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Revista Brasileira de Psicanálise

Print version ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.45 no.3 São Paulo July/Sept. 2011

 

TRABALHOS PREMIADOS NO XXIII CONGRESSO BRASILEIRO DE PSICANÁLISE

 

Função interpretativa: dois personagens em busca de sentido1

 

Interpretive function: Two characters in search of a meaning

 

Función interpretativa: dos personajes en busca de sentido

 

 

Sergio LewkowiczI; Alice Becker LewkowiczII

IMembro efetivo e analista didata da Sociedade Psicanalítica de Porto Alegre SPPA
IIMembro associado da Sociedade Psicanalítica de Porto Alegre SPPA

Correspondência

 

 


RESUMO

Partindo das observações de Freud sobre interpretação no clássico trabalho "Sobre o início do tratamento" de 1913, os autores procuram mostrar como pensam que se desenvolveria a atividade interpretativa em sua clínica atual, baseados particularmente em Bion, Baranger, Ogden e Ferro. Preferem utilizar a ideia de uma função interpretativa, mais ampla e que está continuamente presente em nossas mentes. Utilizam-se da peça de Luigi Pirandello, "Seis personagens em busca de autor" e de um caso clínico para ilustrar suas ideias.

Palavras-chave: interpretação; função interpretativa; busca de sentido.


ABSTRACT

Starting from Freud's observations on interpretation in the classic 1913 piece "On beginning the treatment", the authors reflect on how interpretive activity would develop in its current practice, based particularly on Bion, Baranger, Ogden and Ferro. They prefer to use the idea of an interpretive function, which is broader and continuously present in our minds. In order to illustrate their ideas, they use Luigi Pirandello's play, "Six characters in search of an author", and a clinical case.

Keywords: interpretation; interpretive function; search for meaning.


Resumen

Partiendo de las observaciones de Freud sobre la interpretación en el trabajo clásico: "Sobre el inicio del tratamiento", de 1913, los autores buscan mostrar cómo piensan que se desarrollaría la actividad interpretativa en su clínica actual, basados particularmente en Bion, Baranger, Ogden y Ferro. Prefieren utilizar la idea de una función interpretativa, más amplia y que está continuamente presente en nuestras mentes. Utilizan la pieza de Luigi Pirandello, "Seis personajes en busca de autor", y un caso clínico para ilustrar sus ideas.

Palabras clave: interpretación; función interpretativa; búsqueda de sentido.


 

 

Frases! Frases! Como se não fosse um conforto para todos, diante de um fato que não conseguimos explicar, diante de um mal que nos consome, encontrar uma palavra que não quer dizer nada, mas que nos acalma!

(Luigi Pirandello, 1921)

Mesmo que as recomendações de Freud (1913/1976d) em "Sobre o início do tratamento" pareçam restringir-se à abertura do jogo analítico, consideramos que há uma ampla e profunda revisão da técnica analítica utilizada por ele até então. Das questões relacionadas ao contrato terapêutico e ao estabelecimento do setting, passa para o estudo da interpretação e chega ao mecanismo de cura da análise. Este é provavelmente o trabalho que Freud mais dedica ao tema da técnica psicanalítica. O texto inicia com a aclamada metáfora do jogo de xadrez, descrevendo que somente as aberturas e os finais admitem uma apresentação sistemática (Freud, 1913/1976d). Em suas considerações sobre a técnica da psicanálise propõe questões que se mantêm atuais até os dias de hoje.

Qual seria a preocupação de Freud nessa época? Porque ele estaria tão interessado nos procedimentos técnicos da psicanálise? Peter Gay sugere que os trabalhos sobre técnica escritos entre 1910 e 1914 seriam uma resposta aos abusos de uma técnica selvagem que estavam ocorrendo frequentemente, com interpretações prematuras, baseadas em diagnósticos precipitados que só aumentavam a resistência dos pacientes (Gay, 1988). A preocupação maior de Freud naquele momento não era com o diagnóstico acurado, mas com os cada vez mais grosseiros erros técnicos. Assim, decidiu escrever uma série de artigos sobre técnica psicanalítica, baseados em princípios éticos que considerava fundamentais, visando delimitar os procedimentos técnicos que julgava mais apropriados para o seu modelo de mente e de cura da época. Nesse sentido, pensamos que especificamente a erotização do vínculo transferência/contratransferência levando a atuações sexuais dos analistas com suas pacientes também pode ter contribuído para aumentar sua motivação para escrever esses artigos.

Freud, nesse momento, estava essencialmente preocupado em transformar o inconsciente em consciente, sua teoria de cura da época. O objetivo do tratamento era revelar ao paciente suas ideias ocultas no inconsciente para que pudesse recordar as experiências significativas do passado. Já aqui se dera conta que a transferência era o principal veículo propiciador da recordação, mas também a principal resistência para isso (Freud, 1913/1976d). Mesmo nos seus desenvolvimentos posteriores, como o "id" dar lugar ao "eu" (Freud, 1923/ 1976b) ou nas construções em análise (1937/1976a), descreve um analista ativo, objetivo, que sabe quase sempre o que vai encontrar no seu trabalho arqueológico.

Observamos na contemporaneidade uma profunda modificação dessa concepção, pois partimos do princípio que para perceber o humano:

é necessário que se valorize o fragmentário, o não controlável de fora. O paradigma da modernidade, tempo no qual nasceu a psicanálise, talvez tenha influído decisivamente na concepção de nossa tarefa centrada na busca de enigmas a solucionar. Isto fecha as brechas das inconsistências. No entanto, é bom que saibamos que este arredondamento pretendido, esta recordação certeira e inquestionável pode ser letal para o objetivo de nossos tempos. Porque pelo espaço "entre", pela inconsistência não resolvida, pela incógnita viva, aberta e não decifrada, nem decifrável, por este "signo não decifrado" que ... emana a vida. (Moreno, 2010, p. 29)

Voltando ao trabalho de 1913, quando Freud introduz o tema específico da interpretação coloca:

Quando devemos começar a fazer nossas comunicações ao paciente? Qual é o momento para revelar-lhe o significado oculto das ideias que lhe ocorrem, e para iniciá-lo nos postulados e procedimentos técnicos da análise?
A resposta a isto só pode ser: somente após uma transferência eficaz ter-se estabelecido no paciente, um rapport apropriado com ele. Permanece sendo o primeiro objetivo do tratamento ligar o paciente a ele e à pessoa do médico. Para assegurar isto, nada precisa ser feito, exceto conceder-lhe tempo. (Freud, 1913/1976d, p. 182)

Chamou-nos inicialmente a atenção a utilização do termo rapport no texto original em alemão deste trabalho e, verificamos que essa expressão também foi mantida nas versões em inglês, francês e português. Pensamos que Freud equipara neste contexto a "transferência eficaz" com o estabelecimento de uma relação de afinidade emocional, uma relação de confiança mútua, uma reunião a dois (Robert, 1988), aproximação, aliança, vínculo e "uma relação próxima, na qual as pessoas se compreendem muito bem, umas com as outras" (Oxford, 1995, p. 963) (a close relationship in which people understand each other very well).

Quanto à criação de um rapport concordamos plenamente com o postulado no artigo de 1913, mas pensamos que para isto não basta deixar o tempo passar e ter uma "compreensão simpática" (p. 182). Acreditamos ser fundamental nesse processo a possibilidade de construir uma verdadeira experiência emocional com o paciente e para tanto temos de nos aproximar dos estados emocionais presentes na dupla analista-paciente na sessão. Sabemos que esse rapport se estabelece em função da intensa atividade mental do analista e do paciente que ocorre desde o começo do tratamento na constante busca de sentido. A disponibilidade à apreensão das emoções criadas no encontro das duas pessoas, somadas à utilização de interpretações abertas, não saturadas, nos aproxima dos pacientes e amplia nossa capacidade para enfrentar com eles o contato com a dor psíquica.

Ancorados em Bion, Baranger, Ogden e Ferro pensamos que nossos objetivos terapêuticos se modificaram em relação àqueles propostos por Freud. Atualmente estamos mais interessados em apreender as nuances da experiência emocional do par no campo analítico buscando ampliar a capacidade do paciente de estabelecer maior contato consigo mesmo. Assim, pretendemos auxiliá-lo no desenvolvimento de sua capacidade de sonhar, de pensar pensamentos e, dentro do possível, separar o que é inconsciente do que é consciente; o que é realidade do que é fantasia e, o que é seu e o que é dos outros.

Nessa versão do rapport o enfoque está na relação de duas pessoas: o paciente e o analista. Sendo assim, um grau variável de risco para a identidade do analista estará sempre presente, a não ser que ele se encontre entrincheirado numa couraça defensiva que prejudicará seu desempenho. Quando se vive esse risco, "não é um preço pago à neurose (como querem as discussões habituais sobre contratransferência), se não pago ao amor à verdade, única condição que pode realmente propiciar transformações nas pessoas. Desta maneira, o terapeuta, tanto como o paciente, estariam expostos a momentos de desintegração e integração de suas estruturas psíquicas que, em condições ideais, levariam a retomar a assimetria desejada e a adquirir integrações até então inexistentes" (Franco Filho, 1994, p. 326).

Neste contexto, como se desenvolveria a atividade interpretativa do nosso ponto de vista? Ocorreu-nos descrevê-la através da expressão: "Dois personagens em busca de sentido". Nesta busca preferimos o termo função interpretativa (Guignard, 2010), pois abrange o que se dá no campo analítico criado entre os dois personagens e que vai muito além do que é dito verbalmente pelos protagonistas da cena. Assim, inclui o pensado e não dito, o dito sem ter sido pensado, as ações interpretativas (Ogden, 1994) e as narrativas construídas pela dupla.

Pensamos que esta função é inerente aos seres humanos e pode ser descrita como uma busca de sentido para as emoções vividas (Ferro, 2010; Guignard, 2010, Moreno, 2010) e também podemos nomeá-la como propôs Bion (1962) de função psicanalítica da personalidade.

A função interpretativa está relacionada com a constituição da função alfa e com o desenvolvimento do aparelho para pensar os pensamentos (Bion, 1962). Consideramos que os sonhos diurnos e noturnos, ou seja, o próprio trabalho de sonho (Bion 1962, Grotstein, 2007 e Ogden 2005) é uma das manifestações da atividade da função interpretativa. Neste sentido, concordamos com Ogden (2005) quando chama a atenção para a diferença das concepções sobre o trabalho do sonho em Bion (1962) e Freud (1900/1976c), segundo o autor:

o trabalho de sonho de Freud permite que derivativos do inconsciente tornem-se conscientes, ao passo que o trabalho de sonhar de Bion permite que a experiência vivida consciente torne-se inconsciente... (Ogden, 2005, p. 100)

Uma função com características semelhantes pode ser observada, levando-se em conta outro referencial, quando consideramos a necessidade de um trabalho psíquico, a necessidade de representação exigida pela pulsão, conforme Freud e os desenvolvimentos da escola francesa de psicanálise, como os trabalhos de Green e mais recentemente Aisenstein (2010).

Consideramos que é particular da psicanálise a criação de um espaço para dois personagens se encontrarem com a finalidade de buscar um sentido para a experiência emocional que está ocorrendo entre eles. Parece-nos fundamental nesse rapport o que Bion descreveu como capacidade de continência e capacidade negativa em ambos os participantes do processo, mesmo que inicialmente um deles tenha que ser o guardião dessas potencialidades.

Ninguém tem ombro para suportar sozinho o peso de existir.
Afinal, a vida se confirma à força de rasgão:
ela dilacera logo no ato de nascer,
separando mais que a própria morte.
(Mia Couto, 2001)

O paciente A.2 buscou tratamento por estar preocupado com sua dificuldade de se relacionar com as pessoas, particularmente os pais. Estava com 19 anos de idade, tentando sua segunda Faculdade, na qual também não se sentia bem e pensava em abandonar os estudos para trabalhar. Não conseguia conviver com os pais, evitando falar com eles e até de fazer as refeições na companhia deles, comendo sozinho na cozinha. Andava com dificuldades também com seus poucos amigos, mantendo-se afastado do contato com eles. Nunca tinha tido namorada e nem relações sexuais até aquele momento. Na verdade, o lugar em que se sentia melhor era um terreno baldio ao lado de sua casa, onde passava várias horas por dia, às vezes dormindo, às vezes só deitado, mas ficava ali, sem ninguém reclamar nem cobrar nada dele. Descreveu também que os pais estavam muito preocupados com ele. Durante as consultas iniciais mencionou que era muito próximo de seu avô materno e que este era sobrevivente de um campo de concentração nazista, não falando mais sobre esse assunto.

Após um longo período de avaliação resolvi lhe indicar análise com 4 sessões por semana, o que ele aceitou com certo ceticismo. Por cerca de dois anos, manteve-se com um comportamento muito distante emocionalmente. Nessa época, várias vezes se referiu a um sonho, onde se via só em um castelo, cercado por águas profundas, intransponíveis, e a única passagem era através de uma ponte levadiça que estava sempre fechada. Esta era exatamente a sensação que ele me despertava: sentia-me excluído. Isso se acentuava ainda mais quando eu lhe fazia alguma interpretação, pois ouvia educadamente e seguia exatamente do ponto onde havia parado. Era como se eu estivesse ali apenas para ouvi-lo, pois falava muito, de vários assuntos ao mesmo tempo, dando impressão de uma enorme necessidade de descarga.

Por volta do terceiro ano de análise, sua conduta foi se transformando no oposto disso. Quase não falava e, assim passamos por períodos de silêncio cada vez mais longos. Quando eu lhe perguntava sobre o que havia pensado durante os momentos de silêncio, me respondia que ficava ouvindo e cantando músicas conhecidas. Após alguns meses desse período silencioso e difícil, em uma sessão, ocorreu-me perguntar-lhe em que música estava pensando e, ele me respondeu: na canção "The Wall" de Pink Floyd. Resolvi então rever o filme e fiquei surpreso e comovido com a espantosa semelhança entre a história do filme e a situação de A. Assim, aos poucos foi surgindo toda a situação de perdas, lutos, segredos e tragédias dessa família com o Holocausto. Fui descobrindo com o paciente que os avós eram sobreviventes de Auschwitz, local onde se conheceram e de onde partiram para se casar e vir para o Brasil, tentando refazer suas vidas, após a destruição de suas famílias anteriores. O paciente ficou sendo o familiar mais próximo desse avô e para quem ele constantemente conta as histórias do Holocausto, em um gabinete, no qual o avô coleciona documentos, fotos, cartas e lembranças dessa época terrível para ele. O lugar, segundo A. é escuro e triste.

A análise de A. apresentou uma mudança significativa a partir desse momento, particularmente por meio de uma progressiva aproximação na sua relação comigo, da mesma maneira que com outras pessoas de sua vida. A presença de sentimentos foi ficando cada vez mais frequente nas sessões e estes passaram a ficar mais vivos e dinâmicos.

Esse caso foi atendido há mais de 20 anos. Na época o analista não dispunha dos desenvolvimentos sobre trauma, transgeracionalidade e intersubjetividade que foram se consolidando nos últimos anos. Nem o analista, nem o paciente deram muita importância inicialmente à situação do Holocausto na família do paciente. Aquilo surgiu no campo analítico, surpreendendo ambos após alguns anos de análise. Pensamos que as emoções relacionadas com a "dor" sofrida pelos avós do paciente em sua vivência do Holocausto eram insuportáveis e só puderam ser "sofridas" após o estabelecimento de um rapport que sustentasse o risco de uma experiência emocional de desespero e desamparo extremos. A partir daí foi possível perceber que entrara no campo uma melodia que, gradativamente, foi se transformando num sonho a dois. O que antes dava a impressão de apenas uma conduta bizarra, como passar várias horas por dia em um terreno abandonado, agora podia ter sentido: A. encenava o abandono, o desespero, o isolamento e a situação de desprezar e ser desprezado. Na perspectiva teórica proposta neste trabalho, podemos argumentar que o analista participou ativamente no processo de manter elevada a "ponte" do castelo do sonho do paciente, pois ainda não havia condições de compartilhar o desespero inserido no interior do mesmo. Em outras palavras, seria como se nessa primeira etapa, a fantasia do analista fosse a de retirar o paciente do terreno baldio, sem precisar entrar nesse "terreno minado", pois isso significaria ter que se defrontar com emoções terríveis para ele mesmo. Como o analista era judeu e filho de imigrantes judeus que fugiram da Europa um pouco antes do Holocausto, viver essas emoções também era muito difícil. Hoje pensamos que a "ponte levadiça" só poderia ser baixada à medida que a capacidade negativa e a função interpretativa fossem sistematicamente desenvolvidas.

Quando um personagem nasce, adquire logo uma tal independência, até mesmo do próprio autor, que pode ser imaginado por todos em muitas situações nas quais o autor não pretendia colocá-lo, e adquirir também, as vezes, um significado que o autor jamais sonhou em lhe dar.
Luigi Pirandello (1921)

No campo analítico pensamos que a interação entre as mentes do paciente e do analista irá ampliando a capacidade de continência das ansiedades presentes. Pela capacidade negativa e capacidade de rêverie do analista se possibilitarão transformações de afetos brutos em emoções que possam ser vividas e pensadas. Em condições favoráveis o paciente introjeta essas funções e passa a exercê-las mais autonomamente, como possivelmente ocorre no desenvolvimento normal do indivíduo.

Quando o desenvolvimento dessa função está inadequado ou danificado, nos parece necessária a presença de uma espécie de "incubadora" da função interpretativa, ou seja, a criação de um campo analítico que permita a recuperação dessa função. Meltzer (1994) propõe que o método analítico compreende uma recapitulação das misturas das mentalidades da mãe e do bebê, de modo que novamente duas mentes possam cooperar trabalhando para investigar e descreverem-se a si próprias uma à outra. Nemas (2010) desenvolvendo essas ideias de Meltzer, nos alerta, no entanto, que esse processo é muito difícil para o analista, pois se ele estiver verdadeiramente disponível ele terá sua mente invadida pela loucura do paciente, criando emoções, às vezes, insuportáveis.

Em qualquer análise estamos sempre oscilando entre estados mais integrados (parte neurótica da personalidade) e mais desintegrados (parte psicótica da personalidade). Pensamos que a função interpretativa ocorre em vigência dessa oscilação e se perde em sua ausência. Em momentos de presença de intensa dor psíquica no campo, com emoções de desespero e de sensação de enlouquecimento, pode-se perder a capacidade de transformar essa dor em sofrimento. O risco é de se cair em uma concretização da atividade interpretativa levando ao uso de intervenções saturadas e teóricas, perdendo-se a função interpretativa e a ambiguidade da rede simbólica. Entraríamos, então, em momentos de "não sonho a dois" (Cassorla, 2009) que são essenciais e inevitáveis em qualquer processo analítico e que deveriam ser utilizados para a recuperação da função interpretativa e, assim, levar para a abertura de novos sentidos possíveis. Nesses momentos os dois personagens em busca de sentido perdem momentaneamente suas características de personagens do jogo analítico (de personagens de sonho a dois) e passam a ser pessoas em equilíbrio com a realidade concreta, perdendo-se assim "o ir e vir, o percorrido, a oscilação: em suma a dinâmica que nos reúne" (Green, 2002, p. 40).

A busca ativa da interpretação correta pelo analista seja "transferencial", "mutativa", "reconstrutiva", entre outras, nos parece relacionada a uma tentativa de se evadir de vivenciar emoções que possam estar surgindo na situação analítica. Dessa maneira se tentaria aumentar a assimetria entre os participantes e assim, garantir uma segurança próxima ao modelo médico tradicional onde o conhecimento é apenas de um e a dor somente do outro membro do par. Novamente concordamos com Ferro (1995) quando diz que não acredita "que exista a interpretação certa, mas uma viagem feita de contínuos acertos, tentativas e erros... que constituem a estrada... numa caminhada de contínuas oscilações" (p. 115).

A resistência à interpretação no campo analítico, em qualquer um de seus participantes seria uma resistência à passagem de K para O no referencial de Bion (1965) e Ferro (1997), ou seja, do conhecimento da experiência emocional para a vivência desta experiência, com a turbulência emocional que ela acarreta, em função da mudança catastrófica que mobiliza.

Portanto, consideramos decisivo que se desenvolva a capacidade negativa no par analítico, em outras palavras, a "tolerância para estar em incertezas, mistérios, dúvidas, sem atingir nenhum estado irritável após fato e razão" (Keats, 1817, citado por Bion, 1970, p. 131).

Ainda utilizando uma classificação de Ferro (1997) podemos considerar as interpretações como sendo de três tipos:

a) as interpretações não saturadas ou fracas, localizadas junto a PS (Posição Esquizo-paranoide), portanto menos integradas;

b) as interpretações saturadas, localizadas junto à PD (Posição Depressiva) relacionadas com a integração e o fato selecionado (Bion, 1962), sendo típicas as interpretações saturadas de transferência e

c) as interpretações narrativas que seriam intermediárias no eixo PS <-> D e que implicam uma não saturação de PS, mas já com imagens de PD, aqui o analista deve fazer construções com o que está acontecendo na sessão. O autor coloca também a possibilidade de interpretações evacuadoras ou atuações do analista, quando sua mente não está funcionando de maneira adequada.

Na nossa prática clínica constatamos que todas essas formas de interpretação estão sempre presentes no campo analítico com qualquer tipo de paciente. Assim, quanto mais houver oscilação entre elas, mais criativa será a função interpretativa, por outro lado, quanto mais houver equilíbrio, menos criativo será esse processo, podendo surgir uma forte tendência para uma homogeneização do funcionamento do par propiciando o estancamento da função interpretativa e a consequente perda da ambiguidade necessária.

Vemos o processo analítico como uma oscilação de momentos criativos com a função interpretativa preservada no campo analítico e, outros momentos em que ela se perde em função de tensões por vezes insuportáveis tanto para o paciente como para o analista. Seriam instantes de certa "trégua" intelectual ou saturada frente a situações ainda não possíveis de simbolização ou mentalização.

O drama está em nós,
o drama somos nós;
e estamos impacientes para representá-lo,
sentindo dentro de nós,
cada vez maior,
a urgência da paixão!
Luigi Pirandello (1921)

O campo analítico se estabelece no espaço transicional (Winnicott, 1951) e foi pensando nesta conceituação da relação analítica que recorremos à metáfora proposta por Luigi Pirandello em "Seis personagens à procura de autor" (1921). Na peça o autor discute a ambiguidade entre realidade e ficção, desmistificando as fronteiras aparentemente tão nítidas entre ambas. Valendo-nos das palavras do próprio Pirandello, na peça, quando o personagem Pai se dirige ao Diretor:

não temos outra realidade além da ilusão, o senhor também deveria desconfiar da sua realidade, essa que o senhor hoje respira e apalpa em si mesmo, porque - assim como a de ontem - ela também está destinada a, amanhã, revelar-se uma ilusão. (Pirandello, 1921, p. 123).

Ao trazer para a cena personagens que desejam, ou melhor, necessitam ser representados, o autor descentra o desejo do diretor e dos atores que passam a reagir a um drama que já não lhes pertence mais. O confronto permanente entre personagem, ator, diretor, autor, realidade, ficção vai mobilizando no espectador a percepção que nossa existência se dá muito mais no "entre" do que em um lugar definido.

Com intensa sensibilidade Pirandello traz para a cena teatral o sofrimento humano em seu estado bruto e propõe que possa ser vivenciado, experimentado na pele do outro. Em muitos momentos fica evidente o risco de nos distanciarmos da vivência emocional proposta e, até mesmo da impossibilidade de albergarmos determinados aspectos da dor psíquica dos personagens.

Cremos que na cena analítica estamos constantemente nesta luta entre tolerar a entrada de certos personagens e o desejo de impedi-los de ter acesso ao campo.

Pirandello no nosso entender coloca a morte de uma criança e o suicídio de um jovem como situações que ao entrarem em cena interrompem o processo de representação. Para nossa abordagem representariam o que descrevemos como dor psíquica insuportável para ser transformada em sofrimento encenado e sentido no campo analítico.

Na cena analítica os limites da função interpretativa dependerão do rapport construído entre o analista e seu paciente de acordo com as potencialidades específicas de cada dupla.

Já no espaço da poesia a função interpretativa nos pareceu magnificamente ilustrada nas palavras de Jorge Luiz Borges:

Arte Poética

Mirar el río hecho de tiempo y agua
y recordar que el tiempo es otro río,
saber que nos perdemos como el río
y que los rostros pasan como el agua.

Sentir que la vigilia es otro sueño
que sueña no soñar y que la muerte
que teme nuestra carne es esa muerte
de cada noche, que se llama sueño.

Ver en el día o en el año un símbolo
de los días del hombre y de sus años,
convertir el ultraje de los años
en una música, un rumor y un símbolo,

ver en la muerte el sueño, en el ocaso
un triste oro, tal es la poesía
que es inmortal y pobre. La poesía
vuelve como la aurora y el ocaso.

A veces en las tardes una cara
nos mira desde el fondo de un espejo;
el arte debe ser como ese espejo
que nos revela nuestra propia cara.

Cuentan que Ulises, harto de prodigios,
lloró de amor al divisar su Itaca
verde y humilde. El arte es esa Itaca
de verde eternidad, no de prodigios.

También es como el río interminable
que pasa y queda y es cristal de un mismo
Heráclito inconstante, que es el mismo
y es otro, como el río interminable.

(Jorge Luis Borges, 1960)

 

Referências

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Correspondência:
Alice Becker Lewkowicz
[Sociedade Psicanalítica de Porto Alegre SPPA]
Rua Luciana de Abreu 267/405
90570-060 Porto Alegre, RS
Tel: 51 3273-4941
alicebl@terra.com.br

Sergio Lewkowicz
[Sociedade Psicanalítica de Porto Alegre SPPA]
Rua Luciana de Abreu 267/405
90570-060 Porto Alegre, RS
Tel: 51 3273-4941
sergio.lewkowicz@gmail.com

Recebido em 2.9.2011
Aceito em 16.9.2011

 

 

1 Prêmio Fábio Leite Lobo.
2 Esse caso foi apresentado com mais detalhes no congresso da Federação Europeia de Psicanálise epf em Viena, abril de 2008 com o título: "The shadow of heritage on future generation of victims and perpetrators - the breaking of the wall", e está publicado no Boletim Belga de Psicanálise, 2010.

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