caters for mentalized and non-mentalized zones in which the unconscious organizes itself in different ways. He ends by establishing an imaginary dialogue between four authors invited by the IPA to produce texts based on the theme of the unconscious.

Keywords: Unconscious; evolution of the concept of the unconscious; expansion of psychoanalytic metapsychology.


RESUMEN

El autor comienza su texto con una conceptualización de la evolución del concepto del inconsciente en la teoría psicoanalítica, destacando que hubo una extensión de la metapsicología freudiana, principalmente a partir de las contribuciones de Klein y Bion. Propone que las contribuciones de Bion inauguraron un modelo teórico que prevé zonas mentalizadas y no mentalizadas en las que el inconsciente se organiza de manera diferente. Por último, se establece un diálogo imaginario con cuatro autores invitados por la API para producir textos sobre el tema del inconsciente.

Palabras-clave: inconsciente; evolución del concepto de inconsciente; ampliación de la metapsicología psicoanalítica.


 

 

Introdução

Tomo como ponto de partida os quatro textos sobre o tema produzidos por colegas de diversas latitudes, o Dr. Werner Bohleber (Alemanha), Dr. Giuseppe Civitarese (Itália), Dr. Jorge Luis Maldonado (Argentina) e Dr. Miguel Kolteniuk Krause (México). A pergunta enviada a todos como estímulo à escrita de seus textos foi: Qual é a sua teoria a respeito dos processos inconscientes? Com que outras teorias você compararia sua conceituação? Evidentemente que são perguntas de difícil resposta. Entretanto, convidam o autor a expor suas ideias e "debatê-las" com algum interlocutor imaginário. Foi-me solicitado que por este artigo eu fosse o debatedor.1

 

Uma rápida contextualização

Neste tópico pretendo expor a minha visão do contexto em que se situa a discussão sobre o inconsciente, hoje, para depois lançar questões e estabelecer um "debate" com os quatro colegas acima mencionados.

O conceito de inconsciente é a pedra angular da psicanálise. Todas as correntes psicanalíticas baseiam suas teorias nessa noção fundamental e buscam aprimorar a sua descrição e também suas técnicas no sentido de apreendê-lo e, se possível, promover transformações que o ampliem por meio do desenvolvimento das formas simbólicas. Entretanto, como veremos, ele é conceituado de inúmeras formas, nos diferentes modelos psicanalíticos, podendo levar ao que Amatti Meller chamou de babelização da psicanálise (apud Calich, 2003).

Entretanto, ao discutir-se um conceito tão central como o inconsciente, penso ser importante contextualizar suas modificações a partir da compreensão da evolução da metapsicologia psicanalítica.

A metapsicologia freudiana estudou o inconsciente a partir das quatro dimensões metapsicológicas clássicas: a genética, a dinâmica, a topográfica e a econômica. Ou seja, para entender as bases inconscientes de um evento psíquico deve-se contemplar o estudo de sua gênese, de sua dinâmica, sua topografia e sua economia. Para isso, como todos sabem, Freud criou basicamente dois modelos de mente: o da primeira e o da segunda tópica. Na primeira tópica, o modelo da mente era constituído pelo inconsciente, o pré-consciente e o consciente. Na segunda tópica, passou a considerar a existência do id, ego e superego.

Na primeira tópica, Freud considerava que o inconsciente era fundamentalmente constituído por representações criadas a partir de estímulos somáticos e marcas mnêmicas de experiências de satisfação das necessidades. Sobre a representação dessas experiências primitivas de satisfação irá constituir-se o desejo sexual que buscará incessantemente a sua satisfação. O desejo, então, é essencialmente uma moção psíquica (Laplanche, 1982) que dará o sentido da busca objetal (Kristeva, 1993) e da fantasia inconsciente. A força dinâmica da pulsão, transformada em desejo, irá em busca do objeto original jamais reencontrado. Assim, articula-se o corporal e o psíquico. Entretanto, esse modelo de mente não incluía as pulsões. Segundo Green (1990, 1993, 2000), na primeira tópica considera-se que os estímulos somáticos chegam à mente já como representante psíquico da pulsão. Ou seja, esse inconsciente é basicamente um inconsciente de representações.

Na segunda tópica, Freud, por meio do conceito de id, cria um espaço para as pulsões serem incluídas no novo modelo de mente. O id é o reservatório das pulsões e das heranças filogenéticas. Este inconsciente arcaico, primitivo, mergulhado no soma, é pré-representacional. O ego, por sua vez, abrigará as primeiras representações inconscientes do id em sua porção mais profunda. Tanto no primeiro, como no segundo modelo, Freud sempre procurou compreender e descrever minuciosamente as quatro dimensões metapsicológicas acima mencionadas.

Meltzer (1984) acredita que Klein e Bion realizaram acréscimos à metapsicologia freudiana, afirmação com a qual estou inteiramente de acordo. Como já vimos, Freud definiu as quatro dimensões metapsicológicas clássicas do inconsciente: a genética, a dinâmica, a econômica e a topográfica. Klein acresceu o ponto de vista geográfico, sem o qual hoje, é difícil avaliar um fenômeno psíquico inconsciente e que altera de modo substancial a visão topográfica, bem como gera repercussões sobre o modo como se compreenderá o processo psicanalítico. No modelo kleiniano o território da mente se amplia para além dos limites do próprio sujeito, basicamente por meio de sua criação absolutamente revolucionária do conceito de identificação projetiva. Pelo estudo da cisão e da identificação projetiva passa-se a entender que o inconsciente do sujeito pode habitar o objeto e vice-versa. É verdade, como bem afirma Marucco (2003) que Freud lançou as bases da compreensão dessa divisão vertical da mente em seu estudo sobre "O fetichismo" (1927/1974a). Até ali, a mente era compreendida em suas divisões horizontais, criadas pelo mecanismo da repressão. A cisão divide a mente verticalmente. Mas é verdade também, que foi Klein quem ampliou o estudo das consequências do mecanismo de cisão. O inconsciente de Klein é diferente do de Freud, não só na sua espacialidade, mas também no seu conteúdo. À medida que essa autora produz suas contribuições já no âmbito da segunda tópica freudiana, ela conceitua um ego operando inconscientemente mecanismos de defesa nas profundezas do psiquismo. O "inconsciente kleiniano", então, se organiza por meio das fantasias inconscientes que são postas em cena no mundo interno por intermédio de imagos, objetos internos, sentidos pelo sujeito como personagens quase concretos.

Bion e Meltzer ampliaram o estudo da geografia dos espaços mentais clarificando como se comunicam, em que situações e as consequências para o crescimento mental ou para a psicopatologia. Bion (1962a e 1962b), por exemplo, conceitua que o bebê, por meio de uma identificação projetiva com finalidades comunicativas, coloca dentro da mãe suas angústias e que esta com sua capacidade de rêverie as acolhe, as transforma em elementos alfa e, assim, permite que esses elementos transformados sejam reintrojetados com algum sentido. Ao fazer isso, Bion está supondo que um elemento psíquico do bebê, a angústia, foi transformado no espaço psíquico da mãe e reintrojetado com acréscimo de significado. Como o autor inglês considera que apenas os elementos alfa é que podem ser armazenados e ligados entre si, depreende-se que esses primeiros elementos transformados na mente da mãe, fundam o inconsciente do bebê. Os primeiros elementos alfa são as primeiras simbolizações fundantes do inconsciente, de acordo com Bion. Dentro desse referencial poder-se-ia dizer que houve a transformação de um elemento protomental em um elemento mental, ou uma angústia livre em angústia ligada a uma representação, no modelo freudiano. Reitere-se que foi uma transformação ocorrida no interior da mente da mãe. Logo, se quisermos, podemos dizer que, no plano intrapsíquico, houve uma alteração topográfica, intermediada pelo espaço psíquico do objeto. Mas retornaremos posteriormente a esse aspecto.

Meltzer (1992) ampliou muito o estudo da geografia dos espaços mentais, detalhando não só o interior dos objetos externos, mas especialmente o interior dos objetos internos. Estudou particularmente a maneira como se concebe o interior da mãe internalizada, seus compartimentos e as consequências para o psiquismo da intrusão nesses espaços. Nesse sentido, penso que ele modifica a visão da topografia dos espaços mentais, cria novas formas, novos modelos para visualizarmos os objetos internos e novos sítios para localizar os fenômenos mentais e suas repercussões sobre a visão que o sujeito terá do mundo.

Embora não citado por Meltzer, Winnicott (1951) com seus estudos seminais sobre o espaço potencial insere-se no contexto da ampliação da geografia dos espaços mentais, conceituando que além de compreender os fenômenos inconscientes que ocorrem no sujeito, ou no objeto, há que entender o que se passa entre eles, no espaço intermediário.

Bion, ainda de acordo com Meltzer (1984), acrescentou outra dimensão metapsicológica, além de Klein, que foi a epistemológica. Ou seja, para entender integralmente um fenômeno psíquico não bastará apenas ver a sua dinâmica, gênese, economia, topografia, geografia, mas também o que ele significa em relação ao conhecimento: ele busca agregar conhecimento, falsear conhecimento, destruir o conhecimento já adquirido? Ou se preferirmos, ele é K, -K ou não K?

Além de inserir uma nova dimensão metapsicológica, Bion visava criar uma meta-teoria que englobasse as diversas teorias psicanalíticas (1962a, 1962b e 1965). Ele visava criar uma teoria da mente que incluísse "as várias teorias psicanalíticas" (1962a), mas que fosse além. Que descrevesse a criação das primeiras simbolizações fundantes do inconsciente, seu desenvolvimento, bem como o desenvolvimento da própria mente, do aparelho de pensar. Neste sentido, criou o conceito de função alfa entendida como uma função onírica (Meltzer, 1984) da mente, operante diuturnamente, por meio da qual a mente vai se autogerando. O inconsciente seria ampliado e expandido por intermédio dessa função acionada pelas experiências emocionais. Esse conceito revolucionou a teoria psicanalítica, pois inverteu algumas concepções: o inconsciente é gerado pelo sonho, pela capacidade de sonhar, e não o sonho é gerado pelo inconsciente.

Mas, para o tema que estamos tratando, o inconsciente, creio importante ressaltar duas outras contribuições de Bion à psicanálise contemporânea. Primeiro, no âmbito do negativo Bion estudou e descreveu as falhas e os ataques aos processos simbólicos (1957, 1959, 1962b e 1965) e ao pensamento que geram áreas de negatividade na trama simbólica, além de propor uma técnica de abordagem destes problemas. Ao fazer isso, Bion inclui em seu modelo de mente a ação da pulsão de morte efetuando desligamentos na mente que impedem o pensar. Bion diz explicitamente que para não perceber uma realidade dolorosa é expulso da mente aquilo-que-liga, deixando claro que o processo de ligação fica comprometido. Entretanto, ao descrever esses ataques a conteúdos e funções da mente - outro aspecto original de sua teoria - descreveu duas zonas de funcionamento mental totalmente diversas: a parte psicótica e não psicótica da personalidade (1957). Em suas descrições vemos que concebe o inconsciente se estruturando de modo totalmente diverso nessas duas "zonas" da mente: na neurótica, um inconsciente estruturado a partir da repressão e com as características descritas por Freud; na parte psicótica, um inconsciente onde a identificação projetiva é o mecanismo predominante, juntamente com a cisão, o que leva a um empobrecimento da mente pela expulsão de simbolizações que produzem uma dor psíquica insuportável, ou até de funções da mente responsáveis pela percepção de realidades insuportáveis, internas ou externas ao self.

Estou colocando em destaque as contribuições de Bion, pois me parece que ele inaugura o que Calich (2003) chamou de uma nova"onda evolutiva" nas teorizações sobre o inconsciente, qual seja, a tentativa de organizar em sistemas teóricos, zonas mentalizadas e não mentalizadas. Este modelo de inconsciente ampliou os modelos clássicos, à medida que inclui zonas que vão além do sistema inconsciente descrito por Freud e pela psicanálise clássica, o inconsciente das representações, formado e mantido pela repressão, redundando nas neuroses classicamente estudadas. O modelo bioniano visa também estudar o destino, a dinâmica e a topografia de não simbolizações, dessimbolizações e ataques à própria função simbólica e tornou-se uma contribuição fundamental para dar conta da clínica contemporânea em que a prevalência de casos limite com insuficiências simbólicas aumentou significativamente (Botella, 2002; Marucco, 2003; Levy, 2005).

Green (1990, 1993, 2000) e Botella (2002) também fizeram grandes contribuições neste sentido. Mas, um autor contemporâneo que eu gostaria de colocar em destaque, latino-americano, criou um sistema teórico a respeito do inconsciente que inclui diversas zonas de "inconscientização" (Marucco, 2003). Norberto Marucco descreve cinco zonas de inconsciente diferentes, num esforço notável para propor um sistema teórico do inconsciente que contemple as suas várias formas de estruturação.

Marucco propõe as cinco zonas psíquicas a partir do que considera os cinco pilares freudianos: o sonho, o narcisismo, a pulsão de morte, as identificações e o fetichismo. Sugere ainda que estas zonas não constituem topografias estanques, mas modos de funcionamento mental que podem ocorrer em separado, simultaneamente ou se superporem. Outro aspecto importante é que o autor considera que a posição e a intervenção do analista variarão frente à manifestação do inconsciente oriundo de cada uma destas zonas.

A zona do sonho seria o inconsciente sexual e significante, formado por representações e cuja pulsionalidade é dada pela pulsão sexual afetada pela repressão. É o inconsciente reprimido. Aqui a interpretação clássica visaria o desvelamento do desejo, do inconsciente sexual reprimido, consequência da associação livre e atenção flutuante.

A zona do narcisismo teria sido inaugurada pelo genial artigo de Freud (1914/1974b) "Sobre o narcisismo: uma introdução". Marucco (2003) considera que Freud introduz "outra" psicanálise: a problemática do ego na teoria. Demonstra a função do objeto na teoria, pela importância de seu papel na criação do Ideal. Cria uma zona narcisista inconscientizada que arremeda a história do desejo dos outros. Forma-se uma estrutura idealizadora que pode ser refúgio face ao poder do objeto ou fonte de outras patologias quando esse poder fica projetado sobre algum objeto que será a fonte do poder (adições, depressões, fenômenos de massa etc.). Marucco considera que quando esta estrutura idealizada e idealizadora se instala na transferência, gerando uma transferência erótica, aditiva, o analista poderá desmontar o poderio desta idealização através de interpretações e construções.

A zona da pulsão de morte conduz ao "ego e o id" e ao conceito de compulsão à repetição. O id contém o inconsciente dinâmico, mas é algo mais. Ele contém a pulsão de vida e a de morte. Assim, o campo psicanalítico passará a incluir a história dos significantes, mas também a dos traumas, redefinido a partir de 1920, segundo Marucco (2003). A patologia não é mais apenas a do desejo, mas também a do trauma, recuperado em 1920. O autor descreve, então, três planos de repetição: a repetição do complexo de Édipo, com o inconsciente reprimido e sexual; a repetição do "narcisismo ferido" que está "além do princípio do prazer", além do desejo; a repetição de vivências do tempo primitivo e que não estão ligadas a representações de palavra, são ingovernáveis, e esperam por representação na análise. É o conceito de pulsão de morte que explica a repetição destas marcas ingovernáveis, incapazes de ligação com o processo secundário. "Seria o ponto de expressão dos traumas pré-verbais, da violência do objeto no alvorecer do psiquismo" (Marucco, 2003, p. 459). Somente a força da representação pode deter os desígnios ingovernáveis destas marcas. O analista deverá refinar sua "escuta" da repetição e do silêncio e transitar pela via de porre. A aposta libidinal do analista e sua contratransferência são fundamentais para dar ligação a este elemento traumático ingovernável. A tarefa do analista aqui seria transformar "um destino" numa neurose.

A zona das identificações expressa a dialética entre a pulsão e o objeto, sendo que o inconsciente da identificação retorna na conduta, nos atos, no caráter.

Marucco (2003) descreve ainda outra zona de inconscientização inaugurada em 1927 pelo trabalho sobre o Fetichismo. Segundo o autor argentino, esta contribuição de Freud inaugura uma nova tópica freudiana porque implica a aparição de uma nova defesa chave, a desmentida e um efeito fundamental, a cisão do ego. É uma nova modalidade de estruturação do ego a partir da verleugnung. A desmentida passará a ter um papel fundamental na organização do psiquismo. Ou seja, frente à ameaça de castração, uma parte do ego, reconhecendo a existência da castração, reprimirá o Édipo. "Mas outra parte do ego desmentirá a castração e, ao fazê-lo, conformará um inconsciente não reprimido e produto da desmentida" (p. 461). A partir dessas ideias, com originalidade, Marucco defende o conceito de fetiche virtual que seria o que garantiria a sobrevida da pulsão (e da fantasia), pois implica no reconhecimento estrutural da castração que afasta do objeto primário, mas mesmo assim o deseja, através de outro objeto que conserva algo do objeto original incestuoso. Se não houvesse esta certa desmentida da castração, seria a morte da pulsão. Marucco considera que o analista deverá sustentar o fetiche virtual, pois se a dobradiça desliza para o lado da aceitação da castração, desalojando a área da desmentida, isso conduziria à desaparecimento da pulsão sexual e à idealização do objeto; mas se deslizasse para o lado da desmentida desalojando a castração, teríamos a perversão. O analista deverá inclusive, segundo o autor, recriar o fetiche virtual no sentido da ambiguidade necessária na análise. Toda a análise que reconhece demais a realidade provoca um cerceamento da pulsão.

Independentemente se concordamos ou não com o autor, fiz questão de colocá-lo em evidência para ilustrar o desafio da psicanálise contemporânea de criar um sistema teórico do inconsciente que dê conta da clínica atual e dos avanços da psicanálise. Uma clínica onde encontramos um espectro de pacientes que vai desde a apresentação clássica do conflito neurótico entre representações até - e cada vez mais - os casos-limite em que as dificuldades de representação conduzem às patologias expressas na conduta e no corpo. O analista contemporâneo deverá estar equipado teórica e tecnicamente para lidar com estas situações onde as emoções aparecem em estado bruto, evacuadas (Bion, 1962a) no somático ou ainda na conduta, carentes de inserção no sistema de representação. Emoções impensáveis que se inscrevem no protomental e que não chegam a ser inconscientes, no sentido de serem inseridas na trama de representações inconscientes. Presentificam-se permanentemente por meio de emoções brutas, protoemoções informes a invadir permanentemente a vida do sujeito (Levy, 2005).

Evidentemente outros autores contemporâneos trouxeram contribuições originais ao estudo do inconsciente e que mereceriam ser citados. Como já referi, André Green, Sara e Cesar Botella, seriam indispensáveis, mas também Jean Laplanche (1985, 1988, 1997, 2003). Este último traz contribuições inéditas e totalmente originais quanto à formação, organização e manifestação do inconsciente colocando em evidência o papel do outro, do estrangeiro. Faz uma verdadeira revolução copernicana ao considerar que é a partir das mensagens enigmáticas do Outro que se organiza o inconsciente do sujeito. Coloca no centro da dinâmica da mente o papel do outro, do estrangeiro. A começar com o estrangeiro dentro da mente, aquilo que é estranho, misterioso e precisa ser decifrado que é o inconsciente. Seria, para Laplanche, o outro psíquico. Mas esse estrangeiro dentro do sujeito seria colocado por outro estrangeiro, externo. Então, para Laplanche, o outro em sua estrangeiridade envia mensagens enigmáticas ao sujeito, verbais e não verbais, que ele, desde bebê, precisa aprender a ordenar e "traduzir" para assimilar em seu próprio sistema. É como se o adulto fizesse um sinal à criança, desde o seu próprio inconsciente que precisa ser decifrado e traduzido. Esta intervenção do outro adulto com seu inconsciente sexual é universal e vai além de uma circunstância específica. Por isso esse autor construiu a teoria da sedução generalizada. Mas, infelizmente não poderia entrar neste debate por uma questão de espaço. Entretanto, quis apenas ilustrar outra teoria, totalmente diferente e original, de um autor psicanalítico respeitável, a respeito da gênese e organização do inconsciente. O que denota a complexidade e a profundidade deste tema, requerendo que o seu debate seja feito de modo profundo e com rigor conceitual.

 

Um debate imaginário com meus quatro interlocutores

Quatro autores comentando a mesma pergunta: Qual é a sua teoria a respeito dos processos inconscientes? Com que outras teorias você compararia sua conceituação?

Em minha opinião, Civitarese - concorde-se ou não com o seu vértice teórico - é o único que responde à questão de qual é a sua ideia de processos inconscientes no marco de um modelo metapsicológico de mente. Desde um vértice bioniano, expõe como acredita que o inconsciente é criado, como se organiza, a partir de que funções e como se expande. Além do mais, contrapõe o seu modelo teórico de inconsciente ao modelo freudiano, afirmando que de seu ponto de vista o sonho não é apenas o "guardião do sono". E mais, destaca que em Freud o inconsciente cria o sonho, enquanto que em Bion é o sonho que cria o inconsciente, por meio da função alfa operante diuturnamente. Ou seja, de modo consistente e articulado expõe e explora o seu conceito de inconsciente.

Bohleber, apesar de referir-se ao pluralismo da psicanálise quanto ao conceito de inconsciente, não chega a contextualizar este pluralismo dentro de um marco de análise nem histórico, nem epistemológico, nem metapsicológico. Simplesmente destaca o pluralismo. Faz menção ao conceito de teorias implícitas (Canestri et al., 2006; Tuckett, 2008), mas não chega a enunciar qual seria a sua. No item três, em que Bohleber iria apresentar o que seria a sua teoria implícita de inconsciente, apresenta uma síntese relativamente simplificada de três modelos espaciais de inconsciente, sem contextualizá-los no ambiente epistemológico da psicanálise. A seguir, enuncia alguns processos inconscientes como, por exemplo, a comunicação inconsciente sem, no entanto, ordená-las num sistema teórico organizado e nem organizá-las em seu marco metapsicológico. Ao ingressar no terreno clínico, coloca em destaque o conceito de enactment e passa a fazer uma discussão do inconsciente a partir dos acontecimentos da clínica e não de um aprofundamento metapsicológico como mereceria a abordagem de um conceito tão complexo. Seu texto não se estrutura ao longo de um eixo coerente que organize sua conceituação. Vai simplesmente elencando situações clínicas onde o inconsciente se manifesta e tecendo comentários a respeito.

Miguel K. Krause, do México, inicia fazendo uma distinção interessante entre os vários "inconscientes" no aparelho psíquico descrito por Freud, por exemplo, e os vários conceitos de inconsciente derivados das múltiplas teorias psicanalíticas. Inclusive questiona se estes vários conceitos de inconsciente se refeririam ao mesmo "inconsciente". Acredita que não e que cada escola psicanalítica vai introduzindo suas variações semânticas ao conceito de inconsciente para adaptá-lo às suas necessidades de coerência interna de modo que, pouco a pouco, vá se desenhando um leque de dispersão crescente. Responsabiliza Freud por esta multiplicidade de significados do termo "inconsciente". Ressalta que a partir de 1923 em "O ego e o id", quando transforma o conceito de inconsciente de "sistema" a "qualidade psíquica", dá início a essa multiplicidade de acepções do termo inconsciente. A partir daí, Krause lança uma série de questões sobre a similaridade ou diferença de inúmeros processos psíquicos de qualidade inconsciente. Como funcionam as "qualidades inconscientes" do id, ego e superego? O quão "inconscientes" são as relações objetais? E assim por diante, sem, entretanto responder a estas questões, talvez pela questão de espaço. Acredito, no entanto, que Marucco (2003) em sua proposta teórica responde às muitas das questões levantadas por Krause, inclusive a sua própria ideia de elucidar as ramificações da psicanálise contemporânea a partir do movimento de revisitar a primeira tópica freudiana.

Jorge Luis Maldonado explicita a sua compreensão do que seriam os processos inconscientes a partir da relação analítica, o que me parece interessante. Entretanto, refere-se apenas ao inconsciente dinâmico, classicamente descrito como contendo as representações de desejos inconscientes a serem desveladas na relação analítica por meio da interpretação. "Sua teoria do inconsciente" não alberga as falhas representacionais, por exemplo, as situações traumáticas não simbolizadas. É difícil imaginar que um analista contemporâneo que não tenha que deparar-se em sua clínica com pacientes com insuficiências de simbolização em que as interpretações não tenham que ir além do representado. Talvez também por um problema de espaço, ao confrontar sua conceitualização de inconsciente com outras, restringe-se apenas à distinção com o inconsciente descritivo das neurociências. Deixa de lado outras conceituações do inconsciente da própria psicanálise que diferem do inconsciente dinâmico tal como foi descrito por Freud, como já foi ilustrado na introdução.

A não ser em Civitarese, senti falta, nos outros debatedores do tema, que suas ideias sobre os processos inconscientes estivessem inseridas num corpo teórico mais consistente e ancoradas na metapsicologia.

 

Comentários finais

Este tipo de debate sobre os conceitos essenciais da psicanálise é fundamental. É louvável que tanto a IPA quanto a Revista Brasileira de Psicanálise dediquem-se a ele, pois ao mesmo tempo em que os conceitos de base constituem o terreno comum das múltiplas teorias psicanalíticas (common ground), podem levar a uma "babelização", como já foi dito no início. Caso não possamos explicitar metapsicologicamente a que nos referimos quando falamos em inconsciente, sexualidade ou sonhos, corremos o risco de chegar a uma grande confusão de línguas (Ferenczi, 1932/1992). Temos que ter consciência das diversas "línguas" que falamos na psicanálise para não acharmos que a "nossa língua" é a língua oficial e a que melhor expressa o que é, por exemplo, o inconsciente. Inevitavelmente o progresso da teoria psicanalítica passa pela ampliação e modificação conceitual. Entretanto, é preciso que cada uma destas contribuições esteja fundamentada na metapsicologia.

Alguns exemplos: Bion (1957, 1959, 1962a, 1962b, 1965) cria uma nova conceitua-ção a respeito da "parte psicótica" da personalidade em que o inconsciente se organiza de modo distinto da "parte neurótica", com uma atividade pulsional diversa, mecanismos de defesa distintos e simbolizações de qualidade diferenciadas. Mas faz questão de salientar que na parte neurótica a organização do inconsciente é aquela que Freud descreveu a partir da atividade do mecanismo de repressão. Ou seja, discrimina o que está acrescentando, o que está preservando e qual é a metapsicologia de sua contribuição, ou seja, qual é a sua gênese, sua dinâmica, sua economia e sua topografia.

Laplanche (1988) chega a propor "novos fundamentos" para psicanálise que podem ser discutíveis, mas em nenhum momento perde a precisão conceitual a partir de seu "diálogo com Freud". Ao contrário, com uma precisão admirável extrai o máximo dos conceitos freudianos e propõe as suas contribuições originais.

O futuro da psicanálise depende disso: da pluralidade, da divergência, mas acima de tudo, da precisão conceitual no debate para que saibamos o que estamos dizendo e o que o outro, na sua estrangeiridade (Laplanche, 1997), está afirmando. Mas para isso, é claro que precisamos ter a disposição de nos escutarmos genuinamente.

 

Referências

Botella, C. e S. (2002). Irrepresentável: mais além da representação. Porto Alegre: Sociedade de Psicologia: Criação humana.         [ Links ]

Bion, W. (1957). Diferenciação entre a personalidade psicótica e não-psicótica In W. Bion, Estudos psicanalíticos revisados (pp. 45-62). Rio de Janeiro: Imago.         [ Links ]

Bion, W. (1959). Ataques ao elo de ligação. In W. Bion, Estudos psicanalíticos revisados (pp. 87-100). Rio de Janeiro: Imago.         [ Links ]

Bion, W. (1962a). Aprendiendo de la experiência. México: Paidós.         [ Links ]

Bion, W. (1962b). Uma teoria sobre o processo de pensar. In W. Bion, Estudos psicanalíticos revisados. Rio de Janeiro: Imago.         [ Links ]

Bion, W. (1965). Transformações: do aprendizado ao crescimento. Rio de Janeiro: Imago.         [ Links ]

Calich, J. C. (2003). O inconsciente e suas tensões atuais. Revista de Psicanálise da SPPA, 10(3),391-402,         [ Links ]

Canestri, J.; Bohleber, W.; Denis, P.; Fonagy, P. (2006). The map od private (implicit, preconscious) theories in clinical practice. In J. Canestri (Ed.), Psychoanalysis: from Practice to Theory (pp. 29-43). Chichester: Whurr.         [ Links ]

Freud, S. (1974a). O fetichismo. In S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (Vol. 21, 179-185). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1927)        [ Links ]

Freud, S. (1974b). Sobre o narcisismo: uma introdução. In S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (Vol. 14, 89-119). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1914)        [ Links ]

Ferenczi, S. (1992). Confusão de língua entre os adultos e a criança. In S. Ferenczi, Obras completas (Vol. 4, pp. 97-106). São Paulo: Martins Fontes. (Trabalho original publicado em 1932)        [ Links ]

Green, A. (1990). Conferências brasileiras de André Green - Metapsicologia dos limites. Rio de Janeiro: Imago.         [ Links ]

Green, A. (1993). O trabalho do negativo. Porto Alegre: Artmed.         [ Links ]

Green, A. (2000). A mente primordial e o trabalho do negativo. Livro anual de psicanálise, 14, 133-148.         [ Links ] Kristeva, J. (1993). As novas doenças da alma. Rio de Janeiro: Rocco.         [ Links ]

Laplanche, J. (1982). Vocabulário de Psicanálise. (Laplanche e Pontalis, sob a direção de Daniel Lagache). São Paulo: Martins Fontes.         [ Links ]

Laplanche, J. (1985). A ordem vital e a gênese da sexualidade humana. In J. Laplanche, Vida e morte em psicanálise. Porto Alegre: Artes Médicas.         [ Links ]

Laplanche, J. (1988). Fundamentos: rumo à teoria da sedução generalizada. In J. Laplanche, Novos Fundamentos para a Psicanálise. São Paulo: Martins Fontes.         [ Links ]

Laplanche, J. (1997). A teoria da sedução e o problema do outro. Livro Anual de Psicanálise, 13, 139-151.         [ Links ]

Laplanche, J. (2003). Três acepções da palavra "inconsciente" no quadro da Teoria da Sedução Generalizada. Revista de Psicanálise da SPPA, 10(3),403-418.         [ Links ]

Levy, R. (2005). Trauma e não-simbolização no campo analítico. Apresentado no 44º Congresso da IPA, Rio de Janeiro.         [ Links ]

Meltzer, D. (1984). Símbolo, signo, epítome e quintaessencia. In D. Meltzer, Vida onírica. Madrid: Tecnipublicaciones.         [ Links ]

Meltzer, D. (1992). The Claustrum - An Investigation of Clautrophobic Phenomena. London: The Clunie Press for The Roland Harris Trust Library.         [ Links ]

Marucco, N. C. (2003). O analisando de hoje e o inconsciente (sobre o conceito de zonas psíquicas). Revista de Psicanálise da SPPA, 10(3),453-473.         [ Links ]

Tuckett, D. et al. (2008). Psychoanalysis Comparable and Incomparable: The evolution of a method to describe and compare psychoanalytic approaches. London: Routledge.         [ Links ]

Winnicott, D.W. (1951). Objetos transicionais e fenômenos transicionais. In D.W. Winnicott, O Brincar e a Realidade. Rio de Janeiro: Imago.         [ Links ]

 

 

Correspondência:
Ruggero Levy
[Sociedade Psicanalítica de Porto Alegre SPPA]
Rua Carvalho Monteiro, 234/501
90470-100 Porto Alegre, RS
Tel: 51 3332-9009
ruggerol@terra.com.br

Recebido em 2/5/2011
Aceito em 31/5/2011

 

 

1 Agradeço à Revista Brasileira de Psicanálise a oportunidade de participar de debate tão fundamental quanto este sobre o conceito de Inconsciente, hoje.