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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.45 no.2 São Paulo abr./jun. 2011

 

INTERFACE

 

Condenados à interpretação: Kafka e os sentidos do mundo

 

Condemned to interpretation: Kafka and the meanings of the world

 

Condenado a la interpretación. Kafka y los sentidos del mundo

 

 

Jorge de Almeida

Doutor em filosofia e professor de teoria literária e literatura comparada da Universidade de São Paulo USP. Tradutor e crítico literário, é autor de Crítica dialética em Theodor Adorno (Ateliê, 2007) e diversos ensaios sobre literatura, música e filosofia

Correspondência

 

 


RESUMO

As diversas interpretações da obra de Franz Kafka, contemporâneo de Freud, têm de enfrentar um tema que marca o nascimento da modernidade: a incapacidade de dar um sentido completo a si mesmo e ao mundo. Partindo de uma leitura do conto "Os que passam por nós correndo", nosso ensaio pretende demonstrar como narradores, personagens e leitores de Kafka compartilham o mesmo destino: estão condenados à interpretação. Isso os aproximaria da prática psicanalítica, que também não pode confiar em métodos gerais organizados a priori, nem pressupor a existência de um sentido anterior ao próprio ato da interpretação.

Palavras-chave: interpretação; Franz Kafka; sentido; realismo; psicanálise, alegoria


ABSTRACT

The various interpretations of the works of Franz Kafka, a contemporary of Freud, have to face a theme that marks the birth of modernity: the inability to give a full meaning to oneself and the world. Based on an analysis of the short story "Those who pass us running", our essay seeks to show how the narrators, characters and readers of Kafka share the same fate: they are condemned to interpretation. That would bring them closer to the psychoanalytical practice, which also cannot rely on generic methods organized in advance, nor assume the existence of a meaning prior to the act of interpretation itself.

Keywords: interpretation; Franz Kafka; meaning; realism; psychoanalysis; allegory.


RESUMEN

Las diversas interpretaciones de las obras de Franz Kafka, un contemporáneo de Freud, se enfrentan a un tema que marca el nacimiento de la modernidad: la incapacidad de dar un sentido pleno de sí mismo y del mundo. De la lectura del cuento "Los que nos pasan corriendo", nuestro ensayo busca establecer como narradores, a personajes y lectores de Kafka que comparten el mismo destino: están condenados a la interpretación. Eso los aproxima de la práctica del psicoanálisis, que también no puede basarse en métodos generales organizados a priori, ni suponer la existencia de un sentido antes del acto mismo de la interpretación.

Palabras clave: interpretación; Franz Kafka; sentido; realismo; psicoanálisis, alegoría.


 

 

- Mas você vai passar a noite conosco - disse Olga admirada.

- Sim, sem dúvida - disse K., deixando que ela interpretasse como quisesse as suas palavras.

(Franz Kafka, O castelo)

A imagem de alguém condenado à interpretação pode parecer estranha, uma extravagância literária, uma fantasia digna de Borges. A ambiguidade da sentença já antecipa alguns dos dilemas da situação: condenado a interpretar ou a ser interpretado? Essa alternativa, como sabem os bons escritores, e também os psicanalistas, é uma ilusão. Dar sentido a algo envolve, desde o início, uma dupla pressuposição, que enreda tanto o sujeito quanto o objeto numa contradição inequívoca: deve haver um sentido, alcançável ou reconstruído pelo esforço do discernimento e da imaginação; mas, ao mesmo tempo, esse sentido pressuposto, por alguma razão que também merece ser interpretada, não é de modo algum evidente, convive com outros sentidos possíveis e por vezes não se deixa apreender.

Sem entrar nos meandros da complexa teoria da interpretação, podemos notar que o ato interpretativo depende, em grande medida, de uma crença na possibilidade de configurar e expor esse sentido latente ou presumido. Não por acaso a exegese bíblica, modelo inicial das considerações hermenêuticas, tinha de acreditar na "palavra" de Deus, mesmo que Ele tenha escolhido, em sua onipotência, não mais dirigir sua palavra diretamente aos homens, como ainda fazia no tempo de Abraão. No caso dos deuses gregos, os enigmas de um mundo completamente organizado pelo destino serviam principalmente para testar a astúcia dos homens e heróis. Em vez de interpretar os oráculos e desafios, cabia decifrá-los, mesmo que sua correta compreensão em nada afetasse o sentido das coisas, já garantido desde sempre. Toda a narrativa ocidental, como lembra Erich Auerbach, nasce do entrelaçamento desses dois grandes modelos opostos, o Antigo Testamento e a epopeia homérica.

No entanto, essa infância da interpretação, em que o sentido estava assegurado pelos céus, não sobrevive à dinâmica de sua própria história. O homem moderno já não pode ler "no céu estrelado o mapa dos caminhos transitáveis e a serem transitados, e cujos rumos a luz das estrelas ilumina" (Lukács, 2000, p. 25), nem contar com a clemência divina para assegurar os sentidos que ele próprio deve criar e interpretar. O principal indício dessa novidade, que acompanha a consolidação do indivíduo e da subjetividade moderna, é o romance. Épica da era burguesa, a literatura gerada pela ruptura com os modelos da Antiguidade Clássica é um esforço de configurar o sentido da vida de um indivíduo que enfrenta a si mesmo e ao mundo, sem poder mais se apoiar no que deixou de ser assegurado pelo ciclo homogêneo da tradição e da comunidade. Nesse processo de exposição e identificação com um igual (não com um herói ou um santo) a literatura a partir do século xviii exige a participação ativa de seus leitores na criação do sentido, denunciando a falsa universalidade e certeza das ideias e formas tradicionais, que, como uma segunda natureza, ainda regiam as relações sociais e a vida privada.

Tudo isso muda, entretanto, na passagem do século XIX ao XX, quando uma nova situação social e novos esforços de interpretação do mundo (literários, artísticos, filosóficos, sociais e agora também psicanalíticos) colocam em questão a própria confiança na capacidade de se alcançar ou atribuir de forma satisfatória um sentido às obras de arte, aos objetos e às manifestações da consciência e dos desejos. Nessa encruzilhada, nome grego para crise, a necessidade de interpretação volta-se sobre si mesmo, e tanto a ciência quanto a crítica saem em busca de métodos e procedimentos supostamente seguros e adequados. Esse esforço, que os positivistas levaram ao extremo, pode ser lido a contrapelo como mais um sintoma da perda de referências gerais de sentido, diagnosticada de forma diferente por weberianos (como resultado da progressiva autonomização das esferas de valor e racionalização do mundo da vida), marxistas (consequência final da alienação do processo de trabalho e da expansão irrestrita do fetichismo da mercadoria, no contexto do capitalismo industrial), e românticos conservadores (culpa gerada pelo abandono dos laços ancestrais com a comunidade, a natureza e os mitos). O debate se confunde com o nascimento do mundo moderno, em cuja crise perene a ideia de interpretação se sustenta apenas quando não se sente mais em casa.

Para além desse conturbado embate teórico, que não cabe aqui destrinchar, encontramos nas próprias obras de arte do Modernismo as melhores expressões desse sentimento de desterro, fruto paradoxal da mesma tomada de consciência que gerou a psicanálise: de alguma forma, o sentido escapa à própria subjetividade, justamente por depender dela, agora até mesmo de modo inconsciente. Não é pela mera exposição artística de traumas e fantasias individuais que a literatura moderna se aproxima da psicanálise, mas pela consciência de um problema: é preciso interpretar, estamos condenados a isso, mas nesse processo somos privados de qualquer certeza, não por uma eventual falha de método, mas porque o objeto que temos diante de nós não possui mais um sentido inequívoco, garantido por uma instância externa, como Deus ou a harmonia do universo. Muito pelo contrário, ele apenas se constitui como objeto quando exposto e submetido à interpretação, quando permeado pela subjetividade do ato da atribuição de um sentido possível, que lhe garante a existência, ainda que efêmera.

Ao configurar essa necessidade de sentido na própria forma, criticando a suposta objetividade dos conteúdos do mundo, um contemporâneo de Freud, o escritor Franz Kafka, redefiniu em suas narrativas os sentidos da interpretação, condenando os leitores a seguir atentamente seus temas e personagens, que vagam por mundos no qual todos estão irremediavelmente perdidos, mesmo que ainda não saibam disso. Vale a pena, portanto, enfrentar os dilemas da interpretação tomando como exemplo esse caso limite, pois os contos e romances de Kafka denunciam a fragilidade de qualquer busca por um sentido, ao mesmo tempo em que acompanham a tentativa desesperada, por parte dos personagens e dos próprios leitores, de buscar uma interpretação coerente e, no duplo sentido da palavra, "satisfatória".

A palavra alemã Deutung é normalmente traduzida por "interpretação" na maioria das línguas latinas. Uma interpretação correta de seu significado (Bedeutung, em alemão), mas que deixa escapar algo importante, pois o verbo "deuten" ressalta a capacidade de "dar sentido" aos objetos, e não de retirar e expor este sentido; para isso os alemães possuem outro termo: Auslegung, que pode ser traduzido como... interpretação. Sem abusar das etimologias, vale a pena lembrar o termo usado por Kafka como título do primeiro livro que publicou, em 1912: Betrachtung. Modesto Carone o traduz por "Contemplação", sem antes remeter o leitor a uma importante nota: "A escolha do termo contemplação (que deriva de templo) para traduzir Betrachtung, e não 'meditação', por exemplo, leva em conta o fato de que, para Kafka, a atenção dada ao objeto é uma forma leiga de oração" (Carone, 1999). Aquilo que foi objeto de atenção (Achtung) coincide com a própria atenção dada ao objeto. A relação entre ele e o sujeito não é mais imediata, e tanto Kafka quanto Proust percebem isso, quando configuram em narrativas quase líricas suas "buscas" pelo sentido do presente e do passado.

Os vários contos desse livro de Kafka podem ser lidos como uma sequência organizada de pequenas narrativas, que se aproximam, pela precisão e vigor expressivo, de um conjunto bem alinhavado de poemas em prosa. A contemplação do leitor, reduplicando as contemplações do narrador, acaba esboçando um sentido geral do todo, marcado justamente pelo tema da impossibilidade de se alcançar esse sentido. Para tornar mais concreta e visível essa consideração, vamos tentar apreender o movimento geral dessa obra de Kafka a partir de considerações sobre uma narrativa específica, cujo título original, Die Vorüberlaufenden (Os que passam por nós correndo), já antecipa, na sobreposição dos prefixos e no gerúndio do verbo substantivado, algo do movimento que afeta tanto a ação do conto quanto o que se passa na mente do narrador, e que se reflete na busca de significado por parte de cada leitor atento, mesmo quando tenha tomado algum vinho.

 

Os que passam por nós correndo.

Quando se vai passear à noite por uma rua e um homem já visível de longe - pois a rua sobe à nossa frente e faz lua cheia - corre em nossa direção, nós não vamos agarrá-lo mesmo que ele seja fraco e esfarrapado, mesmo que alguém corra atrás dele gritando, mas vamos deixar que continue correndo.

Pois é noite e não podemos fazer nada se a rua se eleva à nossa frente na lua cheia e além disso talvez esses dois tenham organizado a perseguição para se divertir, talvez ambos persigam um terceiro, talvez o primeiro seja perseguido inocentemente, talvez o segundo queira matar e nós nos tornássemos cúmplices do crime, talvez os dois não saibam nada um do outro e cada um só corra por conta própria para sua cama, talvez sejam sonâmbulos, talvez o primeiro esteja armado. E finalmente - não temos o direito de estar cansados, não bebemos tanto vinho? Estamos contentes por não ver mais nem o segundo homem. (Kafka, 1999, p. 27)

É importante notar a divisão do texto em três parágrafos, pois ela estrutura uma sequência precisa, não apenas no tempo das ações e reflexões do narrador em primeira pessoa, mas também no espaço, acompanhando passo a passo, sem que seja necessária qualquer descrição, o trajeto dos dois personagens que correm do alto da rua até sumirem de vista. A sequência das primeiras palavras de cada parágrafo ("Quando se" - "Pois" - "E finalmente") aproxima o texto da clareza protocolar de uma explanação lógica, que será justamente abalada pelas incertezas do narrador. A primeira frase começa com uma proposital ambiguidade, pois o "quando se", também em alemão, exprime tanto uma localização precisa quanto uma possibilidade sugerida. Logo passamos do impessoal "se" para um "nós" difuso, que domina o texto e impõe ao leitor uma desejada cumplicidade. Afinal, a rua sobe à nossa frente e faz lua cheia, nada lá fora impede que este "nós" veja claramente a situação, e opte por alguma ação adequada. Então, de onde vem a obscuridade, a incapacidade de interpretar o que está acontecendo, que atrasa e impossibilita qualquer ação? O vinho do parágrafo final, como veremos, é outra boa desculpa.

Quando se começa a ler o texto, um homem, "já visível de longe" corre em "nossa direção", seguido por outro desconhecido. De um ponto a outro, muito há de se passar, concomitantemente à passagem desses dois homens por este "nós". O texto, entretanto, não foca apenas a ação narrativa, mas sim um problema: a suposta necessidade de ação, assumida pelo narrador e compartilhada pelo leitor, que acaba encadeada por angustiados "mesmo que", que adicionam novas informações e se acumulam no limite das possibilidades, quase como uma descrição realista do que está ocorrendo. Apesar disso, não há nenhum suspense ou curva dramática, o resultado já é conhecido desde a primeira frase: "vamos deixar que continue correndo".

Pois é noite, e no segundo parágrafo o narrador encadeia, depois de assumir novamente que "não podemos fazer nada", uma sequência de "talvez", que vai da diversão à ameaça. As frases oscilam, mesclando termos que expressam uma possível violência (perseguição, inocência, cúmplice, crime, matar, arma) com outros que sugerem a naturalidade cotidiana do episódio (organizar, divertir, não saber de nada, ir para a cama). Cada interpretação poderia levar a uma ação que traria graves consequências, principalmente para o narrador, literalmente paralisado em meio às suas conjecturas. Além disso, a lua cheia ilumina a cena, o que torna ainda mais contundente a incapacidade de determinar qualquer sentido para o que está se vendo. O leitor segue o mesmo caminho, ou seja, esboça alternativas de sentido e ação, mas também termina paralisado.

E finalmente o parágrafo de conclusão interrompe de modo brusco o fluxo dos pensamentos, apenas para marcar uma continuidade no fluxo da ação, pois os dois homens a essa altura já estão fora do alcance das mãos, mas não da vista. Por isso a atenção, quase uma desculpa, volta-se sobre o próprio narrador, que evoca o vinho e o cansaço como álibi: "não temos o direito?". Mas o leitor percebe que a pergunta não convence ninguém: "Estamos contentes por não ver mais nem o segundo homem". Na frase em alemão, o verbo colocado no final (Wir sind froh, daß wir auch den zweiten nicht mehr sehn) ressalta a sequência dos eventos, com a passagem ao mesmo tempo rápida e lenta do primeiro homem, e logo em seguida daquele que o segue ou persegue, quando ambos se perdem na escuridão dos labirintos de Praga.

Interpretar este conto significa, antes de mais nada, perceber que ele tem como tema a necessidade, impossibilidade e angústia da interpretação. Se fosse um conto de Edgar Allan Poe, autor que renovou a narrativa curta em meados do século XIX, poderíamos supor que o narrador iria atrás das personagens, encontraria a razão para os dois estarem correndo à noite, e esclareceria ao leitor todos os eventuais mistérios e ambiguidades que criaram a situação inicial, cujas dúvidas serviriam apenas para o desenvolvimento do conto. Em Kafka, entretanto, o leitor e o narrador (e também as personagens, em outras de suas obras) buscam, em vão, interpretar o que está acontecendo. A própria ação se desenrola a partir dessa busca, e o choque do leitor, ao final da narrativa, é ampliado pelo desconforto das desculpas levantadas por um narrador que tem consciência de que não conseguiu interpretar ou agir, estando porém condenado a isso.

Esse tema está presente em vários outros contos de Kafka, como nos que, no livro Contemplação, cercam o conto que acabamos de analisar. Em "O caminho para casa", o narrador foge da responsabilidade e da sensação de, mesmo estando em casa, não estar consigo mesmo; em "O passageiro", a insegurança do narrador, expressa desde a primeira frase ("Estou em pé na plataforma do bonde e totalmente inseguro em relação à minha posição neste mundo, nesta cidade, na minha família") termina numa autoobservação obsessiva, que se volta contra a jovem que ele gostaria de "interpretar": "como é que ela não está espantada consigo mesma, conserva a boca fechada e não diz coisas desse tipo". Perguntas que Kafka faz a seus próprios leitores: como é que eles não estão espantados consigo próprios, nesse mundo em que a interpretação dos fatos mais cotidianos, e também dos próprios desejos e pensamentos, tornou-se um grande problema?

Isso significa que o mundo perdeu o sentido? Se isso aconteceu, qual a razão? Os existencialistas, a começar por Albert Camus, leram a obra de Kafka como uma demonstração literária do absurdo, expressão de uma reiterada e sufocante falta de sentido, que se incorporaria depois ao próprio adjetivo "kafkiano":

Toda a arte de Kafka consiste em obrigar o leitor a reler. Seus desenlaces, ou suas faltas de desen-lace, sugerem explicações, mas que não são reveladas com clareza e exigem, para nos parecerem fundadas, que a história seja relida sob um novo ângulo. Às vezes há uma dupla possibilidade de interpretação, donde aparece a necessidade de duas leituras. É o que pretendia o autor. Mas não estaríamos certos se quiséssemos, em Kafka, interpretar tudo minuciosamente". (Camus, 1989, p. 267)

Apesar de condenados ao "nada", a própria possibilidade de interpretação surge como uma esperança, um ato eminentemente humano, um esforço de escapar à morte desprovida de sentido.

Para os leitores mais metafísicos, como seu amigo Max Brod (a quem devemos tanto a edição dos livros que Kafka gostaria de ter destruído, quanto as inúmeras alterações, à caneta vermelha, que hoje marcam os manuscritos originais), essa busca de sentido tinha um fundo religioso, falava da ausência de Deus e das perdições do homem no mundo moderno. Cada obra seria uma espécie de prece, uma organização instável de elementos capazes de evocar, de modo alegórico, uma quase mística consciência do todo. Nessa visão, as parábolas e contos de Kafka se aproximariam da tradição judaica de circunscrever o texto com as diversas interpretações possíveis, por mais contraditórias que pudessem parecer, contando sempre com a crença em uma sabedoria profunda que, mesmo escondida, garantiria uma coerência última, à qual teríamos acesso apenas pela alegoria ou pela intuição.

Os críticos marxistas de primeira ordem, como Georg Lukács, diagnosticaram na posição pequeno-burguesa de Kafka e outros autores de vanguarda a incapacidade de uma compreensão efetiva do todo social. Seu antirrealismo seria, no entanto, original, ainda que marcado por "apatia" e "ingenuidade". A representação da falta de sentido seria incrementada pelo realismo de sua forma de apresentação: "Para que toda a sua obra pudesse nos parecer como uma brusca irrupção no reino do paradoxo e do absurdo, foi preciso que Kafka adotasse, em primeiro lugar, na maneira de apresentar os pormenores, uma posição rigorosamente realista" (Lukács, 1969, p. 79). Estando ligado apenas ao aparato burocrático do "mundo infernal do capitalismo atual", Kafka não teria uma visão adequada do processo de produção, daí sua necessidade de ressaltar "os detalhes mais excepcionalmente sugestivos" (Lukács, 1969, p. 123), sem levar em conta os elementos que possibilitariam uma eventual superação do estado de coisas. Em sua negatividade absoluta, Kafka estaria condenado à alegorização do desespero, numa sociedade (no caso, o decadente Império Austro-Húngaro) marcada pela incapacidade de pensar novos sentidos para a prática política e para o mundo.

Com sua peculiar mescla de marxismo e hermenêutica judaica, Walter Benjamin percebeu, nas parábolas modernas kafkianas, um pretexto para redefinir o sentido da alegoria: "Kafka dispunha de uma capacidade invulgar de criar parábolas. Mas ele não se esgota nunca nos textos interpretáveis e toma todas as precauções para dificultar essa interpretação. É com prudência, com circunspecção, com desconfiança que devemos penetrar, tateando, no interior dessas parábolas" (Benjamin, 1985, p. 149). A interpretação alegórica tradicional pressupõe uma intenção de multiplicidade e coesão de sentido na criação das imagens literárias ou pictóricas; no caso de Kafka, a alegoria trabalha com ruínas, buscando configurar algum sentido possível, mesmo que provisório, na constelação transitória dos cacos e fragmentos expostos no "grande teatro do mundo".

Essas diferentes leituras parecem nos colocar na mesma posição do narrador do conto que analisamos. Nada de muito radical, em termos de linguagem ou forma literária, impede a compreensão do texto de Kafka; no entanto, o sentido de sua obra parece nos conduzir cada vez mais fundo para um mundo de antinomias, dúvidas e inconsistências. Uma experiência não de todo incomum, também, na prática da interpretação psicanalítica, na qual objetos e frases aparentemente óbvias se revestem de um sentido outro, no próprio ato da interpretação. Aqui, como na leitura de Kafka, qualquer tentativa de impor a priori métodos rígidos e padrões de leitura, sem o contato com o objeto, acaba desembocando no que há de pior no positivismo: a crença ingênua em querer simplificar, pela força de definições e procedimentos, algo que é essencialmente complexo, como a experiência no contexto de uma estrutura social complexa, regida pela fragmentação decorrente da divisão do trabalho, pela ordenação burocrática da vida cotidiana e pela sobreposição cacofônica de poderes e desejos.

Em ambos os esforços, a busca de sentido acaba se tornando uma tarefa necessária, mas ao mesmo tempo condenada à reflexão sobre seu próprio sentido. Como diz Adorno: "Ao ter de recusar-se a transcender o mito, a obra de Kafka torna conhecível em si o contexto de cegueira da sociedade, através do como, da linguagem. Para a sua narrativa, a absurdidade é tão evidente como o é para a sociedade" (Adorno, 1982, p. 259). Na capacidade de expor esse "evidente absurdo", que tanto a literatura quanto a psicanálise nos ajudam a perceber, reencontramos o mesmo impulso "esclarecedor" presente no romance moderno, que também está na base da teoria freudiana, justamente quando ela trata do inconsciente e seus impulsos. Na violência inescapável do Processo; na naturalidade com que Gregor Samsa encara sua metamorfose; no espanto com que os mineiros observam o sumiço de seus superiores nos túneis mais profundos, pois o turno de trabalho acabou; na perseverança inútil do homem que por toda a vida espera sua vez, diante da porta fechada da lei; em todas essas obras, a ausência de sentido não é uma carência ou um sintoma, mas o fundamento de sua própria possibilidade de interpretação. Escapar dessa condenação, tanto na interpretação literária quanto na prática psicanalítica, só é possível para quem a compreende e aprofunda, desconfiando com clareza da eventual incapacidade de alcançar os sentidos do mundo e de si mesmo.

 

Referências

Adorno, T.W. (1982). Teoria estética. Lisboa: Edições 70.         [ Links ]

Benjamin, W. (1985). Franz Kafka, a propósito do décimo aniversário de sua morte. In W. Benjamin, Obras escolhidas I. São Paulo: Brasiliense.         [ Links ]

Camus, A. (1989). A esperança e o absurdo na obra de Franz Kafka. In A. Camus, O mito de Sísifo. Rio de Janeiro: Guanabara.         [ Links ]

Carone, M. (1999). Posfácio. In Kafka, F., Contemplação / O foguista. São Paulo: Cia das Letras.         [ Links ]

Kafka, F. (1999). Contemplação / O foguista. São Paulo: Cia das Letras.         [ Links ]

Lukács, G. (1969). Franz Kafka ou Thomas Mann? In G. Lukács, Realismo crítico hoje. Brasília: Coordenada.         [ Links ]

Lukács, G. (2000). Teoria do romance. São Paulo: Editora 34.         [ Links ]

 

 

Correspondência:
Jorge de Almeida
[Universidade de São Paulo USP]
Rua Oscar Freire, 1707, ap. 122
05409-011 São Paulo, SP
jorgedealmeida@usp.br

Recebido em 10/8/2010
Aceito em 3/9/2010