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Revista Brasileira de Psicanálise

Print version ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.45 no.3 São Paulo July/Sept. 2011

 

DEBATE - LIMITES: PRAZER E REALIDADE
COMENTÁRIOS SOBRE AS IDEIAS DE CHRISTOPH TÜRCKE

 

A psicanálise em tempos de excitação: para além da sensorialidade

 

Psychoanalysis in times of excitement: beyond sensorialism

 

El psicoanálisis en tiempos de excitación: más allá de lo sensorial

 

 

Viviane Sprinz Mondrzak

Membro efetivo da Sociedade Psicanalítica de Porto Alegre SPPA

Correspondência

 

 


RESUMO

Tomando as ideias de Türcke como estímulo para uma reflexão livre, este comentário se propôs a pensar alguns aspectos da cultura ocidental contemporânea, incluindo o papel da psicanálise neste panorama. O eixo central situou-se em torno do papel da razão na modernidade, sua idealização como fonte de respostas, papel desempenhado anteriormente pelo pensamento religioso. A fratura no mito da razão nos torna mais humildes, com uma noção mais clara dos limites do nosso conhecimento. Mas, ao mesmo tempo, surgem defesas contra a quebra de onipotência, utilizando os meios que o desenvolvimento tecnológico atual coloca à disposição. São discutidos alguns aspectos relacionados aos desafios que a psicanálise, como parte do pensamento ocidental da modernidade precisa enfrentar, no processo de integrar as mudanças sem perder sua essência.

Palavras-chave: pós-modernismo; razão; sensorialidade; lógica simétrica e assimétrica.


ABSTRACT

Taking the ideas of Türcke as a stimulus for a free reflection, this commentary focused on some aspects of Occidental culture nowadays, including the role of psychoanalysis in this panorama. The central axis was placed around the role of reason in modernism and its idealization as a source of answers, a part previously played by religious thought. The breaking of the myth of reason makes us more humble, with a clearer notion of the limits of our knowledge. But, at the same time, defenses against the breach in omnipotence arise, using resources enabled by current technological development. There is the discussion of aspects related to the challenges which psychoanalysis, as part of modernist Western thinking, must face in the process of integrating changes without losing its essence.

Keywords: post-modernity; reason; sensorial; symmetrical and asymmetrical logic.


Resumen

Tomando las ideas de Türcke como estímulo para una reflexión libre, este comentario se propone pensar en algunos aspectos de la cultura occidental contemporánea, incluyendo el papel del psicoanálisis en este panorama. El eje central se situó en relación al papel de la razón en la modernidad, su idealización como fuente de respuestas, papel desempeñado anteriormente por el pensamiento religioso. A fractura en el mito de la razón nos vuelve más humildes, con una noción más clara de los límites de nuestro conocimiento. Pero, al mismo tiempo, surgen defensas contra la quiebra de omnipotencia, utilizando los medios que el desarrollo tecnológico actual coloca a su disposición. Son discutidos algunos aspectos relacionados a los desafíos que el psicoanálisis, como parte del pensamiento occidental de la modernidad necesita enfrentar, en el proceso de integrar los cambios sin perder su esencia.

Palabras-clave: posmodernidad; razón; sensorialidad; lógica simétrica y asimétrica.


 

 

Delineando o vértice deste comentário

Tarefa difícil já de saída, selecionar, no leque de ideias abertas por Türcke, sintetizadas na introdução destes comentários, aquilo sobre o qual vou me deter. Aceito o desafio colocado pela editoria da RBP, tomo as contribuições de Türcke como um gatilho para detonar um processo de reflexão livre que leva a marca da formação de um psicanalista: ver para onde leva o pensamento para, após, organizá-lo de forma que faça sentido para um leitor.

Portanto, a perspectiva de observação é a de um psicanalista e não de um filósofo e essa é uma diferença fundamental. Como bem lembra Atlan (1994), o organismo vivo é uma unidade com inúmeros níveis de integração e cada disciplina científica tem o seu discurso e refere-se a um determinado estrato. A partir daí, estabelece seu objeto de observação e as regras do seu jogo que devem ser respeitadas.

O caminho que vai, assim, se delineando tem como eixo, a partir das ideias de Türcke (2010) sobre a cultura pós-moderna, pensar a psicanálise desde uma posição "de dentro". Com isso tenho em mente um olhar que a questione e a inclua no conjunto das criações da cultura ocidental, inserida, queiramos ou não, nesta cultura, vivendo com e nela há mais de 100 anos e participante de sua configuração atual. Portanto, não se trata de psicanálise aplicada, de tentativas de explicar fenômenos usando os conhecimentos psicanalíticos, o que seria uma visão "de fora", com o risco de a isentarmos de responsabilidades.

É importante ter presente que não temos o distanciamento mínimo (mesmo que isso não seja quantificável) para avaliar as mudanças que estamos presenciando. Estamos imersos nelas, somos constituídos por e constituímos esta estrutura em movimento permanente. Muitas teorias sobre os tempos atuais padecem desse problema em sua origem, ao não reconhecerem os limites de suas ponderações que são apresentadas como conclusões. Podemos e devemos refletir sobre o que observamos, tendo claro que a cultura pós-moderna, como qualquer outra, apresenta aspectos positivos e negativos, mesmo que esta seja uma classificação arbitrária e que dependa da perspectiva de quem está avaliando. Cada época precisa enfrentar seus desafios e encontrar maneiras de absorver as mudanças, de buscar uma ordem no que é novo e foge do habitual seguro.

 

Enunciando o argumento central: a fratura no mito da razão

O que se convencionou chamar de pós-modernidade (uma tentativa de dar um nome e organizar uma série de fenômenos) vem com a marca da falência dos ideais iluministas que caracterizavam a idade moderna. A crença onipotente nos poderes da razão e nos progressos científicos, na promessa de dominar a natureza e de construir certezas, foi perdendo gradativamente sua posição incontestável. O fracasso das meta-narrativas que sustentavam os ideais do século XX, enterrados após duas grandes guerras, configura uma falta de modelos e perspectivas e uma visível crise ética. Assim, vemos, lado a lado, a conscientização cada vez maior de que não existem verdades definitivas e completas, o que facilita o respeito pelo novo e pelo diferente, e as defesas contra essa percepção sempre dolorosa que acompanha o fim de uma ilusão.

Várias características da cultura ocidental atual poderiam ser vistas dessa perspectiva (que não é uma explicação, mas apenas um vértice de observação): defesas contra a quebra na posição onipotente da razão, por meio de um aumento de características narcísicas, que provocam o borramento de diferenças e o afastamento da percepção da realidade. Se o pensamento está ligado à capacidade de tolerar a frustração da falta (Freud, 1911/1960; Bion, 1962), é claro que essa via estará prejudicada e a descarga via ação, privilegiada. Türcke dá destaque a um aspecto em especial, a hipertrofia da busca de sensações, num crescente de excitação, como uma droga que afasta da realidade e que exige cada vez uma dose maior para ter efeito. Na visão do autor, a mídia transformaria cada acontecimento numa torrente de estímulos, de sensações, sobrando pouco para a realidade comum oferecer como fonte de satisfação. Perspectiva sombria: o efeito, como nas adições, acaba sendo de anestesia da capacidade de sentir e pensar. Como psicanalistas é difícil não fazer uma relação com defesas autísticas (Tustin, 1986), onde o sensorial forma um escudo protetor contra vivências de vulnerabilidade que acompanham o contato assustador com o outro, representante da realidade de nossa incompletude.

Henri Atlan, médico e biólogo, um dos pesquisadores e intelectuais mais ativos da Europa, e um dos pioneiros na formulação das teorias da complexidade e da auto-organização, destaca o que chamou de "fratura do mito da razão", considerando que esse processo está longe de ter sido metabolizado. A eterna necessidade de procurarmos explicações nos leva à crença, toda poderosa, na causalidade como único meio para estabelecer e assegurar uma ordem na realidade, de outra forma inquietante, promessa embutida no discurso científico moderno. Porém, quando acontece da razão ser elevada à condição de mito capaz de acessar "a Verdade", perde-se de vista que o racional, é uma forma de organização do pensamento em termos de identidade e não contradição, que nos ajuda a organizar os dados, mas não permite ter todo conhecimento desejado.

A psicanálise participou diretamente dessa quebra do mito da razão. A partir de Freud, a dimensão inconsciente da experiência humana, portanto o não racional, ganha status oficial, incluindo sistema próprio de leis. No entanto, o desejo de Freud de que a psicanálise fosse reconhecida como científica, de acordo com os critérios da época, faz com que toda sua obra tenha um caráter paradoxal. Por um lado, abre toda a ambiguidade do psiquismo na articulação consciente/inconsciente e mundo interno/mundo externo, marcando a transição do princípio do prazer para o princípio da realidade (e, mais tarde, para além do princípio do prazer). Por outro, a presença da noção de energia e da causalidade determinista, entre outros aspectos, reinstala o domínio da razão. A busca das causas sempre presentes, apenas ocultas, é característica do mesmo método que se baseia na associação livre e na atenção flutuante. De alguma forma nós, psicanalistas, estamos habituados a transitar nesse paradoxo e compreendê-lo de alguma forma. Mas também precisamos de longos anos para nos animarmos a não ler Freud de forma determinista, mantendo a ilusão de acharmos ali as explicações de todos os fenômenos.

Defendendo a ideia de várias racionalidades, cada qual adequada a determinados fenômenos, Atlan (1994) propõe que se diferencie "anti-razão" de "ausência de razão". A anti-razão teria a ver com paixões, afetos, algo que só se exprime pela experiência, porque se trata de uma realidade indizível. Fácil localizar aqui a lógica do inconsciente, o processo primário. Já a ausência de razão aponta para dogmas que querem se provar racionais, se aproximando de contra-senso, delírio, o que vemos em seitas fundamentalistas. Considera a psicanálise como a área de ciência que procura não perder de vista o essencial da anti-razão, sem cair na ausência de razão. Penso que temos matéria-prima para isso, desde que atentos aos riscos de dogmatização das teorias e de nos mantermos presos à visão determinista. Apenas como um pequeno adendo poderíamos pensar se não caberia à psicanálise revisar a forma reducionista como tem tratado o assunto religiões (Franco Filho, 1995), correndo o risco de perder de vista a experiência de anti-razão presente na dimensão religiosa, diferente do estatuto das religiões estabelecidas.

 

Incluindo a psicanálise mais diretamente

Mas como o pensamento psicanalítico tem enfrentado essas questões? Dentre os vários desenvolvimentos da teoria, destaco o modelo de funcionamento da mente proposto por Matte-Blanco porque possibilita aberturas para o tema em discussão.

Em termos resumidos, Matte-Blanco (1975) imagina nossas mentes sendo constantemente confrontadas com uma diversidade de dados que precisariam de organização para serem conhecidos e compreendidos, função atribuída ao pensamento. Para ele, haveria um modo simétrico e um assimétrico de organizar dados e conhecer algo (conhecimento é aqui entendido de modo amplo, não apenas conhecimento intelectual, mas a percepção de qualquer fenômeno). O primeiro, regido pelo princípio da simetria, registra a identidade, a homogeneidade, o que há de comum entre os fenômenos; o segundo, corresponde à lógica aristotélica, discrimina diferenças. Ambos são essenciais em todas as experiências humanas, estão em constante e complexa interação e não aparecem isoladamente. Seria inconcebível no ser humano qualquer experiência ou atividade mental que não fosse ao mesmo tempo simétrica e assimétrica, variando as proporções de um e de outro. No raciocínio intelectual abstrato, por exemplo, teríamos um predomínio de modo assimétrico, enquanto que nas experiências de emoções intensas teríamos um grau maior de simetria. Nos esquizofrênicos, haveria uma presença de modo simétrico onde deveria haver assimetria. Assim, é um erro imaginar os dois modos em oposição, ou, o modo simétrico como patológico. Ambos estão sempre presentes. Quando uma criança, ao brincar, diz que é o super-homem, sabe que não é. No entanto, o ponto básico da brincadeira é que ela é o super-homem. Sem simetria, que estabelece a homogeneidade, não há brinquedo, mas sem a lógica assimétrica que discrimina a diferença entre a criança e o super-homem, o brincar se transforma em delírio e a criança acredita que pode voar.

Em termos evolutivos, haveria um predomínio de simetria no início da vida e, com o desenvolvimento, cada vez mais o modo assimétrico (processo secundário, regido pelo princípio da realidade) se faria presente. No entanto, num corte longitudinal, o modelo de Matte-Blanco apresenta a mente funcionando simultaneamente em vários estratos, da simetria à assimetria. Nessa perspectiva, toda experiência é vivida em vários níveis dependendo das proporções variáveis de processo primário e secundário e há sempre uma forma simétrica de perceber qualquer estímulo, equivalente a um sentimento, matéria-prima para que se desenvolva o pensamento.

A preocupação em não perder de vista a complexidade das relações afeto/pensamento, mundo interno/mundo externo e a articulação dessas dimensões do psiquismo com a cultura é especialmente marcante em Winnicott (1953). Reivindica uma terceira área da experiência para nosso descanso, área da criatividade, onde a ilusão pode continuar a existir, onde não se precisa colocar a questão do que é real e o que é fantasia, onde doses de simetria podem ser toleradas sem risco de psicose. Nessa área, a experiência simétrica de paixão, de afrouxamento de cadeias lógicas têm passe livre na vida de vigília, espaço garantido no sono pelo sonho.

Mas, retomando o tema em discussão, meu objetivo ao trazer esses autores é sublinhar que, independente do referencial que se use, a psicanálise tem, desde Freud, enfatizado a presença inevitável dos registros consciente e inconsciente com suas lógicas correspondentes. Poderíamos pensar que uma cultura seria mais saudável à medida que conseguisse, com os recursos de cada época, proporcionar formas que contemplassem os diferentes níveis da experiência humana. Nesse quesito, a cultura ocidental, com a idealização do racional, dificulta o acesso a tudo que dependa do abandono das cadeias do pensamento lógico, espaço tradicionalmente ocupado pelas artes. Já nas culturas orientais essa forma de experiência foi sempre central e este é um dos fatores repetidamente apontados para que Bion, por seu contato com a tradição hindu, tenha trazido para a psicanálise a ênfase na intuição e na experiência mística. Há aqui uma conotação de místico como experiência psíquica original, uma experiência de afastamento da lógica, do racional.

 

Procurando uma síntese

Procurei, neste comentário, pensar alguns aspectos da cultura ocidental contemporânea, incluindo o papel da psicanálise neste panorama. O eixo central situou-se em torno do papel da razão na modernidade, sua idealização como fonte de respostas, papel desempenhado anteriormente pelo pensamento religioso. Não se trata aqui de diminuir a importância da ciência, mas sim, apontar as consequências da decepção por não corresponder às expectativas onipotentes depositadas nela. Se Freud chamava a razão para dissipar as ilusões da religião, é necessário dissipar as ilusões da razão, o que ele próprio procurou fazer. Todo esse processo é fundamental, nos torna mais humildes, mais inseridos na natureza, com uma noção mais clara dos limites do nosso conhecimento. Mas não podemos pensar que isso se dê sem protestos, que defesas contra a frustração não se levantem utilizando os meios que o desenvolvimento tecnológico atual coloca à disposição.

O problema fica posto: do que dispomos para nossa área intermediária, que alternativas a cultura ocidental atual nos dá para transitarmos pela zona da ilusão, para termos acesso ao tipo de experiência de unidade, de homogeneidade, o mais próximo possível que podemos chegar das primeiras experiências de fusão, de onipotência infantil?

Porque jamais podemos viver sem essa dimensão e se ela não puder existir numa zona transicional, invade zonas da realidade que não seriam de seu domínio.

Na falta de alternativas, os espaços vão sendo ocupados pela não razão, pelas seitas extremistas ou por vários tipos de drogas. Incluímos aqui a vulnerabilidade aos estímulos sensoriais, capazes de produzir estados alterados de consciência, mas que, assim como as defesas autísticas, provocam encapsulamento, afastamento da realidade e bloqueio do acesso ao pensamento. As ideias de Türcke enfatizam essa questão, mas de um outro ponto de vista e buscando outra rede causal, vértice sobre o qual não me detive por não ser da minha área de estudo e formação.

Procurei incluir a psicanálise diretamente nesta discussão já que ela faz parte das produções científicas da modernidade e precisa enfrentar os desafios da pós-modernidade como todos os ramos da ciência. Pensar sobre a psicanálise enquanto ciência é uma tarefa que se impõe se pretendemos participar da discussão dos dilemas éticos inevitáveis.

Além de qualquer conteúdo das teorias psicanalíticas, o que se destaca como permanentemente inovador e essencial é justamente a integração das ordens do inconsciente e do consciente, cada qual com sua lógica própria, estabelecendo relações complexas entre si, sem uma hierarquia absoluta, necessitando do predomínio de um ou de outro dependendo da natureza de cada experiência. A gradativa construção do processo secundário, com sua lógica de não contradição, de temporalidade, de relações de causa e efeito, que tem a fundamental função de ir artificialmente construindo meios de organizar o mundo interno/ externo, não pressupõe o abandono da lógica simétrica, mais próxima das emoções, do conhecimento intuitivo. Ninguém se apaixona se não puder haver espaço para predomínio de simetria. Psicanalistas como Bion e Meltzer têm seguido nessa linha, de ênfase na experiência emocional, no resgate da intuição com sua racionalidade específica, como o meio de acesso ao objeto privilegiado de observação da psicanálise, o psíquico em suas várias dimensões.

Há sempre a velha discussão, algo desacreditada, mas sempre presente: como pode a racionalidade científica acomodar-se a objetos nos quais o irracional (paixões, artes, tudo que não se rege pela lógica aristotélica) constitui uma parte inevitável e, muitas vezes, determinante? As ciências ditas duras apresentam sucessos técnicos que garantem progressos práticos incontestáveis, o que as ciências humanas não têm como apresentar, ao menos no mesmo formato. De qualquer forma, buscar a metodologia das ciências duras para assegurar a validade de uma ciência seria continuar crendo num mito: a de que um método racional nos conduz à verdade, e aquilo que cremos verdadeiro se confunde com o que julgamos racional que seria o habitual, o conhecido. O que é novo, não habitual parece-nos a primeira vista, irracional. A psicanálise segue com o desafio de reconhecer e assumir o científico em seu método de observação, de estabelecer as regras do seu jogo no qual o resultado não é um conhecimento absoluto, mas uma ciência na qual o conhecimento revela a ordem oculta do inconsciente. Nessa perspectiva da ciência como um jogo, proposta por Atlan (1994), se o objetivo é a descoberta de leis, não são leis da natureza, são regras provisórias de observação, organização e comunicação que não devem ser confundidas com descobertas de verdades. É dessa forma que a ciência pode ser levada a sério: como um jogo. Nessa perspectiva, a ciência deve ser usada como uma prática, não como explicação do real, conceito, aliás, sempre contestado. Nas palavras de Atlan, "o real não é verdadeiro, apenas é" (p. 243). Construímos uma verdade à volta dele, depois outra, não de forma arbitrária, mas com as dificuldades inerentes ao método experimental e as funções lógicas. Para a psicanálise, segue a tarefa de colocar sua teoria e sua prática numa linha não determinista, não onipotente, sem a ilusão de ter as explicações do "real" do psiquismo, o que não significa diminuir em nada seu papel na cultura ocidental e o potencial intrínseco de desenvolvimento contido em seu método.

Assim, "de dentro" da configuração da pós-modernidade, a psicanálise precisa também integrar as várias mudanças (tecnológicas, científicas, nos costumes), observar e estudar seus efeitos sobre o funcionamento psíquico, procurando manter o essencial de seu método, que inclui a visão das várias dimensões da experiência humana e das várias racionalidades envolvidas e interdependentes. Inclui-se aqui a visão sempre presente no trabalho de Freud, das teorias como provisórias e em constante evolução. O compromisso envolvido não é apenas com o futuro da psicanálise, mas um compromisso ético com a discussão do que nos constitui como humanos, em qualquer época.

 

Referências

Atlan, H. (1994). Com razão ou sem ela: intercrítica da ciência e do mito. Lisboa: Instituto Piaget.         [ Links ]

Bion, W. (1962). O apreender com a experiência. Rio de Janeiro: Imago.         [ Links ]

Franco Filho, O. M. (1995). Experiência religiosa e psicanálise. Revista Brasileira de Psicanálise, 29(4),859-872.         [ Links ]

Freud, S. (1960). Formulações sobre os dois princípios do funcionamento mental. In S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. (Vol. 12). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1911)        [ Links ]

Matte-Blanco, I. (1975). The Unconscious as Infinite Sets. Londres: Duckworth.         [ Links ]

Türcke, C. (2010). Sociedade excitada - filosofia da sensação. São Paulo: Unicamp.         [ Links ]

Tustin, F. (1986). Barreiras autísticas em pacientes neuróticos. Porto Alegre: Artes Médicas.         [ Links ]

Winnicott, D. W. (1953). Transitional objects and transitional phenomena. Int. J. Psychoanal., 34,89-97.         [ Links ]

 

 

Correspondência:
Viviane Sprinz Mondrzak
[Sociedade Psicanalítica de Porto Alegre SPPA]
Rua Carvalho Monteiro, 234/801
90470-100 Porto Alegre, RS
Tel: 51 3330-6513
vimondrzak@terra.com.br

Recebido em 29.7.2011
Aceito em 23.8.2011

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