SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.45 número3Fato selecionado e a possibilidade de restauração de função alfaEnvelhecer, uma viagem para a descoberta de si mesmo índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.45 no.3 São Paulo jul./set. 2011

 

INTERFACE

 

Entrevista1 com o economista Carlos Eduardo Soares Gonçalves2

 

 

Comissão editorial da RBP

 

 

Habitualmente a seção Interface oferece um artigo que apresente visão diversa, mas convergente, daquela que o psicanalista costuma ter, na medida em que este tem por hábito procurar as qualidades psicogênicas do assunto em foco. Desta vez, no entanto, esta seção trará algo diferente. Buscamos, neste número, fazer uma composição desta seção com os comentários apresentados às ideias de Türcke no início da Revista. Note-se que será, como em música, uma composição por contraponto, mas ainda assim, esperamos, com harmonia. Será apresentada a entrevista realizada pela Revista com o professor de Economia da USP, Carlos Eduardo Gonçalves Soares. Nela, nossos leitores encontrarão a linguagem e o modo de abordar os fatos distintos daqueles que nos são mais familiares. A Revista, de fato, buscou o contraste. Não o contraste por si mesmo, todavia o contraste que promove a inquietação instigante necessária à reflexão.

Lembremos que este número da Revista é dedicado ao tema do Congresso Brasileiro de Psicanálise: "Limites: prazer-realidade", baseado no artigo de Freud "Formulações sobre os dois princípios do funcionamento mental" de 1911. Lembremos, também, que Freud sempre apresentara a relação, de algum modo existente, entre "pares antitéticos" que aparentemente apenas se oporiam. Desse modo, no artigo supracitado, encontramos a exposição articulada de conceitos como: processos psíquicos primários e secundários, consciência submetida à razão lógica e inconsciente formatado pelo desejo, expresso em sua descarga pulsional pelo aspecto afetivo da mesma, isto é, pela emoção. Opõe-se, mas articula-se, razão e emoção. Daí, qual o limite hipotético entre razão da realidade e emoção do prazer (ainda que por vezes desprazer, como bem se sabe)?

Após Türcke (na Filosofia), e seus comentadores, que procura pensar esse limite e que nos remete diretamente a pensá-lo em nossas clínicas, buscou-se num aparente oposto, na Economia, um diálogo possível entre a razão (matemática) e a emoção (filosoficamente pensável) posto no âmbito das relações econômicas entre humanos, lembrando que Freud fizera questão de destacar o aspecto econômico nas relações intrapsíquicas, mas igualmente presente nas relações intersubjetivas. Aparente oposto porque somos convidados a buscar, na entrevista a seguir, a relação dialógica de superação da oposição razão/emoção. Caro leitor, o convite que fazemos é o do trânsito, em dupla direção, entre a visão humanista e a cientificista para que a superação pretendida possa acontecer. Segue-se a entrevista.

1. A partir de certo ponto de vista, diz-se que as ciências econômicas tiveram sua origem na preocupação filosófica sobre o entendimento a respeito do fenômeno das "trocas" na conduta do homem em seus relacionamentos. As reflexões filosóficas que buscaram compreensão sobre o "homo economicus" geraram grandes sistemas explicativos e descritivos a respeito da importância e do lugar da Economia na sociedade humana. As ciências econômicas foram servindo-se dos conhecimentos matemático/estatísticos com o objetivo de ampliarem seu poder de antecipação, procurando melhorar sua capacidade de previsão, aproximando a Economia, cada vez mais, de querer tornar-se uma ciência exata. Como o senhor avalia certa convivência entre um aspecto de "hard science" (ligado às visões "matematizantes") com outro de "soft science" (ligado a posições mais filosóficas) no campo econômico? Qual seu status científico, isto é, a natureza de sua reflexão investigativa e de suas consequências práticas? Como compreender, hoje, a partir desses modelos epistemológicos a função da Economia para a sociedade contemporânea?

A Economia, como ciência, sempre foi movida - e evoluiu - com base na busca do entendimento de fenômenos sociais muito concretos, como o crescimento da produção total de bens e serviços de uma nação, e os padrões de distribuição da riqueza gerada pelo sistema econômico, entre diversos outros. Isso desde Adam Smith. É nesse sentido que algumas pessoas a qualificam com uma ciência soft. O que mudou de maneira acentuada, principalmente no pós-guerra e, em particular após os anos 1970, foi o tratamento metodológico dado a essas questões de natureza soft.

Em um passado que já está ficando remoto, o método de investigação em economia se assemelhava muito aos empregados em história e sociologia. Hoje, o formalismo matemático predomina, tanto na vertente teórica como na empírica, nessa última com o uso de métodos estatísticos cada vez mais sofisticados. Mas em Economia, a matemática é um instrumento, muito útil a meu ver, pois ajuda a organizar as ideias e não um fim em si mesmo. Digamos que a alma da ciência econômica é sim soft, mas seu entorno é um ambiente de trabalho bastante hard.

Não vejo uma incongruência nisso, vejo, antes, o rigor formal como importante elemento disciplinador para o tratamento das questões sociais. De novo, a matematização disciplina o pensar sem ofuscar o bom senso e a intuição, quando bem empregada claro. Ocorrem exageros no mundo acadêmico no uso desse formalismo? Às vezes sim, mas, no meu entender, esses casos são a exceção. Os economistas, ao contrário dos psicólogos, não têm por objetivo sondar com profundidade a natureza do comportamento humano, algo deveras complexo para um modelo matemático obviamente. Por isso, para a Economia resumir o comportamento humano sob o formato de uma função de preferências bem definidas não é um grande pecado.

O grosso das críticas contra a "matematização" da ciência econômica vem justamente de quem não conhece modelagem formal e não de quem a critica tendo dela pleno entendimento de seu funcionamento interno. Isso para mim já diz muito sobre a pobreza da crítica ao mainstream econômico que se vê por aí.

2. Na crise econômica de 2008/2009, falou-se muito a respeito da falta de "sistemas reguladores" no mercado mundial. Para o leigo, ficou a impressão de que no sistema econômico vigente haveria uma lacuna na função de controle e regulação a respeito do movimento dos agentes econômicos. Freud, indo além da psicologia em suas investigações psicanalíticas, criou o termo "metapsicologia" na tentativa exigente de explicar qualquer processo psíquico sob três ópticas simultaneamente:

a) a tópica, tratando da descrição, apenas como modelo, de lugares psíquicos nos quais tais processos ocorreriam;

b) a dinâmica, tratando das relações, ou ações recíprocas, conflitivas entre os elementos envolvidos nesses processos psíquicos;

c) a econômica, quando trata dos aspectos quantitativos, particularmente dos impulsos, geradores dos movimentos nesses processos psíquicos.

Uma das instâncias psíquicas, o chamado superego, exerceria uma função reguladora sobre outra das instâncias, o ego (responsável pela função executiva conciliatória entre todas as "instâncias" e suas respectivas demandas) fazendo essa função dentro de condições econômicas que podem ser desde fracas a exageradas (obviamente promovendo diferentes conse-quências). Sem querer extrapolar na analogia, teria sentido falar numa ação "superegoica" reguladora para os mercados na economia mundial? Caso sim, e se isso já existir, quais suas consequências tanto na eventual presença excessiva quanto na eventual ausência?

O cerne do desenvolvimento de uma economia é a ação do setor privado. São os impulsos individuais, digamos egoístas, que garantem que um empresário queira nos oferecer um produto melhor e mais barato. Ele busca o lucro, mas para isso, em um ambiente darwiniano onde ele apenas sobreviverá se for competitivo, o empresário investe em inovação, contrata mão-de-obra de qualidade, aprimora técnicas de produção etc. E isso tudo beneficia a sociedade como um todo, mesmo que o tal empresário não tenha lá sentimentos muito altruístas. O governo não consegue jogar esse papel com a mesma eficiência, pois os mecanismos de incentivos no setor público são outros, e a sombra da extinção competitiva não funciona com a mesma eficácia.

No sistema em que tudo é de todos e não há o ganho individual direto, como nas tentativas socialistas fracassadas, a experiência mostra que os indivíduos não se sentem tão incentivados a fazer a máquina econômica funcionar com a mesma eficiência que enseja o sistema de mercado. Um exemplo serve para ilustrar o ponto: a revolução da produtividade da agricultura chinesa. No esquema das comunas, pré-anos 1980, no qual toda a produção individual ia para o bolo comum do governo, a oferta de alimentos era sofrível e a fome um sério problema social. A partir do momento que cada agricultor pôde passar a negociar uma parte de sua produção individual nos mercados, a produtividade e a oferta de comida explodiram (e o problema da fome em alta escala desapareceu em poucos anos).

Mas isso não significa que os mercados livres sempre funcionem a contento e que a ação do governo seja desnecessária para o bom funcionamento das economias. Antes de tudo, sem leis e ordem, não há sistema de produção que funcione bem. Para produzir, os agentes econômicos precisam de segurança em relação aos direitos de propriedade. Segundo, por vezes a busca privada pelo lucro gera custos a terceiros, custos que não são internalizados por quem promove a ação. Por exemplo, uma empresa que polui um rio com seus dejetos está maximizando o lucro prejudicando pessoas sem voz na decisão de poluir ou não (pense na população ribeirinha). A isso se dá o nome de externalidade negativa, e a ação pública, nesse caso, se faz necessária para regulamentar o livre mercado, sim. A crise financeira é outro exemplo típico de externalidades negativas: bancos correram demasiados riscos em seus empréstimos, na expectativa de serem resgatados com fundos públicos (leia-se impostos pagos por todos nós), caso esse risco excessivo gerasse uma onda de bancarrotas. Estamos lidando com os custos econômicos dessa imprudência até hoje, passados quase três anos da crise. Claramente, faltou regulação em várias partes dos mercados financeiros mundiais. Por que regular estritamente os bancos e não, digamos, os açougues ou produtores de aviões? Não porque o empresário que toca um banco seja intrinsecamente diferente do empresário que comando uma rede açougues, mas porque uma quebra de banco gera mais danos à sociedade do que a quebra de uma rede de açougues. Isso faz com que o banqueiro antecipe que os governos virão a seu socorro, o que por sua vez implica que sua propensão a assunção de riscos seja maior. Por isso é preciso regular sua ação.

3. Uma das balizas fundamentais para o funcionamento psíquico, no entendimento da psicanálise, é a angústia. Como quase tudo no funcionamento psíquico, a quantidade em que a angústia aparece, ou se faz presente, e os recursos psíquicos para trabalhar intrapsiqui-camente com essa quantidade, determinam se a mesma terá um efeito "iluminador" ou "causador de cegueira" para o sujeito. De uma maneira ainda mais simplificada, podemos dizer como o leigo, que a adequada avaliação ou inadequada paralisação frente a determinadas situações da vida, dependerá do medo sentido, fazendo-o capaz ou não de agir frente a perigos experimentados (sejam reais ou não). Em Economia, talvez também de uma maneira simplista, podemos falar que se mede o risco de determinada ação econômico-financeira que se pretenda fazer, contrastando-a com o grau de confiança (passível de ser avaliado) que se tem nas condições necessárias a alcançar as consequências esperadas. Assim como na descrição psicanalítica da ação da angústia (medo) no psiquismo, haveria a possibilidade do critério risco/confiança produzir fenômenos que fugissem da objetividade matemática e que se tornassem "psicologicamente"perturbadores na Economia? Que tipo de "recursos" tem a Economia para tentar tratar suas perturbações "internas"?

Diferentemente da psicanálise, na economia os agentes econômicos são metodologicamente simplificados como entidades racionais, que pesam custos e benefícios, incluindo aí os riscos às suas expectativas do que sejam esses custos e benefícios. Isso não significa que os modelos matemáticos sigam uma lógica de infalibilidade do indivíduo, mas, sim que erros sistemáticos não têm lugar na hipótese básica que empregamos sobre o padrão comportamental das pessoas. É forçoso reconhecer, contudo, que recentemente, com a aproximação entre economia e psicologia, esse paradigma tem sido flexibilizado. Digamos que o economista acadêmico moderno entende melhor as fragilidades da hipótese de racionalidade. Em áreas como finanças existe, hoje em dia, uma maior aceitação de que o principio da escolha racional nem sempre constitui a melhor hipótese de trabalho. Isso posto, vale ressaltar que nem todo movimento estranho aos olhos do observador leigo, como pânicos financeiros, ou os ditos fluxos de manada de capitais, ferem o pressuposto de escolha racional e podem, sim, ser entendidos e analisados dentro do framework matemático tradicional.

4. Temos observado no mundo contemporâneo, na chamada sociedade pós-moderna, uma verdadeira crise das identidades que produz importantes mudanças na subjetividade dos indivíduos. Referências identitárias, que há tempos atrás eram muito seguras, já não mantêm mais sua importância e capacidade de gerar segurança. Busca-se, então, com avidez, elementos de constância que possibilitem algum efeito de continuidade e segurança. Buscamse referências, talvez até tranquilizadoras, que forneçam a possibilidade de entendimento e compreensão, capazes de produzir ações que construam condições favoráveis à vida humana, inclusive à vida mental. Existe, em Economia, em seus estudos e investigações, a busca por elementos de constância que tentem oferecer o equivalente à construção de um mundo mais favorável à vida humana, frente às inseguranças econômicas pelas quais o mundo se vê, atualmente, tão repetidamente ameaçado?

Existe, seguramente. Reenfatizo que por trás de uma metodologia hard estão objetivos soft de melhoria social em suas mais variegadas dimensões, e o tratamento empírico das questões econômicas, hoje muitíssimo valorizado no meio acadêmico, nos revela alguns elementos de constância, ainda que em escala bem menor do que na física ou química, onde a experimentação pode ser feita com maior precisão e desimpedimentos.

Em Economia a dificuldade empírica é que não é aceitável que se promovam experimentos com a sociedade com o objetivo de cotejar distintas teorias, como se faz na física. Por exemplo, é inaceitável fecharmos repentinamente as fronteiras do Estado de São Paulo ao comércio com outros estados da federação para poder medir com precisão os impactos deletérios da ausência de comércio. Isso dificulta a crença em regularidades empíricas semi-infalíveis, mas de toda forma sabemos com alguma margem de segurança que:

(i) garantias de direitos de propriedade promovem o crescimento da economia;

(ii) melhorias na qualidade e abrangência da educação são um potente instrumento de diminuição da desigualdade;

(iii) políticas de gastos públicos irresponsáveis geram alta inflação que prejudica os mais pobres;

(iv) mais comércio internacional (mas não necessariamente fluxos de capitais) faz bem para o crescimento de todos os países;

(v) países em desenvolvimento com maior taxa de poupança crescem mais rapidamente etc.

5. No mundo físico, e de certo modo também no mundo mental, percebe-se uma relação íntima entre quantidade e qualidade. Algo que numa certa dose pode ser prazeroso numa outra dose muito maior pode passar a ser desprazeroso. Cada vez mais o homem tem se dado conta e se envolvido com o significativo valor de ter. É muito provável que o valor de ter tenha estado presente desde sempre no homo sapiens. Pelo que se pode perceber, nem sempre o ter garantiu ao homem ser. A tão misteriosa felicidade, por exemplo, não parece mesmo estar garantida pela riqueza. Sem que se menospreze a importância de ter corre-se o risco de desatender à importância de ser. A economia mundial, qualquer que seja sua tendência ideológica, acaba por incentivar o consumo. Gera-se uma dependência para com este consumo a fim de que possa continuar funcionando a lógica dos mercados financeiros. O consumo, forma particular e especial de ter, pode inclusive tornar-se uma espécie de "fetiche" (como passaram a apontar certos filósofos contemporâneos) que ilude o homem de estar se tornando algo (por exemplo: poderoso, especial, superior etc.) quando na realidade apenas o está escravizando a um sistema dominador. Há algo nas ciências econômicas que aponte para a possibilidade do homem ser, por exemplo, mais satisfeito com a vida, do que continuar na direção de se ter, possuir, consumir mais e mais coisas? A própria melhoria de vida do brasileiro tem sido medida pelo aumento de sua capacidade de consumo. Será esta, realmente, uma boa medida da qualidade da vida de nosso povo?

A medida mais objetiva de bem-estar econômico vai mesmo pela direção do ter, pois é o PIB por habitante que mais recorrentemente usamos como régua para o grau de desenvolvimento. Além disso, é o padrão de consumo individual que reflete o bem-estar econômico nos modelos matematizados mais simples. Porém, se uns têm muito e outros pouco, os índices de desigualdade dão conta de sinalizar que essa sociedade é disfuncional, que seu desenvolvimento não é pleno.

O não economista em geral chama nossa atenção para outros aspectos fundamentais da felicidade humana que não consideramos diretamente. Ofereço as seguintes respostas a essa crítica. Primeiro, não é apenas o consumo de bens e serviços que entram como medida de felicidade nos modelos e na análise econômica, mas também tempo disponível para atividades não diretamente relacionadas ao trabalho e a qualidade de vida medida de um modo mais amplo, ainda que sempre com base em dados objetivos, como taxa de alfabetização e expectativa de anos de vida, direitos políticos etc.

Segundo, é importante aclarar que essas criticadas medidas tradicionais e "frias" de riqueza, como PIB e consumo per capita, estão correlacionadas a diversas outras variáveis que em alguma medida compõem a felicidade humana, como:

(i) capacidade de desfrutar de boa saúde;

(ii) ter acesso à educação de qualidade;

(iii) poder viver em segurança;

(iv) poder viver uma velhice digna após anos de trabalho;

(v) amplitude das liberdades políticas e individuais;

(vi) ter tempo e recursos para cuidar do meio-ambiente, ou ir a museus e à praia etc.

Ou seja, mais PIB não significa apenas mais consumo na definição estreita do termo. Mais PIB significa também mais (i), (ii), (iii) etc. Claro, obviamente há dimensões mais complexas disso que chamamos de felicidade que escapa a tudo acima dito. Apesar de importantíssimas, essas dimensões não são mais objeto de estudo da Economia.

Entendo que para muitos a sociedade do consumo exagerado (confesso imensa imprecisão científica no uso de um termo como esse) parece algo indesejável, fator gerador de angústias múltiplas. Compartilho como indivíduo essa preocupação, essa vontade de ver maior moderação no ato de comprar. Porém, no meu entender, essa é uma escolha livre das pessoas (tenho pouca fé em grandes teorias da conspiração), e assim não vejo motivo para intervenção pública. As pessoas compram mais coisas hoje do que no passado não porque elas foram forçadas a isso por um ente malévolo, mas majoritariamente porque agora se tornou mais fácil fazê-lo (devido ao aumento da produtividade e da renda média). Mais ainda, se as sociedades como um todo alterarem ao longo do tempo suas preferências e decidirem viver com menor consumo, isso não necessariamente representaria um problema para o funcionamento econômico. Ocorreria nesse mundo hipotético uma diminuição das horas trabalhadas (dado que uma menor oferta de bens finais já seria "suficiente" para satisfazer os anseios materiais das pessoas).

Aliás, já se vê inclusive isso hoje nos dados: a Europa como um todo tem menor renda por habitante que os EUA, e consome consequentemente menos bens e serviços. Mas desfruta de maior tempo livre (cerca de 30%) para se dedicar a outras coisas (ir a museus!). Ressalto mais uma vez que essa é uma escolha que lhes cabe, apenas a eles, europeus, como sociedade. Faz sentido impô-la aos norte-americanos, que gostam de comprar maior número de bugingangas, de ir ao shopping, mais recorrentemente? Não creio. Não faz parte das atribuições do economista tentar mudar as escolhas individuais das pessoas quando essas não geram externalidades negativas sobre a sociedade.

Finalizo com uma evidência empírica interessante, uma pesquisa realizada com base em dados de questionários levantados junto a populações de diversas partes do mundo. A realidade sugerida pelos dados é que a felicidade reportada pelos respondentes tem sim uma relação direta com nível do PIB por habitante do país, mas apenas até certo ponto (que não é alto, vale dizer). Populações de países medianamente ricos não se auto-reportam como mais felizes à medida que sua renda cresce ainda mais.

6. Em certo momento da história da psicanálise, Freud chega a postular que as capacidades para o amor e para o trabalho poderiam ser entendidas como uma espécie de objetivo para o qual tendessem todos os processos terapêuticos psicanalíticos bem sucedidos. De modo um pouco simplista, é verdade, poderíamos chegar a dizer que o amor e o trabalho teriam se tornado um ideal ou, quem sabe, modelos ideais para o bem estar do sujeito. Naturalmente que qualquer ideal pode ser visto como uma espécie de utopia, verdadeira ilusão, perturbadora e causa de impedimento de que se atinja a realidade da vida como ela é. Haveria, nos estudos promovidos pelas ciências econômicas, a busca de um tipo qualquer de ideal que norteasse, equilibradamente, as relações humanas? Ou será que tal, eventual, preocupação não passe de nova ilusão?

Parece-me que esta é uma problemática mais próxima da ciência política do que da Economia. No que se refere a essa última, posso afirmar, contudo, que o que norteia boa parte da pesquisa em economia é o desejo de aprimoramento social em sua dimensão mais ampla. Mas sem uma meta clara do que seria um padrão de relações considerado "ideal".

As hipóteses de modelagem empregadas pelos economistas não dão brechas para formulações muito entusiastas sobre os padrões de comportamento medianos das pessoas (em geral, o objetivo do estudo é mais nobre que as hipóteses duramente realistas empregadas), pois isso conflitaria com a evidência empírica corrente e histórica que sinaliza que os indivíduos estão principalmente preocupados com seus desígnios, mesmo que uma parte claramente não majoritária de suas preferências também seja de natureza altruísta. Somos sisudos metodologicamente, nas hipóteses básicas de nossos modelos, e o homus economicus é reflexo dessa visão, digamos, pessimista (realista?) do padrão médio de comportamento humano. A tentativa é a partir daí desenharmos, com auxilio da ciência econômica, padrões institucionais que permitam uma sociedade melhor e mais igualitária. A Economia não tenta mudar a natureza humana, mas sim melhorar os resultados finais para a sociedade que provém da ação individual em grande medida egoísta.

 

 

1 Entrevista realizada pela comissão editorial da RBP em julho de 2011.
2Professor Associado de Departamento de Economia da FEA-USP, autor dos livros Economia sem truques e Sob a lupa do economista, ambos publicados pela Campus

Creative Commons License