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Revista Brasileira de Psicanálise

Print version ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.45 no.3 São Paulo July/Sept. 2011

 

TRABALHOS PREMIADOS NO XXIII CONGRESSO BRASILEIRO DE PSICANÁLISE

 

E-setting: um dia ordinário no consultório de um psicanalista1

 

The e-setting: an ordinary day in a psychoanalyst's office

 

E-setting: un día cualquiera en el consultorio de un psicoanalista

 

 

Denise Salomão Goldfajn

Membro associado da Sociedade Brasileira de Psicanálise do Rio de Janeiro SBPRJ

Correspondência

 

 


RESUMO

A cada dia vemos crescer em nossos consultórios, comunicações eletrônicas entre pacientes e analistas. Essas comunicações variam entre emails, mensagens de texto, uso do Google e do Skype, a convites para que analistas participem de comunidades virtuais e conversas "em tempo real" (chats). O mundo virtual ou ciberespaço apresenta-se no material manifesto trazido pelos pacientes na sessão, desafiando o tradicional setting, definido como o encontro físico do par analítico no consultório, em horários pré-estabelecidos. O que podemos entender por esse tipo de comunicação? Como torná-las parte do processo analítico?
Partindo de vinhetas clínicas, o presente trabalho aborda aspectos da evolução do ciberespaço na cultura e no discurso psicanalítico. A partir desse mapeamento, algumas ideias de Bion e Winnicott são utilizadas, principalmente, usando o entendimento transferencial como principal via para criar significado ao material manifesto, ampliando a transferência para além do tempo e do espaço da sessão clínica.

Palavras-chave: ciberespaço; setting; transferência; transitoriedade; paradoxo.


ABSTRACT

Everyday, in our clinical practice, we witness the growing occurrence of electronic communication between patients and analysts. Such communications range from e-mails to text messages. They vary from the use of tools such as Google and Skype, to invitations for the analyst to join virtual communities and on line chats. The virtual world, or cyberspace, is seen in the manifest material brought by the patients in the session, challenging the traditional psychoanalytic setting, where patient and analyst meet physically at the psychoanalyst's office, at previously arranged hours. What can we gather from this type of communication? How to transform it into part of the clinical process? Starting from an assemblage of clinical vignettes, this paper touches upon some aspects of cyberspace in the clinical setting, namely the evolution of cyberspace in psychoanalytic culture and discourse. Taking this outline, some of Bion and Winnicott's ideas are adopted, especially using the concept of transference as a primary pathway to create meaning for the manifest clinical material, broadening the transferential relationship beyond the time and the space of the clinical session.

Keywords: cyberspace; setting; transference; transience; paradox.


RESUMEN

Todos los días en nuestra práctica clínica, vemos el uso creciente de las comunicaciones relacionadas con el mundo virtual. Estas comunicaciones varían desde correos electrónicos, hasta mensajes de texto, el uso de herramientas como Google y Skype, e invitaciones a participar en comunidades virtuales y conversaciones en tiempo real (chats), desafiando el tradicional encuadre psicoanalítico, donde el paciente y el analista se encuentran físicamente en la oficina del psicoanalista en horas programadas. ¿Cuáles son los significados de estas comunicaciones? ¿Cómo hacerlas parte del proceso analítico? A partir de un conjunto de viñetas clínicas, este trabajo propone posibles significados del surgimiento de la comunicación virtual en el ámbito clínico, analizando la evolución del ciberespacio en la cultura y en el discurso psicoanalítico. Luego, tomando algunas ideas de Bion y Winnicott, la transferencia se establece como principal vía para dar significado a estas comunicaciones, tomadas como material manifiesto, reiterando la presencia de la transferencia como un concepto expansivo, presente más allá del tiempo y del espacio de la sesión.

Palabras clave: ciberespacio; comunicación virtual; encuadre; transferencia; transitoriedad; paradoja.


 

 

As vinhetas clínicas apresentadas nesse trabalho, foram modificadas para garantir confidencialidade.

Segunda-feira no consultório de um psicanalista:

 

Paciente 1

A paciente a quem chamarei de P1 chega pontualmente para o horário de sua sessão. P1 entra, se deita, se ajeita um pouco e diz: "Tenho uma confissão a fazer, eu googlei você na internet"

Tenho algumas reações à afirmação de P1: 1. Surpresa: por que "googlar" nesse momento, após seis anos de tratamento?; 2. P1 poderia estar comunicando alguma forma de estar comigo frente a separação durante o final de semana; 3. P1 fala em confissão e uma confissão requer uma penitência.

A sessão toma rumo e se encadeia com o material da paciente, sua web-page. Falamos de sua recente separação do marido, da curiosidade de espiar eu-marido, como espiar uma cena incestuosa, como ver o quarto dos pais. Confissão: a repressão que ela identifica na mãe que reprime os impulsos agressivos e também criativos da paciente. Há um encadeamento de ideias e emoções. É uma sessão frutífera, onde a paciente sente que pode fazer e dizer coisas para mim sem que provoque retaliação. É na força do fluxo das associações que vejo a liberdade que ela experimenta no ato de se separar, da mãe, do marido e de mim durante o final de semana e formas que ela pode encontrar de me espiar, mas usar seu ato sem me excluir, afinal uma confissão é uma forma de tornar público algo que deve ser expiado, visto: retirado ou incluído, que pode levar ao castigo e/ou redenção.

 

Paciente 2

P2 chega pontualmente essa é a primeira sessão de seu tratamento comigo, após entrevistas iniciais. P2 entra, senta-se em frente a mim, ignorando uma sugestão anterior para que se deite. Inicia falando:

P2 - Esse é o seu celular? - apontando para a estante próxima, onde está meu celular?

D. - Não vejo ainda razão para não responder, penso em dizer-lhe que está no silencioso, mas prefiro ser mais sucinta: "É sim."

P2 - Ah! Aqui está o meu também - retira o celular da bolsa - gostaria de pedir-lhe algo, sei que vai parecer estranho, mas vou me sentir melhor se você pudesse retirar a bateria do seu celular. Também vou tirar a bateria do meu. É que sei que existem certos softwares que podem escutar nossa conversa, mesmo estando o celular desligado. P2 retira a bateria de seu celular e aguarda que eu retire a bateria do meu.

D - Parece que isso é importante para você, mesmo que ainda não entenda bem o que poderá ser escutado e por quem. - Enquanto digo isso, retiro a bateria do meu. Penso que deveria ter posto o meu celular na bolsa, mas agora é melhor eu retirar a bateria para ver onde isso vai dar.

A paciente começa a falar, na verdade continua de onde paramos nas entrevistas iniciais. Fala sobre o motivo que a trouxe à análise: a descoberta da infidelidade de seu parceiro, a dor que isso causou. Fala de uma análise anterior de longa de duração que ela diz nada ter adiantado porque ela se sentia sempre criticada pelo analista. Conta que tem pensamentos suicidas. Não há espaço para mim na sessão, fico ali como cúmplice tentando entender se sou parceira, se sou a traída ou traidora, estamos ainda no início de uma jornada que deve ser longa e tortuosa. Me dou conta do "longo e tortuoso", costumo achar isso quando não entendo bem o que está se passando. Percebo que a paciente consegue que eu faça coisas, como mostrar meu celular, retirar a bateria, sem que eu possa elaborar, sinto-me revelando mais do que gostaria, talvez exposta. A paciente segue falando, mas meus pensamentos seguem na direção de seus atos, que mostram um outro discurso. Penso nos possíveis diagnósticos, no relato que invalida uma análise anterior de longa duração. Seria uma paciente borderline? Limítrofe na capacidade de manter-se em uma relação? Estaria ela tendo um delírio ao pedir que eu retirasse a bateria do celular? Me lembro de outro paciente, que retirou a bateria do dele, dizendo a mesma coisa, a lembrança, me apazigua um pouco, alguma realidade no delírio, ou um delírio socialmente compartilhado. Quando a sessão termina, vou logo em direção ao meu celular que está em pedaços, o que não me agrada muito. Ao remontá-lo, penso na forma da paciente de mostrar me seu estado mental: desmontado.

 

Paciente 3

O paciente chega atrasado, meia hora. Está há quatro anos em tratamento comigo, vem pouco às sessões, mas mantém contato via email entre sessões.

Entra se deita e diz:

P3 - Desculpe o atraso, mas de novo não consegui acordar. Fiquei jogando até tarde. Reparei que estou de novo voltando a esse vício, pior é que agora consigo fazer escondido de A (esposa). Descobri um novo jogo que não demora tanto quanto o outro. Espero que todos durmam e aí vou jogar na internet, acho que estou viciado mesmo, me pego pensando que nem os cocainômanos: É só um pouquinho, posso controlar, mas sei que não posso, tenho medo que isso me atrapalhe no trabalho e em meu casamento.

D - Você fala de seu atraso, mas o que escuto é um descompasso, entre o real e o virtual, entre estar dormindo e estar acordado. No jogo parece ser mais fácil, mais homogêneo.

P3 - É verdade, no jogo me sinto bem, igual ou melhor que aqueles que jogam comigo. Esse novo jogo é mais rápido e mais simples, só que você pode montar equipes e, quando já ia desligar, apareceu um sinal para que eu entrasse em uma equipe... bom também é uma forma de fazer relações, conheço muita gente interessante, de todas as partes do mundo, quando fui ver já estava amanhecendo, fui rápido para cama antes que meu filho acordasse. Eu fico cheio de culpa com isso.

A sessão caminha em torno da autocomiseração de P3 e da manutenção que ele faz de mim como alguém que está alternando entre o mundo real, com quem ele não consegue encontrar quando não vem às sessões ou se atrasa e alguém de seu mundo virtual, com quem ele encontra por email, remarca suas sessões e para quem ele pode contar sobre seu desenvolvimento no jogo virtual. Ainda que interprete, tentando fazer uma ligação entre esses dois mundos, o mundo transferencial e o virtual, a conexão é frágil, não sei jogar seus jogos sofisticados, meu jogo é outro, não é o da interface, é o jogo do face a face. Sua presença nas sessões é fraca e sinto dificuldade em manter a conexão transferencial, criar uma tensão que tenha mais sentido que suas relações virtuais, mais ricas e plenas para o paciente. Percebo que caminhamos muito mais devagar que suas conexões com a internet. Termino a sessão pensando que o ajudo pouco, empobrecida frente a plenitude de seu vício.

 

Intervalo

Tenho um intervalo, vou até a secretária eletrônica, nenhuma mensagem. Pego meu celular. Uma mensagem de texto e emails. Em meio a "spams" ou propagandas, duas mensagens de pacientes na caixa de entrada.

 

Paciente 4

Primeira mensagem de texto: "Oi D., estou aqui no TS, NY (Times Square, Nova Iorque), se vc entrar na net nos próximos 20 mins poderá me ver pela câmera da rua em tempo real, www.timessquare.com. Obgd por tudo. Abc P4."

Depois de sete anos de tratamento P4, que não podia sair de casa - com sintomas de pânico e agorafobia -, estava querendo compartilhar comigo sua alegria. Meu entendimento do que P4 quer comunicar faz que eu não tenha necessidade de responder, falaremos em seu retorno, na próxima semana.

 

Paciente 5 - Primeiro email

Prezada Dra. D.: Passei mal esta noite, com sintomas de gripe. Acho que nem lhe convém me encontrar hoje. Assim peço seus dados bancários e o valor referente do mês que termina para que eu possa providenciar a devida transferência. Agradeço sua atenção, P5.

P5, é um paciente itinerante que vejo três vezes na semana, está há quase um ano em tratamento. Tem sessões que flutuam pela semana. Por força de seu trabalho, ele divide sua semana viajando por diferentes cidades. Embora pareça difícil o setting vem funcionando, temos comunicações constantes por email que se resumem à marcação de horários quando P5 não pode vir nos horários estabelecidos. Esse email é diferente dos outros. Na última vez que nos vimos, irritou-se com uma interpretação sobre a presença da figura de seu pai. Ele havia me dito no começo do tratamento que não queria falar sobre isso, mas na última sessão em uma interpretação disse-lhe que embora ele não quisesse falar sobre isso, a ausência do pai era muito presente nas situações que ele estava descrevendo e se não pudéssemos discutir isso, eu estaria repetindo essa ausência. P5 ficou com raiva, magoado, sua face vermelha, seu tom de voz embargado, manifestou essa raiva dizendo sentir-se incompreendido, disse que seu desejo era que seu pai estivesse morto e então não se sentiria forçado a falar sobre ele. Portanto, sua comunicação por email parece dar continuidade ao que vínhamos trabalhando. Respondo prontamente aos seus emails, que são sempre curtos e objetivos, em relação a mudanças de horário. Não querendo modificar esse padrão sinto que devo responder logo ao email. Penso no texto de suas palavras "nem lhe convém me encontrar", que relembrando sua última sessão queria dizer: não me convinha entrar em contato com sua raiva que poderia ser mortífera ou suicida como no caso de seu adoecimento. Além disso havia a ameaça do final de tratamento, se lhe mandasse minha conta estaria aceitando uma possível ruptura de tratamento, ele não me deveria mais nada, então respondo:

- Prezado P5, obrigado por sua consideração. Espero que você tenha um pronto restabelecimento e o espero, então, para sua sessão no dia e horário alternativo que temos agendado. Sobre o pagamento, acertamos quando você vier. D.

 

Paciente 6: Segundo email

As coisas por aqui não vão nada bem, minha nora não me deixa ver o netinho, meu filho viajou a trabalho e essa megera controla meus horários de saída e entrada. Faz muito frio aqui e não tenho para onde ir. Minha pressão voltou a subir. Sinto-me sem controle. Gostaria de falar com você, pode ser pelo Skype? Me diga qual o horário que você tem. Por favor responda logo que puder. Obrigada. P6.

P6 viaja constantemente para visitar o filho e a filha que moram em países diferentes, fora do Brasil. Tem um histórico de vida de muitas perdas, além de muita vitalidade, aparenta ter menos idade do que realmente tem. Sua aparência, contudo, não revela a fragilidade de sua saúde que inspira cuidados. P6 tem pressão alta oscilante e diabetes descontrolada e por isso foi indicada para mim por seu clínico, quando somente as medicações não davam conta de manter sua pressão e sua saúde fora de perigo. Para manter o setting, penso em vê-la em um dos horários de suas sessões. O fuso, contudo, não permite que isso seja feito. Terei de marcar no final do dia e sair mais tarde do consultório. Mando um email com a sugestão de horário.

O próximo paciente, número 7, chega e eu penso: Que droga, não consegui descer para tomar um café. Me lembro de Eliza.

 

Lembrando Eliza - O extra-ordinário e-setting

Eliza é um programa de computador pioneiro na área de inteligência artificial. Criado em 1966 por Joseph Weisenbaum, um acadêmico do departamento de ciências cognitivas do MIT (Massachusetts Institute of Technology), o programa imita um psicoterapeuta de linha rogeriana. Funciona da seguinte forma: uma pessoa digita na tela do computador uma pergunta ou afirmação e tecla enter. A pseudopsicoterapeuta Eliza responde reordenando as frases emitidas em resposta ao interlocutor e em alguns momentos lança perguntas sobre a mãe e o pai, de forma intermitente. Embora tenha sido criado como uma piada, para mostrar como era impossível que um computador tivesse inteligência própria, o inventor do programa se viu surpreso ao encontrar pessoas tendo conversas reais, ainda que soubessem que tratava-se de uma programação mecânica. Alguns usuários diziam preferir Eliza do que um terapeuta de carne e osso. O nome Eliza foi dado em homenagem ao personagem da peça de Bernard Shaw, Pigmaleão (1916) que conta a história de Eliza Doolitle, uma vendedora de flores ambulante de baixo poder aquisitivo. Um professor de fonética decide reeducá-la para fazê-la passar por dama da sociedade e se apaixona por sua criação, como no mito grego de Pigmaleão.

O programa existe até hoje e foi desenvolvido, Eliza agora fala e tem imagem. Trata-se de uma antropomorfia, dar vida a algo que é mecânico. A surpresa é encontrar pessoas que dizem sentir-se melhor com o pseudoterapeuta, ainda que saibam tratar-se de uma farsa. No mito de Pigmaleão, um artista faz uma escultura de mulher perfeita e se apaixona por ela. O interessante no mito é que os deuses atendem ao desejo de Pigmaleão e, devido ao seu amor e dedicação intenso, dão vida à mulher de mármore. Pigmaleão é um contraponto interessante ao mito de Narciso. Com Narciso os deuses o castigam, por ele repudiar o amor das ninfas, fazendo-o se apaixonar por sua própria imagem, ainda que ele acredite que era a imagem de outro, um amor inalcançável. Pigmaleão é premiado onde Narciso é castigado. Pigmaleão tem a capacidade de investir amorosamente, Narciso não.

O autor do programa Eliza se viu tão despontado com o resultado do sucesso de seu programa que se afastou das pesquisas temendo ter criado algo que distanciasse as pessoas em vez de aproximá-las. Imaginou-se Pigmaleão, mas experimentou o empobrecimento de Narciso. Foi, contudo, a partir dessa primeira tecnologia que se desenvolveram programas que conhecemos hoje como interativos, avatares que são selves virtuais, jogos como The Sims e Wee da Nintendo. Lembro de Eliza, porque com todos esses avanços tecnológicos tornamo-nos psicanalistas para além do consultório e do divã, mecânicos e humanos, narcisos e pigmaleônicos. O que significa estar disponível de forma real e virtual? Lembro-me da propaganda de um banco local: "Disponível para você 30 horas por dia". Entenda-se: Seis horas da agência bancária fisicamente aberta aos seus serviços, mais vinte e quatro horas de disponibilidade on line. Essa metáfora atende aos serviços contemporâneos da clínica psicanalítica e nos faz pensar sobre a condição de estarmos inconscientemente vinculados aos nossos pacientes para além de um contato físico ou material, para além do tempo da sessão e do espaço do consultório, abrindo a discussão para que novos contatos de qualidades diferentes possam ser examinados.

Um dia ordinário de trabalho na vida de um psicanalista quer dizer ter que lidar com todas essas novas tecnologias como se fosse um contínuo ao setting analítico. Quando estamos presentes na função analítica estamos sendo veículo de transferências objetais de nossos pacientes. Mas só podemos perceber isso dentro de um contato que transcende o texto e que inclui o intuído. Já quando estamos presentes apenas virtualmente a intuição fica restrita, sendo alimentada pela memória de um contato, com todas as dificuldades que Bion (2007) nos ensina sobre os limites da memória e do desejo. Como traçar, então, diferenças e limites ao contato carne e osso e o que representa esse contato? Podemos aqui discutir como limitar esse contato, se devemos responder emails e mensagens entre sessões, ou, se atender via Skype é o mesmo que atender no consultório. Contudo, não sei se essa é a questão principal a tratar. É na transitoriedade entre o que é virtual e real que estabelecemos a fenda. É pensando o que essas comunicações querem dizer transferencialmente que devemos decidir se devemos ou não responder a emails ou celulares, apesar do risco implicado na relação.

 

Algumas ideias para discussão

Revi alguns artigos que falavam sobre o ciberespaço e psicanálise. Artigos nessa área começam a existir no final da década de 1990. Primeiro discute-se sobre o uso de fóruns analíticos via web, para troca de informações entre analistas. Há um artigo de Parker (2000), que destina-se a ensinar tecnicamente como psicanalistas podem usar a internet. Outros artigos discutem se é possível fazer psicanálise somente pela internet, uma discussão que polariza o campo entre a presença do analista ou a ausência do analista, mostrando que o desejo por um psicanalista virtual poderia ser entendido como uma forma de falar sobre psicanálise e não fazer psicanálise (Fórum Virtual, Estados Gerais da Psicanálise, 1999). Bion (2007) faz essa diferença, a diferença entre psicanálise aplicada (falar sobre psicanálise) e psicanálise na clínica (fazer psicanálise). Outro grupo de artigos usa conceitos da psicanálise como instrumento de desconstrução, tomando o ciberespaço como uma criação cultural que empobreceria as relações, esvaziando o conteúdo por uma superexposição, assim o que é íntimo torna-se público, banalizando relações sexuais e encontros amorosos (Zizak, 2004). Artigos mais recentes começam a discutir a presença do uso da internet como formas de texto na sessão como ilustrei nas vinhetas acima (Curtis, 2007; Gibbs, 2007 e Parker, 2007). Assim emails, Skype, e toda a "e-parafernália" seriam manifestações, em análise, da mesma qualidade simbólica como o sonho, os acting outs/ins, constituintes de um discurso manifesto passível de interpretação. Por exemplo, o caso de P2 e o uso que faz de seu celular na sessão comigo, mostra, com seu acting (desmontar o celular), uma situação emocional intensa, diferente de seu discurso. Entender o sentido dessas comunicações dependerá da situação transferencial em curso na análise.

Quando falamos da transitoriedade entre real e virtual, entre dentro e fora da sessão ou na ideia de um contínuo ao setting analítico para além da sessão, é inevitável não lembrar de algumas ideias de Winnicott (1975). Penso na primeira paciente que apresentei. O que, realmente, ela queria dizer ao usar o termo "googlar"?

1. Uma forma de usar um objeto transicional - o computador, para marcar a ausência física simbolizada na busca virtual;

2. Uma forma de brincar longe da analista, mas criar a ilusão de controle;

3. Uma forma de mascarar a ausência de minha presença e de outras presenças ausentes (marido, pai, mãe).

Criam-se paradoxos que circulam entre a presença de uma ausência e uma ausência sempre presente condensadas nas presenças virtuais. Para Winnicott, a função do paradoxo é tolerar ambivalências, sem resolvê-las. (Dias, 2003; Winnicott, 1975). Chamo de paradoxos winnicottianos a possibilidade de identificar, no processo de amadurecimento, ideias em conflito, pensamentos e afetos ambivalentes que se puderem ser tolerados por uma dupla, criam um espaço, este sim intermediário ou potencial, onde pode haver amadurecimento. Explico isso melhor com a vinheta de P3, viciado em jogos de computador. Tenho dificuldade de fazer interpretações transferenciais porque não percebo conflito, percebo empobrecimento. Há polarização, de um lado o real/ruim, de outro o virtual/bom. Apesar de P3 falar que joga pela internet, não existe o brincar. Os jogos são estruturados com regras rígidas e hierarquias altamente sofisticadas, mas aprisionantes, sem espaço para a criatividade. Já P1 pesquisa na internet (Google) e descobre coisas, diverte-se com o fato que pode transgredir, pecar, mas que também pode escapar de suas próprias prisões. Ela não brinca só, quer me incluir provocando-me, quer saber o que eu acho de tudo isso. P3 não, está preso ao jogo como Alice no País das Maravilhas. A culpa de P3 surge porque ele não quer parar de jogar e ele sofre com isso. Não há paradoxo, há uma fenda. Seria então o ciberespaço uma forma de espaço potencial ou intermediário? Creio que isso irá variar de acordo com a possibilidade de cada sujeito e de acordo com seu processo de amadurecimento. Dependerá da capacidade de se desenvolver e de se relacionar com o objeto ou de usá-lo multidimensionalmente. Aqui vemos um exemplo da diferenciação que Winnicott faz entre "relacionar-se com o objeto" e "usar o objeto". P3, em sua relação comigo, com a esposa, com o jogo, apenas, relaciona-se com o objeto, bidimensionalmente. P1 ao trazer sua brincadeira de me procurar e se esconder pelo Google, faz uso do objeto. A sessão evolve criativamente.

O que gostaria de apresentar aqui é um entendimento microscópico do que poderíamos entender por transitoriedade na comunicação dos pacientes e do uso que fazem do ciberespaço. A transitoriedade não está entre o real e o virtual, aparentemente isso pode ser uma armadilha de entendimento. A transitoriedade está na tensão que se cria quando identificamos um paradoxo. É disso que tratamos transferencialmente com os pacientes. No ciberespaço o que está ausente é a presença física. No setting analítico, ao contrário, o que está presente, sendo tratado é a ausência simbólica, mas há também a presença física do analista. Cria-se então uma tensão entre dois paradoxos em comunicações. No setting analítico, tratamos da presença da ausência, e da presença da presença. Através da transferência buscamos resgatar a presença de imagos objetais, o analista personifica e revive com seus paciente padrões fixados no decorrer do amadurecimento e que podem estar impedindo o paciente de crescer, ser criativo. Espera-se que a elaboração dessas ausências presentes e representadas pela presença do analista, possibilite ao paciente ser mais livre de suas próprias memórias. Há possibilidade de mudança. No ciberespaço mantemos a ausência da presença, prescindimos dessa presença, não há vontade de mudar mas de manter a presença da ausência. Portanto, comunicações via e-mail, Skype ou mensagens entre sessões podem estar apontando para a ausência física do analista, sobreposta a ausência representada pelo analista. Na ausência do encontro físico entre paciente e analista, a presença do analista, pode ser vista como uma lembrança. Como outra imago objetal qualquer, pode repetir um repertório já estabelecido, sem possibilidade de promover mudanças. Por exemplo, com P4 (a paciente que está em Times Square), aprecio sua comunicação e entendo por meio da memória que tenho de minha relação com ela aquilo que ela está querendo transmitir, mas creio que minha hipótese só poderá ser elaborada com ela presente, por isso não responder é aguardar, tolerar a ausência. Com P5 (o paciente que não me convém ver), mantenho minha intuição vívida de nosso último encontro e faço o que Winnicott diz ser possível fazer: holding (suporte) e handling (manejo) como formas de manter o vínculo. O mesmo acontece com P6 (paciente que tem dificuldade de regular pressão/afeto). Isso poderia ter sido feito na sessão, em presença, mas talvez na sessão algo mais pudesse ter sido feito: construção, elaboração, interpretação e não tenho certeza que o contrário se aplica. Assim o ciberespaço que parece infinitamente potencial, promissor, pode ser uma forma de mascarar e encolher certas formas de trabalhar psicanaliticamente, como interpretação e construção de significados, mas oferece a possibilidade de reinventarmos a psicanálise, de redescobrir seus conceitos e de brincar seriamente com a criatividade que nos desafia.

 

Referências

Bion, W. R. (2007). Atenção e interpretação. Rio de Janeiro: Imago.         [ Links ]

Bollas, C. (2007. Cyberspace. Psychoanal. Rev., 94(1),7-10.         [ Links ]

Bollas, C. (1995). Cracking Up. The Work of Unconscious Experience. New York: Hill and Wang.         [ Links ]

Curtis, A. (2007). The claustrum: sequestration of Cyberspace. Psychoanal. Rev., 94(1),99-139.         [ Links ]

Dias, E. O. (2003). A teoria do amadurecimento de D. W. Winnicott. Rio de Janeiro: Imago.         [ Links ]

Gibbs, P. L. (2007). Reality in cyberspace: analysands' use of internet and ordinary everyday psychosis. Psychoanal. Rev., 94(1),63-82.         [ Links ]

Parker, I. (2007). Psychoanalytic Cyberspace, beyond Psychology. Psychoanal. Rev., 94(1),63-82.         [ Links ]

Zizak, S. (2004). What Psychoanalysis can tell us about cyberspace? Psychoanal. Rev., 94,(6),801-830.         [ Links ]

Winnicott, D. W. (1975). O brincar e a realidade. Rio de Janeiro: Imago.         [ Links ]

 

 

Correspondência:
Denise Salomão Goldfajn
[Sociedade Brasileira de Psicanálise do Rio de Janeiro SBPRJ]
Rua Campo Verde, 486, Casa 1 | Jardim Paulistano
01456-010, São Paulo, SP
Tel: 11 3034-0483
dgoldfajn@uol.com.br

Recebido em 1.9.2011
Aceito em 16.9.2011

 

 

1 Prêmio Mário Martins.

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