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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.45 no.3 São Paulo jul./set. 2011

 

TRABALHOS PREMIADOS NO XXIII CONGRESSO BRASILEIRO DE PSICANÁLISE

 

Da delicada complexidade do encontro analítico1

 

On the delicate complexity of the analytical encounter

 

La delicada complejidad del encuentro analítico

 

 

Ambrozina Amália Coragem Saad

Membro efetivo da Sociedade de Psicanálise de Brasília SBP

Correspondência

 

 


RESUMO

Considerando a relação analítica um desafio e um desconhecido a ser vivenciado, o texto destaca a importância do analista como pessoa e a sua interferência organizadora no funcionamento mental do analisando e em todo o desenrolar do processo de análise levando em conta as possibilidades e os limites da dupla.

Palavras-chave: relação analítica; processo analítico; situação analítica; pessoa do analista.


ABSTRACT

Departing from the idea of the analytical relationship as a challenge and an unknown to be experienced, the article highlights the significance of the analyst as an individual and his/her organizational interference in the mental functioning of the patient and in the unfolding of the analytical process, taking into account the possibilities and limitations of the couple.

Keywords: analytical relationship; analytical process; analytical situation; analyst's persona.


RESUMEN

Considerando la relación analítica un desafío y una experiencia a ser vivida, el texto destaca la importancia del analista como persona y su interferencia organizadora en el funcionamiento mental del analizado, y en todo el desarrollo del proceso de análisis, teniendo en cuesta las posibilidades y los límites del par analítico.

Palabras clave: relación analítica; proceso analítico; situación analítica; persona del analista.


 

 

1. Considerações introdutórias: a psicanálise hoje

Ao praticar psicanálise, tenho o propósito de:
Me manter vivo;
Me manter bem;
Me manter desperto.
Objetivo é ser eu mesmo e me portar bem.
(Winnicott, 1962, p. 152)

Pensar a psicanálise contemporânea implica rever a sua metodologia e, em particular, o trabalho do analista no exercício de suas funções analíticas e na sua inclusão como pessoa nesse "encontro de singularidades" que é o campo analítico. (Marucco, 2007, p. 123)

A complexidade da psicanálise está sempre se impondo a nós, analistas, tanto quando pensamos o processo analítico como quando o vivenciamos no dia-a-dia dos nossos consultórios.

A relação analítica estabelecida entre o analista e o paciente é sempre um desafio e um desconhecido a ser experimentado no decorrer da sessão de análise. Essa relação destaca a figura do analista como pessoa e a sua interferência organizadora no funcionamento mental do analisando. Sob esse enfoque prioriza-se aquilo que acontece entre o analista e o paciente na sessão, sem desconsiderar o que ocorre na mente de um e de outro. Há uma interação dialética no processo de análise e essa dimensão relacional do encontro entre dois - o encontro analítico - envolve a revelação da pessoa do analista (como inevitável acontecimento) tanto quanto a dinâmica mental do analisando.

Nesse processo existe uma comunicação de inconsciente para inconsciente entre o par, já mencionada por Freud, correspondente à identificação projetiva e a introjetiva tão enfatizadas na teoria das relações objetais, como também referente à rêverie do analista apontada por Bion ou ainda à atividade sonhante assinalada por Winnicott, fenômenos que podem ser considerados como revalidação desse tipo de comunicação.

Se, desde há muito tempo se insistiu na resistência do analista, a concepção atual destaca a pessoa do analista, isto é, o todo que constitui a sua presença: o seu físico, a sua técnica, o seu manejo, a sua mente consciente e inconsciente, o seu modo de estar na sessão, a sua fala, a relação com o paciente, enfim, todo o seu ser e estar. Portanto, a pessoa real do analista e a influência que as suas características pessoais têm sobre o processo de análise encontram-se no cerne da psicanálise contemporânea.

O analista é revelado na situação e no processo analítico, nos seus silêncios e nas suas falas, no arranjo físico da sua sala de análise, no contato com o paciente - como o é na escrita dos relatos clínicos que faz.

O processo de interação da dupla analista-analisando apresenta, pois, uma dinâmica que não escapa daquilo que ambos são. Somos analistas com aquilo que somos e não apenas com o que sabemos (ou deixamos de saber), sendo que - todavia - temos de saber muito para sermos...

Em decorrência disso, facilmente constatamos a existência de um grande mosaico de diferentes duplas analíticas em influência recíproca. Cada casal analítico é único e cada análise, sui generis. É preciso reconhecer, hoje, a grande diversidade e a flexibilidade que existem nas práticas clínicas dos analistas individualmente. Constatamos, então, que o pensamento tradicional em psicanálise vem sendo ampliado, modificado e enriquecido com a contribuição das mais divergentes orientações teóricas e práticas de pensadores e de clínicos contemporâneos oriundos das mais diversas partes do mundo.

Se por um lado muitos psicanalistas sentem desconfiança e experimentam estranhamento, por outro muitos se entusiasmam além das fronteiras, dos modelos e das ideias com as quais se acostumaram, descobrindo e inventando formas novas de trabalhar na sua clínica. Trata-se de uma reinvenção da psicanálise. Assim, retomadas do pensamento freudiano, contribuições originais calcadas aí ou fruto de conjecturas imaginativas e criativas, têm enriquecido a psicanálise e emprestado às psicanálises coloridos diferentes e posicionamentos particulares.

Relembremos que para Freud os objetivos da psicanálise eram desvendar complexos, vencendo resistências e acessando o inconsciente em "As perspectivas futuras da terapêutica psicanalítica" (1910/1970); preencher lacunas de memória em "O interesse científico da psicanálise" (1913/1974); investigar as processos mentais inacessíveis para tratar distúrbios neuróticos em "Dois verbetes de enciclopédia" (1923/1976b); capacitar o ego a progressivamente conquistar o id em "O ego e o id" (1923/1976c) ou ainda compreender as doenças nervosas em "Uma breve descrição da psicanálise (1924/1976a).

Já para Melanie Klein (1946), todavia, os objetivos eram superar ansiedades paranoides e depressivas, assegurar a estabilidade dos objetos internalizados, apresentar consideração pelo objeto e capacidade de elaboração de lutos, como as suas prioridades.

De acordo com Bion (1962), o analista precisa usar a sua função alfa para ajudar o paciente no processo de pensar e também precisa permitir-se ser continente para as identificações projetivas do analisando (elementos beta), transformando-as em elementos alfa. Dessa forma, digerindo os elementos na sua mente e desenvolvendo-os metabolizados ao paciente, o analista favorece-lhe a introjeção, juntamente com a função alfa do analista, permitindo o pensar.

Em março de 2008, no Encontro Psicanálise-Bion: Transformações e Desdobramentos, realizado em São Paulo, a colega Evelise de Sousa Marra, na sua fala inaugural, referiu-se às diferenças das nossas práticas e destacou as seguintes psicanálises:

- Psicanálise real (voltada para a atualidade da experiência) versus Psicanálise clássica (identificadora das estruturas inconscientes);

- Psicanálise sem raízes (dirigida para a "imediatez" da experiência) versus a Psicanálise com raízes (apoiada na força organizacional da história);

- Psicanálise intuitiva versus Psicanálise alicerçada nas teorias.

E afirmou Evelise: na instituição, tais "polarizações facilmente ganham conotações de superioridade-inferioridade, novo-superado, evoluído-retrógrado, enfim ressonâncias mais valorativas do que descritivas, o que gera muita confusão e mal-entendidos."

Verificamos, pois, uma verdadeira turbulência nas teorias e práticas da psicanálise, constatando que o seu desenvolvimento tem-nos oferecido um rico campo teórico e clínico, construído e praticado. Em decorrência desse desenvolvimento, convivemos com as mais diversas abordagens do objeto psicanalítico nos nossos dias.

Stefano Bolognini, em seu trabalho intitulado "Considerações sobre o narcisismo sob um prisma contemporâneo complexo",2 apresentado no Instituto de Psicanálise de Londres, em maio de 2005, afirmara que

O analista contemporâneo trata as configurações e os desenvolvimentos analíticos levando em conta, entre outras variáveis, necessidades narcísicas básicas ... dos pacientes, bem como "a tolerabilidade de suas intervenções" ... pelo paciente.

Afirmo, então, a respeito das diferentes posições teóricas defendidas por autores clássicos e atuais, que o processo analítico, como pesquisa e como prática, pretende possibilitar ao analisando a percepção do seu funcionamento mental, a consciência da sua dinâmica psíquica e o insight como desenvolvimento emocional, melhorando a sua capacidade de lidar consigo mesmo, com o outro, com o mundo e com a vida.

Assim, penso que a análise se propõe a ajudar o analisando a aprimorar a estrutura da sua organização mental, provocando experiências emocionais de qualidade diferente, a desenvolver-se como pessoa e a exercitar a sua função analítica - essa capacidade de autoanalisar-se. Isso possibilitado no corpo-a-corpo transferencial/contratransferencial durante o evoluir da análise, no dia a dia dos encontros.

Todavia, como analistas, não podemos nos esquecer que, no reino do outro, o nosso trânsito não é livre nem direto e precisamos estar atentos e ser cuidadosos em relação a isso.

Portanto, diferentemente daquilo que acontecia no passado, a atenção dos analistas deslizou da dimensão puramente intrapsíquica e interpsíquica para a intersubjetiva e a transubjetiva.

 

2. O processo analítico: características e implicações

As interpretações são teorias que o analista faz sobre teorias que o analisando faz do analista.

(Bion)

Durante o transcorrer do processo de análise, a disponibilidade da dupla para viver turbulências, para experimentar transformações e para abrir-se para a emergência do novo e do inusitado constituem condição para o desenvolvimento psíquico de ambos.

Hoje, para auxiliar a nós, analistas, em nosso trabalho de enfrentamento das novas configurações patológicas e dos novos modelos de funcionamento mental, contamos com inovações na teoria e na técnica. E são tantas, que a realidade cotidiana frequentemente se nos afigura como uma verdadeira Babel. Reconhecemos que, embora parcial, toda e cada teoria nos auxilia a colocar uma certa ordem e organização na análise e serve de amparo à solidão do analista.

Digamos, então, que a teoria pode ser considerada objeto transicional a que o analista recorre para lidar com o caos da situação analítica durante o necessário "mergulho no abismo", muitas vezes enlouquecido, que são, nas palavras de Nosek (2006), as "maravilhosas construções sintéticas sintomáticas" que o paciente nos traz.

Contudo, apesar dos suportes teórico-clínicos que nos oferecem Freud, Klein, Bion, Winnicott assim como os autores modernos, permanecemos solitários e precisamos adquirir o conhecimento e a experiência sobre nós mesmos, condição sine qua non para o exercício do nosso ofício. Profissão impossível?

Sabemos muito bem que algumas das nossas dificuldades vão permanecer insolúveis, como obstáculos intransponíveis, apesar do empenho que imprimimos na busca do nosso próprio desenvolvimento pessoal. Temos consciência que somos limitados, participantes de uma mesma condição humana: frágeis, impotentes, dependentes, desamparados, vulneráveis... E sabemos, também, que nossos próprios limites em conluio com os limites dos nossos analisandos podem provocar dificuldades no desenvolver das análises, fazendo-nos sentir, muitas vezes, "enfrentando uma neblina" ou mesmo um fog que nos obnubila ou até nos cega. Há situações que se impõem com certa frequência e que nos impossibilita permanecermos como analistas - vivos e pensantes - no decorrer da sessão.

Reações terapêuticas negativas, impasses, enactments, baluartes, reversão de perspectiva, conluios e atuações são criações conjuntas da dupla que, para evitar conflitos, desestruturação ou um terrorífico encontro de conteúdos arcaicos e cindidos das mentes, refugiam-se em pontos de parada ou de retrocesso, mas que podem, no entanto, constituir também pontos de recomeço.

Isso evidencia a necessidade de o analista estar amparado numa formação teórico-clínica sólida e, mais importante ainda, numa experiência pessoal de análise o mais satisfatória possível. O reconhecimento do analista a respeito do funcionamento da sua própria mente, dos seus próprios erros ou equívocos, dos seus pontos cegos, dos seus conflitos reativados pelo paciente - reconhecimento acompanhado de mudança de orientação no processo analítico - poderá contribuir para que este flua mais livremente e se diluam os emperros.

Como destacaram Sandler & Mattos em Ars longa vita brevis,

Curiosa atividade é essa nossa, na qual somos confrontados permanentemente com os estímulos que nos oferece nosso interlocutor e na qual, permanentemente, temos que lidar com as reações que eles suscitam em nós, utilizando justamente esse intercâmbio como o terreno de observações e de reflexões que permitem que exista esta nossa ciência. (2001, p. 997)

Bonaminio (2009) refere-se à "tempestade que se agita atrás do divã, dentro do analista, enquanto escuta o paciente . talvez mais atormentada, às vezes, do também atormentado, contraditório, desesperado 'dizer' do paciente ao analista" (p. 2). Todavia, destaca ainda que "certamente momentos de calma e de tranquilidade, de escuta relaxada e em uníssono com o paciente, aparecem com a mesma intensidade, e tanto o analista quanto o paciente, destes podem aproveitar, ainda que não necessariamente juntos" (p. 2).

E isso, evidentemente, é fruto de um trabalho interno (da parte do analista) e não somente decorrência de uma escuta natural - resultado de um processo contínuo de elaboração.

Sabemos que no início do exercício de nossa atividade profissional há experimentação e aprendizagem e, muitas vezes, rigidez e imitação de mestres. Isso é compreensível, evidentemente, porém pode também haver rebeldia até a nossa aproximação da "idade da razão", quando, amadurecendo, haverá envolvimento genuíno e compromisso.

Concordo com Schkolnik (2010), quanto à afirmação que o trabalho analítico que melhor reflete nossa prática é aquele realizado pela dupla paciente e analista e que implica mudanças em ambos. Evidentemente sem nos esquecer do poder da palavra do analista na situação de análise.

Hartke (s.d.) nos lembra que, em análise é preciso considerar, muitas vezes, aquilo que se configurava como obstáculo pode transformar-se em instrumento de trabalho, somando complexidade e abrindo novos campos de investigação de questões levantadas.

Portanto, é preciso encarar incertezas, conviver com dúvidas, criar, experimentar, rever... pensar, lembrando que no processo analítico estão presentes analista e analisando com seus corpos, suas emoções, seus pensamentos e fantasias. Trata-se da "situação analítica total", em que ocorre um interjogo entre a transferência do analisando e do analista, bem como a contratransferência deste, além das identificações projetivas e introjetivas e as contraidentificações de ambos.

De acordo com os Baranger (1969), o campo analítico ou a gestalt da dupla na situação analítica constitui algo criado entre os dois que não é a simples soma de ambos. Trata-se da formação de uma fantasia inconsciente comum do par.

Vale lembrar, ainda, que Ogden (1994) refere-se às duas subjetividades em tensão dialética com um terceiro intersubjetivo.

Sabemos que sonhos e não-sonhos fazem parte do funcionamento da mente. E assim como os sonhos-a-dois, também é preciso citar os não-sonhos-a-dois, que configuram os enactments, aquelas evacuações de áreas não simbólicas, que pressionam a mente do analista em busca de significação, como tão bem foram caracterizados por Cassorla (2009).

E mais, segundo Baranger & Baranger (1969), a ideia de campo analítico implica que nada ocorre em um dos membros da dupla analítica sem a participação do outro, lembrando que aquilo que realmente importa é a experiência emocional entre os dois, também enfatizada por Bion (1962).

Plagiando Borges que disse certa vez: "quando escrevo, estou sonhando, sei que estou sonhando, mas trato de sonhar sinceramente", da mesma forma, quando estou analisando, estou sonhando, sei que estou sonhando, mas trato de sonhar/analisar sinceramente... É o que, acredito, poderíamos/deveríamos, nós analistas, afirmar.

Nessa realidade relacional e interativa, os sujeitos do diálogo se conectam para que haja uma construção conjunta de significados que se constituem como experiência singular, única, irrepetível e sui generis.

A propósito da questão da intersubjetividade, vale lembrar a interessante consideração de Widlocher (1998-1999) que a concebe como uma ideia vaga e confusa e, para evitar equívocos a respeito do termo, propõe o de "co-pensamento". Trata-se da descrição dos "efeitos que exercem os processos associativos e representacionais do analisando sobre o processo associativo e as representações do analista." (p. 395). Não que seja um artifício, senão a descrição de um "processo de desenvolvimento recíproco da atividade associativa". (p. 396). O co-pensamento, pois, pode ser entendido como um processo de comunicação de inconsciente para inconsciente, e aí voltamos ao início, com que nos ensinou Freud. Considero, portanto, a dimensão intersubjetiva não apenas vital e necessária, como também inevitável para descrever e compreender aquilo que ocorre na sessão com o casal analítico.

Dessa forma, pois, e considerando a argumentação exposta, é assim que entendo a análise e assim tenho procurado fazer o trabalho analítico.

 

3. Para terminar, mas sem concluir

Nihil novi sub sole.

Ao pensarmos o processo analítico, no contexto da psicanálise contemporânea, consideramos a dupla analítica em interação, isto é, o casal analítico como habitante de um lugar de trocas e de intimidade, lugar de narrativas ficcionais e de vida real.

Quanto ao analisando, quero salientar que todo e qualquer sintoma - por mais desconforto e incômodo que provoque nele mesmo ou no analista - consiste no arranjo possível que ele, analisando, conseguiu fazer, tendo em vista a sua sobrevivência psíquica.

Como muito bem ponderou Ferraz (2002), "há sempre algo a ser feito, como nos ensinaram os analistas que ousaram tratar dos pacientes ditos 'difíceis' ou inacessíveis à análise. Esse posicionamento não decorre de um princípio da técnica, mas, antes, de uma disposição ética." (p. 108)

Insisto que não são apenas as interpretações adequadas e precisas, não é o setting asséptico e rigoroso, não é o rigor da técnica que nos fará levar a cabo análises bem sucedidas. Importa todo o conjunto de procedimentos e ações, de interações e comunicações e, sobretudo, a pessoa real do analista e do analisando ali, genuinamente, no encontro de cada sessão, estando ambos postados na sua verdade pessoal e particular.

Acredito que a nossa tarefa é ajudar o paciente no encontro consigo mesmo, ajudá-lo a descobrir ou a encontrar a sua verdadeira identidade, a expressar seu self verdadeiro e, para isso, precisamos explorar com ele as suas fantasias, os seus medos, as suas demandas e o seu desejo mais autêntico. Não abrir mão no que tange ao seu verdadeiro desejo - não foi isso que Lacan nos ensinou?

É preciso que tenhamos uma postura flexível e presente. O paciente necessita não de um analista portador da versão oficial da teoria e da técnica psicanalíticas, mas o que ele deseja é encontrar um interlocutor verdadeiramente interessado nele, no seu discurso que o leve à construção de um novo sentido.

É o útero mental do analista que permite o nascimento do paciente, como afirmou Teresa Flores no VI Diálogo Latino Americano Intergeracional entre Homens e Mulheres, realizado no Rio de Janeiro em 2005. Este útero que é feito da "arte de conversar" e do silêncio, da palavra e da "não-palavra" que é preciso dosar. Muitas vezes, aquilo que a nossa voz transmite não tem importância, porém como foi transmitido, sim, tal como um dia assinalou um paciente: "Não sei bem o quê você me disse, mas me senti tão bem...".

O analista inexperiente preocupa-se com as interpretações clássicas, todavia o importante é a arte da conversação simples, clara, delicada ou contundente, inequívoca. E tanto mais importante o quando mais o paciente é silencioso ou fóbico. Portanto, ser verdadeiramente durante a conversa e estar presente na sua inteireza no encontro, conversando natural e espontaneamente, sonhando o sonho analítico deve ser a nossa conduta, sem nos preocuparmos com as "intervenções corretas".

É bom lembrar que, na prática analítica, alguns preconceitos devem ser demolidos, como por exemplo, o da postura silenciosa e sem emoção do analista.

Gabbard (2005), com quem estou de pleno acordo, disse uma vez que não devemos ter medo do paciente ou do envolvimento com ele, mas sim, é preciso termos um envolvimento vivo com ele! Mais importante até do que o insight do paciente é o seu relacionamento com o analista como nova experiência - fator responsável por mudanças. Todavia, é preciso lembrar também que não se cura uma maneira de ser. ou como diz bonito Freire Costa, essa "consciência trágica, constrita, heróica e dilacerada de que a ferida da existência não tem cura." (1998, p. 18). Há pois, limites em nosso trabalho.

Muitas vezes, nós analistas, podemos ser pretensiosos e, aí, é preciso fazer o luto das nossas ambições terapêuticas. É preciso poder aceitar terminar as análises sob a nossa responsabilidade, livres do desejo de se fazer uma "análise completa", que deve ser substituído pelo reconhecimento de se fazer uma análise como é possível ser feita. Desidealizar o processo.

E, no que diz respeito ao analista, afirmar que ele possui pontos cegos, limitações, não-saber, dificuldades, é apenas dizer que ele continua um ser humano. Se e quando deixar de ser um ser humano comum, ele também deixará de ser um bom analista...

Sempre vale a pena insistir que analisamos pessoas que sofrem (sofrentes) e não "problemas", "desvios", "patologias". Seria impessoal demais...

Ogden (2008), na sua obra Redescobrindo a psicanálise: pensando e sonhando, aprendendo e esquecendo, propõe que falar relaciona-se à livre associação ou aos devaneios - de forma semelhante à "conversa durante o sonho" e que para participar desta conversa, é imprescindível que seja estabelecida firmemente a diferença entre os papéis do analista e do paciente durante o decorrer de todo o processo. Isso garante ao paciente, a relação analítica da qual necessita.

Retomando a ideia de Freud, Ogden (2008) afirma ser, a prática da psicanálise, um esforço de repensá-la e inventá-la com cada paciente. Sonhar e re-sonhar. Descobrir e re-descobrir. Afinal, com cada paciente é preciso estar de maneira especialmente distinta da que estaríamos com qualquer outro. É preciso conversar com o paciente como uma pessoa que chega com medo de falar sobre aquilo que há de mais incômodo, angustiante e perturbador em sua vida - todavia, com a esperança de poder falar- e ser compreendido.

Nesse ponto, lembro-me do nosso grande Guimarães Rosa (1980) quando disse: "conto ao senhor é o que eu sei e o senhor não sabe; mas principalmente quero contar é o que eu não sei, e que pode ser que o senhor saiba."

No mais, insisto que, no núcleo do self do analisando há algo - que é a sua reserva ecológica - que não será jamais comunicado ao analista. O trabalho inconsciente profundo também não é propriamente comunicado, senão apresentado como crescimento e desenvolvimento pessoal.

E nunca será demais enfatizar a importância do analista ser livre, espontâneo e vivo, sem o engessamento coercitivo e caricatural que pode ocorrer da observância irrestrita à neutralidade analítica.

Winnicott frisou que, ao fazer psicanálise, o seu objetivo sempre foi manter-se vivo, manter-se bem, manter-se acordado, ser si mesmo e comportar-se como tal - como destaquei na epígrafe inicial do presente trabalho.

E, então, cabe perguntar: o que impede o analista de ser ele mesmo e de estar vivo na sala de análise? Ali, a complexa relação estabelecida entre o par inclui, obviamente, os componentes dos conflitos de um e de outro, interferindo na transferência e contratransferência.

Assim, é preciso esquecer os modelos e permitir-nos a liberdade de estarmos a sós com o nosso analisando, insistindo que não é possível criarmos soluções fáceis para aquilo que é, mesmo, muito difícil.

Quantas vezes, em análise, ocorre-nos dizer ao paciente: - "Eu estou te ouvindo, te acompanhando, mas não sei o que te falar. Não sei por onde entrar em você."

E a condição do analista não é trabalhar com a incerteza? Com o não-saber? Mas com muito cuidado para não destruir o ninho dos sonhos que o analisando abriga na sua alma...

Como nos lembrou Giovannetti, um dia

se formos capazes de, junto com nossos pacientes, criar condições necessárias de intimidade e de se estar à vontade para que as associações possam ser livres e a atenção flutuante, condições necessárias para que o encontro analítico se dê, poderemos os dois, analista e paciente, um hospedando o outro alternadamente, nos aproximarmos um pouco mais da alma humana.
É esse o nosso desafio enquanto psicanalistas: como favorecer a "visitação" como hospedar e como sermos hóspedes deste outro que nos procura. (2006, p. 31)

Atitudes nossas como criar, improvisar e ser "si mesmo" exigem lucidez, disposição corajosa, sensibilidade e simplicidade, além de consciência das nossas próprias limitações, bem como dos limites da nossa ciência, técnica e arte.

Análises mais abertas, menos ortodoxas, livres da rigidez e do aprisionamento em modelos autoimpostos como camisas-de-força, que permitem a exposição de nossa pessoa, do gesto espontâneo e da nossa paixão, é o que se deseja. Se o analista se mantém vivo, presente, suportando as invasões e sobrevivendo aos ataques, atento ao que se passa consigo, propiciará ao analisando transformações e integração.

Gostaria de lembrar aqui aquilo que McDougall (1978) já o dissera: "Cada homem em sua complexidade psíquica é uma obra única, toda análise, uma odisseia."

Frequentemente, nós analistas, em busca daquilo que está escondido, podemos deixar de ver ou passar por cima do que está presente. É necessário, pois, apurar a escuta. E apurá-la para poder conduzir o homem aonde ele nunca esteve. Muitas vezes, ao silêncio, em cujo silêncio ele possa chorar sem ser importunado...

E mais: não devemos nos esquecer que uma análise pode terminar satisfatoriamente no ponto em que outra poderia se iniciar, reforçando aquilo que Freud (1910) já o garantira, isto é, uma análise não vai além dos limites do analisando e do analista. Ou, nas suas palavras: "nenhum psicanalista avança além do quanto permitem seus próprios complexos e resistências internas" (p. 130). E mais - devo insistir - o analista deve ser competente e humilde para reconhecer os limites da sua própria competência.

 

Referências

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Correspondência:
Ambrozina Amália Coragem Saad
[Sociedade de Psicanálise de Brasília SPB]
Rua Olinto Manso Pereira (antiga Rua 94), 837, sala 102 | Ed. Rizzo Plaza | Setor Sul
74080-100 Goiânia, GO
Tel: 62 3212-3093
aasaad@uol.com.br

Recebido em 1.9.2011
Aceito em 19.9.2011

 

 

1 Prêmio Durval Marcondes.
2 Trabalho não publicado.

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