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Revista Brasileira de Psicanálise

Print version ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.45 no.3 São Paulo July/Sept. 2011

 

TRABALHOS PREMIADOS NO XXIII CONGRESSO BRASILEIRO DE PSICANÁLISE

 

Fato selecionado e a possibilidade de restauração de função alfa1

 

Selected fact and the possibility of recovery of the alpha function

 

Hecho seleccionado y la posibilidad de recuperación de la función alfa

 

 

Julio Cesar Tadeu Chavasco Labate

Membro filiado da Sociedade Brasileira de Psicanálise de Ribeirão Preto SBPRP

Correspondência

 

 


RESUMO

Com o auxílio da música lembrada na sessão, que funciona como um fato selecionado e associando essa experiência com outras possíveis situações, a dupla analítica pôde aproximar-se de uma experiência emocional que estava inalcançável. Progressivamente surgem evidências de uma possível restauração da função alfa debilitada.
O autor utiliza como experiência empírica o caso do Senhor A, um paciente de 60 anos, atendido regularmente em análise há um ano e que apresentava problemas de ansiedade, além de um receio constante de estar com alguma doença. Seus sintomas e seu comportamento ficam esvaziados de sentido, servindo apenas como atualizações de experiências emocionais não elaboradas em consequência da falha de sua função alfa. A compreensão desses sinais como ruínas de registro sensorial da experiência emocional, junto com o trabalho analítico, permite, progressivamente, auxiliar o desenvolvimento da dupla e o paciente apresentar sinais de alguma restauração da função alfa.

Palavras-chave: restauração da função alfa; queixas hipocondríacas; sonho; material clínico; representação do acontecimento psíquico.


ABSTRACT

With the help of recollection of music during the session, which works as a selected fact, associating the experience to other possible situations, the psychoanalytic pair can reach an emotional experience previously unachievable. This may show a possible recovery of the impaired alpha function. We used as an empiric example the case of Mister A, a patient in his sixties, regularly undergoing psychoanalysis for around one year, who presented anxiety problems, besides a constant feeling of being diseased. His symptoms and behavior are emptied of meaning, serving only as updates of emotional experiences not elaborated in consequence of the failure of his alpha function. Understanding such signs as the residues of the sensorial registry of emotional experience, together with the analytic work, allows for the progressive aid of the development of the pair, and for the patient to show signs of some recovery of the alpha function.

Keywords: recovery of alpha function; hypochondriac complaints; dreams; clinical case; representation of the psychic occurrence.


RESUMEN

Con la ayuda de la música recordada en la sesión, que actúa como un hecho seleccionado y asociando esa experiencia con otras situaciones posibles, el par analítico puede acercarse a una experiencia emocional que era inalcanzable. De esta forma se evidencia una posible restauración de la función alfa afectada. Usamos como experiencia empírica el caso del Señor A, un paciente de cerca de 60 años, atendido regularmente en análisis por cerca de un año, y que tenía problemas de ansiedad, así como un temor constante de estar enfermo. Sus síntomas y su comportamiento carecen de sentido, sirviendo sólo como actualizaciones de experiencias emocionales no elaboradas como consecuencia de la falla en su función alfa. La comprensión de estas señales como ruinas de registro sensorial de la experiencia emocional, junto con el trabajo de analítico, lo que permite gradualmente contribuir al desarrollo del par analítico y el paciente a mostrar señales de cierta recuperación de la función alfa.

Palabras clave: restauración de la función alfa; quejas hipocondríacas; sueño; material clínico; representación del acontecimiento psíquico.


 

 

Você (As penas do Tiê)

Vocês já ouviram lá na mata a cantoria
da passarada quando vai anoitecer,
Já escutaram o canto triste da Araponga
anunciando que na terra vai chover.
Já experimentaram Gabiroba bem madura,
Já viram o céu quando o sol vai se esconder,
E já sentiram das planícies orvalhadas
o cheiro doce, das frutinhas muçambe,
Pois meu amor tem um pouquinho disso tudo
e tem na boca a cor das penas do Tiê.
Quando ela canta os passarinhos ficam mudos
Sabe quem é, o meu amor, ele é você, você...
(Tavares & Mesquita, s/d)

Certa vez, quando escutava música em minha casa, esta me chamou atenção. Após ouvi-la várias vezes, passou a soar-me de maneira diferente, porém não sabia ainda nomear o que me encantara. Ouvindo de maneira despreocupada, lembrei do senhor A. Um paciente de 60 anos em análise há um ano. Tentei buscar na minha mente algo que o ligasse àquela música. Inicialmente pensei que fosse devido à paisagem rural que a música descrevia, pois ele nasceu e viveu sua primeira infância em uma fazenda. Poderia também ser a descrição dos belos momentos da natureza e da imagem de uma relação amorosa, como se fosse algo que ele estivesse buscando. Em nossos encontros descrevera suas relações interpessoais de maneira pouco afetiva, distantes, sem entrega ou confiança, lamentando-se algumas vezes da morte precoce da mãe. Cheguei a associar com a busca da relação amorosa com a mãe. Poderia ser a descrição daquilo que não era possível lembrar, mas estava sempre buscando, como se tivesse apenas pistas de que algo existiu, porém só encontrava um espaço vazio e nada reconhecia. Como disse Bion "o lugar onde estaria a depressão, o lugar onde espera-se que o objeto esteja, mas não está" (2004b, p. 66). Talvez fosse tudo isso, mas ainda não encontrava sentido suficiente, algo ainda me inquietava.

Voltando ao Sr. A, após a morte da mãe ele fora criado pelos avós, estudou, casou, teve filhos. Tornou-se um empresário muito rico, de postura muito firme, arrogante, exigente. Possuía todos os ingredientes para sentir-se pleno, realizado, mas mesmo assim desenvolvera um grave quadro de ansiedade. Frequentemente tinha certeza absoluta de estar muito doente, apesar de não obter nenhuma confirmação médica. Cada descoberta de uma possível doença era uma nova epopeia. Sentia os sintomas, passava por consultas, exames e recebia alta carregando a frase: Não tem nada!? Sofria então, acompanhado da incerteza do diagnóstico médico. Certa vez, durante uma crise de ansiedade, teve sua visão invadida por máculas. Temia ficar cego e naquele momento procurou a análise.

Nossos encontros eram tensos. Suas queixas se repetiam apesar de qualquer observação de minha parte. Queixava-se de sua ganância que o impedia de usufruir sua vida, pois sempre estava sobrecarregado de trabalho e querendo ganhar mais dinheiro. Descrevia relações familiares desgastadas. Acreditava ser bom pai e marido, porém o contato com os familiares era tangencial. Frequentemente buscava relacionamentos extraconjugais, situações que lhe causassem excitação, porém nas quais não conseguia ver um sentido. Suas queixas hipocondríacas, sua postura exigente no trabalho, seu relacionamento com o dinheiro e o sentimento que chamava de ganância, serviam como um invólucro pelo qual se apresentava. Degradava suas relações para minimizar a falta que poderia sentir. Criava situações que ofuscavam a falta que sentia de uma relação de compreensão e confiança. Surpreendia-se ao perceber que sofria do medo de ter doenças e muitas vezes de acreditar que tinha doenças que eram descartadas pelos médicos.

Sofria de alguma coisa, porém, sem ter condições de compreender. Percebia apenas alguns sinais de uma catástrofe sem ter noção da dimensão que isso significava.

Desorganizava-se diante de experiências emocionais insuportáveis que eram vivenciadas como catástrofes, obedecendo a um instável padrão de funcionamento, no qual experimentava a dissolução de sua existência psíquica pela impossibilidade de busca de sentido para o momento. Das experiências emocionais sobravam-lhe ruínas com resquícios de registros sensoriais. Essas ruínas eram evacuadas em suas atitudes, confundindo-se com sua maneira de ser, num jogo de sobreposições.

A música do Tiê faz referência à lembrança não apenas de algo, uma coisa, um objeto, mas, sim, a uma experiência emocional que pode vir a ser simbolizada e reencontrada pelos registros sensoriais na paisagem na natureza ... Ver as penas vermelhas do Tié me faz lembrar teus lábios... o doce das frutinhas muçambês me lembram teus beijos... A música do Tiê faz o caminho inverso da explosão que sua mente sofre. Reúne para mim, na minha mente, os signos para recompor a experiência emocional.

Notei na música o processo que o senhor A era incapaz de completar. Ele não toleraria encontrar sinais que pudessem simbolizar um fragmento de uma experiência emocional, como os pássaros, o canto da araponga, a gabiroba, o céu, as superfícies orvalhadas, as frutas muçambê, a cor das penas do Tiê, reuni-los e perceber a ausência, sofrer a falta da pessoa amada. Bion em Elementos de psicanálise diz: "O indivíduo teria que reunir elementos para formar sinais e, então, reunir os sinais antes de poder pensar" (2004a, pp. 51-52). O sinal é o registro possível da experiência e, ao mesmo tempo, a percepção da catástrofe que se instaurou.

No senhor A, essa reunião não pode ocorrer: "Isso quer dizer que a formação simbólica se inicia, porém encontra tal dor mental que devora o que havia começado a formar, e os produtos produzidos por este novo processo contem restos de sentido aderidos a seus fragmentos." (Meltzer, 1990, p. 19)

Entendi que no caso do Senhor A, encontramos ruínas de registro sensorial da experiência emocional pulverizadas na sua postura apreendida de ser, nas suas atitudes desmentalizadas, denunciando o que não pode elaborar, o que não pode sofrer ação de sua função alfa. Em Cogitações, quando escreve sobre "O domínio do sonho", Bion esclarece que além da função alfa é necessário o trabalho onírico:

No domínio do sonho fluem as impressões sensoriais associadas com o advento do princípio da realidade e as impressões pré-verbais associadas com o princípio do prazer-dor. Nenhuma delas pode associar-se às qualidades de consciência, memória, evocação, inconsciência, repressão ou supressão, a menos que sejam transformadas pelo trabalho onírico. O domínio do sonho é o armazém no qual as impressões transformadas são estocadas depois de terem sido transformadas. O trabalho onírico é responsável por transformar o material pré-comunicável em material "armazenável" e comunicável; o mesmo vale para estímulos e impressões derivados do contato da personalidade com o mundo externo. (Bion, 2000, p. 58)

A consciência insuportável torna-se, ela mesma, catastrófica, interrompendo o que poderia caminhar para um trabalho onírico no Senhor A.

Os sinais apenas denunciam catástrofes, não permitem a experiência ou o desenvolver de um pensamento. O sinal é o único testemunho e alarme de uma experiência emocional presente e inalcançável.

Até esse momento fazia sentido para mim, e só. Durante as sessões não era possível compartilhar essas ideias. Embora fosse possível introduzir tal música para alcançar um objetivo, isso não teria sentido, era apenas uma teoria que fazia sentido para mim. Foi então que, durante uma sessão em que ele adormecera no divã e eu fiquei solto em meus pensamentos e associações, que deparei-me com uma melodia, cuja letra desconhecia, apenas sabia que era de seu cantor preferido, Roberto Carlos. Num despertar conjunto perguntei-lhe se conhecia tal música. Diante da afirmativa, pôde então cantá-la. E cantou, cantou mais uma música e disse-me que aquelas eram as músicas que mais gostava. Disse que lamentava muito, porque RC nunca mais as cantaria nos shows. Nunca mais terei a oportunidade de ouvi-las ao vivo. E ao vivo, nos shows, é muito mais bonito, me arrepia todo. Nesse momento o senhor A pôde ser tocado emocionalmente. Apesar da letra da música que ele lembrou ser muito significativa, não era a letra que importava, mas a experiência que ela trazia em si que não poderia mais ser repetida, vivida.

A música lembrada na sessão é apenas um dos versos que, reunido com outras possíveis situações, pode vir a restaurar uma experiência perdida, informando sobre uma possível restauração da função alfa debilitada. Em nossos encontros, a partir do fato selecionado do Tiê, pude, sem perceber, emprestar-lhe, além de meu aparelho de sonhar e pensar, o meu aparelho de sentir e sofrer. Pude sonhar os sonhos que ele não pôde sonhar. Como se eu tivesse sido apresentado a um novo instrumento, uma nova dimensão. Acontece a relação entre a experiência emocional e a formulação representativa, aqui no caso a música. Com a música é possível transpor o hiato que envolve a experiência emocional inalcançável (Bion, 2006).

Esse processo passou a repetir-se em pequenas sequências nas sessões seguintes, em que as queixas hipocondríacas passaram a ter menor evidência, dando oportunidade de relatos de algumas experiências emocionais, chegando a trazer um sonho em que relatava o que pode ser compreendido como a percepção em câmera lenta do seu processo de fragmentação.

 

Material clínico

Paciente chega no horário, entra e deita-se no divã. Com sua fala tensa, avisa-me que corre o risco de dormir ali. Logo inicia falando que está difícil vir às sessões, que na quinta-feira não virá, pois dará aulas e não chegará a tempo. Segue dizendo que está muito cansado, muito sobrecarregado. Disse que acreditava nele e que estava ali para podermos compartilhar aquilo tudo.

P - Estou muito tenso, é muita pressão (parece falar de outra coisa, começa a bocejar). Estou muito cansado. Fico muito tenso, só pensando em doença. Foi fígado, próstata, colesterol, agora o Parkinson, tenho muito medo de estar com Parkinson. Preciso pensar positivo, se a análise não me fizer pensar positivo, não vai adiantar nada.

Penso, penso, o que será que ele quer dizer com isso, imaginei o sinal de positivo, sinal de mais, sinal do espelho, continente, útero. Relação continente/contido. Falo que ele queria, de alguma forma, se relacionar comigo, mas temia que eu o deixasse na mão. Falei, ainda, que sentia que tudo ficava tão desvitalizado, sem graça, sem vida... (ele adormece, vira de lado, refere-se ao divã como uma caminha, adormece profundamente, cerca de 15 minutos). Inicialmente deixo-o dormir, fico em dúvida, engasgo, ele se mexe e volta a dormir. Sinto-me sozinho. Surpreendo-me lembrando de pegar um bebê que quer colo, penso que ele, o senhor A, precisa de colo. Lembro-me da música do Tiê, não consigo lembrar a letra, tento apegar-me à melodia, fica repetitiva na minha mente sem que eu consiga reproduzi-la. Lembro alguns versos e o que significavam para mim, a música desaparece. Cobro-me porque não estudei Roberto Carlos que é seu cantor preferido, o que será que ele ouvira nas músicas de Roberto Carlos que gostava tanto? Recordo o trecho de uma melodia, uma música que não sei qual é, lembro só o nãnãnã... De repente ocorre-me o nome, "Detalhes", mas não lembro exatamente a letra, tão famosa, fico angustiado... penso em cantar para ele, como já fiz com bebês, cantarolo mais alto e pergunto, acordando-o:

J - Você sabe a letra dessa música, "Detalhes"?

P - Detalhes tão pequenos de nós dois, são coisas muito grandes pra esquecer.

J - Como começa?

P - (Já desperto, realçado, num crescente muito delicado, cuidadoso. Parecia estar fazendo algo sagrado)

Não adianta nem tentar me esquecer
durante muito tempo em sua vida eu vou viver
Detalhes tão pequenos de nós dois
são coisas muito grandes pra esquecer
e a toda hora vão estar presentes
você vai ver
...
À noite, envolvida no silêncio do seu quarto,
antes de dormir você procura o meu retrato,
mas na moldura não sou eu quem lhe sorri,
mas você vê o meu sorriso mesmo assim
e tudo isso vai fazer você lembrar de mim

Em alguns momentos parava, parecia se localizar... quem sabe ouvir o que eu ouvi no Tiê... detalhes que estarão presentes na lembrança, olhar o retrato de outro e acessar na lembrança uma outra face... que vão sumir, vão ficando longe...

Lembra de outra música que o emociona muito, também uma das que mais gosta e canta. Começa então a falar sobre os shows do RC com admiração. Sabe todo o intinerário que fará no exterior e lamenta que essas duas músicas RC nunca mais cantaria em seus shows. Lembra do último aniversário de RC, em que teve que enterrar a mãe no mesmo dia.

P - Lady Laura, todos os Iates tem o nome de Lady Laura, duas esposas morreram de câncer, um filho cego, uma filha que deve ser "sapatão", e ele é feliz.

Falo sobre poder usufruir os recursos que tem, como naquele momento, e encerramos a sessão.

Progressivamente o clima das sessões passa a variar. Entremeando tensão e cobrança, vivemos momentos mais amenos quando o senhor A passa a trazer relatos de situações com uma carga emocional mais permeável. Os momentos de tensão entre nós dois tornam-se menos frequentes, queixa-se com menos intensidade de seus sintomas hipocondríacos. Passa a contar situações em que o relacionamento com outra pessoa é mais prazeroso.

Numa sessão conta que ficou com o neto no colo e mostrava-lhe emocionado o quadro da casa da fazenda em que nascera, como se estivesse apresentando sua mãe (Bachelard, 2008). Em outra sessão, ao se queixar da ausência da nora para cuidar de seus netos, associa a falta que um filho sente da mãe e percebe-se falando de casos em que a mãe morrera, lembrando em seguida de ter chamado pela mãe inúmeras vezes após sua morte.

Mais adiante traz um sonho em que assistia ser assaltado. Nesse assalto, via serrarem-lhe os braços e pernas com o revólver. Entendi que tinha alguma percepção do processo de fragmentação que sua mente sofria. Percebia como um assalto, um roubo, a perda de coesão de sua mente. Sua desagregação psíquica o impedia de ser inteiro e compor pensamentos. Diferente de sofrer processos de fragmentação e projeção, sua mente não tinha condições de oferecer elementos com uma organização coesa, oferecia retículos que funcionariam como continentes para conteúdo, porém logo se desorganizam, sem condições de originar pensamento.

Voltou a sentir alguma paixão por uma mulher, mas temia que se tivesse um relacionamento com ela, correria o risco de que ela o mordesse durante o ato sexual e ficasse alguma marca em seu corpo. Se ele tivesse alguma marca que revelasse uma existência, o registro de um encontro, isso denunciaria uma experiência emocional, que ele temia não poder elaborar.

 

Finalizando

Bion chamou de elementos beta (β) o registro da experiência emocional que por algum motivo não pode sofrer ação da função alfa. Não são sentidos como fenômenos, são coisas-em-si, permanecem inalterados ou podem vir a ser evacuados de alguma forma. Carregam em si ruínas dos registros das experiências emocionais, não podendo, porém, ser utilizados na formação de pensamentos. Ao mesmo tempo que carregam restos de informação da experiência emocional insuportável, apontam para o fato que desencadeou a experiência.

As experiências emocionais que não podem ser elaboradas podem vir a constituir hábitos, respostas automáticas e comportamentos não intencionais. Farão parte da personalidade, porém representarão manobras sociais de adaptação instintivas ou apreendidas (Meltzer, 1990).

Acompanhar o senhor A em suas inúmeras queixas, suportar sua maneira arrogante de se relacionar, passou a ter um sentido quando pude compreender que na verdade vivia com ele aquilo que não era possível ser verbalizado.

Compreendi que nas queixas sem sentido de meu paciente existiam informações importantes para sua existência. Eram sinais à espera de decodificação, de simbolização. Conhecê-lo era descobrir o que estava registrado nessas queixas, quais informações de alguma forma estavam contidas naquilo que parecia sem sentido. Para ele, a percepção do vazio de sentido levava ao desespero, ao mesmo tempo que assinalava o registro de uma catástrofe que não pudera ser pensada, elaborada. Catástrofes que não podiam ser vividas, mas apenas captadas da forma possível.

Como citado anteriormente, buscando o ponto de partida para a formação de pensamentos, Bion (2004a) observou a necessidade do indivíduo reunir elementos para formar sinais/signos e, então, reunir os signos antes de poder pensar. Sinais que quando percebidos como registros de que algo aconteceu, como registros de uma experiência emocional insuportável, levam à vivência de nova catástrofe e desorganização psíquica. Nesse modelo, no momento em que o paciente experimenta esboços de sua consciência incipiente, ocorre nova catástrofe. A cada esboço de pensamento, a cada percepção incipiente de consciência, por não poder sustentar essa consciência, nova desorganização.

Michael Eigen (1985), em seu artigo "En torno al punto de partida de Bion: de la catastrofe a la fe", enfoca o momento inicial da realidade psíquica. Destaca em Bion o seu olhar para o gatilho inicial do movimento entre PS<->D (posição esquizoparanoide e posição depressiva), precedendo a função continente-contido - definindo traços da personalidade do indivíduo. Esse gatilho inicial, o ponto de partida, seria uma primeira explosão dos elementos beta primitivos. A isso, sucedem-se movimentos de maior e menor entropia, que levariam a aglomerações aleatórias, mimetizando PS<->D. Trazem, assim, traços de momentos catastróficos. Ressalta que o movimento de excisão e reunião dos elementos psíquicos são constituintes inatos do ritmo de si mesmo. Essas aglomerações aleatórias não são capazes, porém, de formar um pensamento, iniciando nova condição de catástrofe.

Entendo assim que a maneira do senhor A se apresentar é, ao mesmo tempo, o registro e a denúncia das catástrofes que ocorreram e ocorrem a todo instante. Sobre uma maneira de ser que não pode se desenvolver, instala-se uma maneira de ser feita de elementos beta primitivos e de elementos beta com sinais de catástrofes que ficaram espalhados, que podem conter traços, restos de elementos sensoriais "Esses elementos, que estou considerando como sensoriais, contêm as ruínas do momento anterior ao evento disruptivo e a representação do acontecimento psíquico." (Marques, 2008, p. 5).

A música do Tiê chamou-me atenção funcionando como um fato selecionado, dando sentido às observações que eu não pudera até então organizar. Contando com a mente do analista, o paciente tem condições de alguma restauração de sua função alfa.

 

Referências

Bachelard, G. (2008). A poética do espaço. São Paulo: Martins Fontes.         [ Links ]

Bion, W.R. (1991). Apreender com a experiência. Rio de Janeiro: Imago.         [ Links ]

Bion, W.R. (2000). Cogitações. (pp. 58-28). Rio de Janeiro: Imago.         [ Links ]

Bion, W.R. (2004a). Elementos de psicanálise. (2a. edição). Rio de Janeiro: Imago.         [ Links ]

Bion, W.R. (2004b). Transformações. Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1965)        [ Links ]

Bion, W.R. (2006). Atenção e interpretação. Rio de Janeiro: Imago.         [ Links ]

Eigen, M. (1985). Toward Bion's starting point: between catastrophe and faith. Int. J. of Psychoanal., 66(3),321-330.         [ Links ]

Marques, T. (2008). A experiência afetiva com a sensorialidade. Trabalho apresentado em reunião científica da Sociedade Brasileira de Psicanálise de Ribeirão Preto sbprp, 12 de setembro.         [ Links ]

Meltzer, D. (1990). iQué es una experiencia emocional? In D. Meltzer, Metapsicologia ampliada: aplicaciones clínicas de las ideas de Bion. (pp. 16-24). Buenos Aires: Spatia.         [ Links ]

Reeze, C. (1997). Transferência, rastreamento do conceito e relação com transformações em alucinose. Rev. Bras. de Psicanal., 31(1),137-165.         [ Links ]

Tavares, H. e Mesquita, N. (s/d). Você (As penas de Tiê). Omara Portuondo e Maria Bethania [CD]. Rio de Janeiro: Gravadora Biscoito Fino.         [ Links ]

 

 

Correspondência:
Julio Cesar Tadeu Chavasco Labate
[Sociedade Brasileira de Psicanálise de Ribeirão Preto SBPRP]
Av. Presidente Vargas, 2001, sala 157 | Jd. Irajá
14020-260 Ribeirão Preto, SP
Tel: 16 3913-4285
labate@uol.com.br

Recebido em 2.9.2011
Aceito em 16.9.2011

 

 

1 Prêmio Virgínia Bicudo.

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