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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.45 no.3 São Paulo jul./set. 2011

 

ARTIGOS

 

Tropismos na clínica: tropismo de vida e tropismo de morte1

 

Tropisms in the practice: fife tropism and death tropism

 

Tropismos en la clínica: tropismo de vida y tropismo de muerte

 

 

Plinio Montagna

Presidente e membro efetivo da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo SBPSP

Correspondência

 

 


RESUMO

O autor discute a utilização do conceito de tropismo, por Bion, na psicanálise. Apresenta uma situação clínica na qual seu emprego como referência conceitual auxilia o trabalho analítico.

Palavras-chave: tropismo; identificação projetiva; vida e morte; experiência emocional; contratrans-ferência.


ABSTRACT

The paper discusses the use of the concept of Tropism, by Wilfred Bion, in psychoanalysis,. A clinical situation is presented in which its use as a conceptual reference aids the analytic work.

Keywords: tropism; projective identification; life and death; emotional experience; countertransference.


RESUMEN

El autor discute el uso que Bion hace, en psicoanálisis, del concepto de Tropismo, y presenta un ejemplo clínico de su utilidad en la práctica clínica

Palabras clave: tropismo; identificación proyectiva; vida y muerte; contratransferencia; experiencia emocional.


 

 

Os tropismos são a matriz da qual brota toda a vida mental.
(Bion, 1992, p. 48)

Este artigo aborda a utilização do conceito de tropismo, jamais sistematizado, nos diversos trabalhos em que Bion o emprega. Por meio de uma situação clínica, exponho sua utilidade e busco trazer as possibilidades que ele contêm para dar suporte à compreensão de certos fenômenos mentais e comportamentos humanos em sua expressão na transferência. A partir disso, proponho o emprego, na clínica psicanalítica, das expressões tropismo de vida e tropismo de morte para dar conta da diferenciação de suas expressões nas relações objetais.

 

I. A matriz da vida mental

A concepção de vida mental que Bion propõe nessa passagem claramente se funda em movimento do sujeito relacionado a um objeto externo. Em seu posicionamento, a vida mental brota, portanto, da relação objetal. Tropismo é um movimento direcional das plantas em resposta a determinados estímulos externos; ao detectar as melhores condições no ambiente, elas orientam seu crescimento naquela direção. Exemplos são o geotropismo, o fototropismo etc. O tropismo é positivo quando o movimento se volta para o estímulo e negativo quando se afasta. Também chamamos de tropismo à capacidade de certos vírus de se infiltrarem numa célula e se proliferarem em seu interior. Aqui, diferentemente do usual, o termo tem relação com destrutividade. Em ambas as formas trata-se de uma tendência inata, uma inclinação natural, uma propensão. Diz respeito a uma ação não engendrada conscientemente, ou, cognitivamente, em seres com tais possibilidades.

O termo se origina do grego tropikos (virar, curvar, inclinar, voltar-se), aparenta-se etimologicamente aos vocábulos troféu e trópico. Ambos contêm em suas origens a ideia de inflexão, de movimento. Por exemplo, a palavra troféu deriva do adjetivo tropaios, por sua vez derivado de tropé ou tropikos, significando algo conferido a quem luta, quando o inimigo se volta para trás, se movimenta em retirada. Os trópicos de Câncer e Capricórnio marcam os pontos nos quais o sol atinge o seu zênite (apogeu) nos solstícios, então "voltando-se para trás". Os trópicos situam-se simetricamente em latitudes paralelas e o espaço tropical representa aproximadamente a trajetória aparente da projeção do sol sobre a superfície terrestre nos solstícios.

O conceito apresenta certa modificação evolutiva em Bion, que o amplia, para sua utilização num contexto diverso daquele de sua origem. Se a primeira referência que ele toma vincula-se a fenômenos de nível quase pré-mental, ou proto-mental, ele depois é associado a um nível de desenvolvimento capaz de estabelecer identificações projetivas, supostamente, tridimensionais. Bion se apropria do termo tropismo mais na sua vertente positiva, que é o sentido mais usualmente empregado na biologia. O tropismo positivo é de aproximação, e o negativo, menos utilizado, é de afastamento. Devemos ter em mente que tanto o tropismo positivo, de aproximação, como o de afastamento, referem-se ao encontro de melhores condições para o desenvolvimento da vida. No caso do tropismo das bactérias que invadem certas células, promovendo proliferação de sua espécie dentro delas, este se refere à proliferação de vida dessa espécie, bacteriana, mas em detrimento do receptáculo, continente. Há um aspecto destrutivo, mortífero, em direção a este, como resultado da proliferação dos invasores "tóxicos". Então vê-se que dentro da mesma categoria - tropismo positivo - de aproximação, pode-se encontrar o elemento de vida e de morte. Não é aqui uma questão de aproximação e afastamento, mas sim de construtividade e destrutividade. Se fizermos um paralelo com impulso de vida e impulso de morte, este será mais próximo ao caráter destrutivo, de aniquilação, tal como encontramos nos posicionamentos de inspiração kleiniana (Segal, 1988), diferente daquele enfatizado por Green que está mais preocupado com a equação ligação/desligamento, com a função desobjetalizante da pulsão de morte (Green, 1988).

Bion, por seu turno, não discute especificamente, nem tampouco articula uma diferenciação entre o tropismo positivo ligado à vida, que é o sentido geralmente utilizado na biologia, e o tropismo que se poderia dizer destrutivo, dos vírus se infiltrando e proliferando numa célula. Mas ao longo do tempo, em sua utilização do conceito, traz referências que contemplam nitidamente as duas possibilidades.

 

II. Com Bion

Em se tratando de um fenômeno fundante, de um conceito que permite uma enorme variedade de conjecturas e interpretações, presta-se à observação de fenômenos vinculares - os mais primitivos e aqueles, ainda primitivos, mas que já sofreram alguma evolução, como da ordem da identificação projetiva, mecanismo este que implica em tridimensionalidade já conquistada no desenvolvimento mental. Da mesma forma, pode dar conta de fenômenos bi-pessoais nos quais até esteja obscurecida a distinção entre eu e não eu, entre eu e o objeto, mesmo fora do âmbito de identificação projetiva, anteriormente à possibilidade de utilização desta pela mente. É o que Bion propõe na frase que utilizamos como epígrafe: "Tropismos são a matriz da qual brota toda a vida mental".

O conceito de tropismo tem ancoragem etológica que mostra a influência de Bowlby em Transformações (Bion, 1965):

Hipérbole é um termo que pertence ao sistema das Teorias da Observação em contraste com a teoria da Identificação Projetiva que considero um termo pertencente ao sistema da Teoria Psicanalítica. Não me proponho a discutir a Teoria Psicanalítica, remeto o leitor ao trabalho de Bowlby e da Comissão de Pesquisa da Sociedade Britânica de Psicanálise... (Bion, 1965, p. 159)

Essa citação revela não somente o conhecimento do trabalho desse autor como também uma evidente convivência institucional.

Em Experiências com grupos, Bion (1959) utiliza pela primeira vez a palavra, ao tomar emprestado da química, o termo valência. Esta expressa a presteza do indivíduo para combinação emocional espontânea e instintiva com outros, ou com o grupo todo, dentro da suposição básica dominante num determinado momento grupal. Bion a contrapõe à capacidade de cooperação consciente que se dá em momentos grupais em que a dinâmica se configura como grupo de trabalho. Tem a ver com sintonia e comportamento sintônico e o fluxo grupal. É uma função humana sempre presente quando há vida mental. Diz ele:

ainda quero usá-lo (o termo) para indicar uma presteza à combinação em níveis que quase não podem ser chamados mentais, mas são caracterizados por comportamentos no ser humano mais análogos a tropismos nas plantas que a comportamentos mais propositais implícitos numa palavra como assunção. (Bion, 1959, p. 10)

Podemos observar então, nessa passagem, tropismo posto como elemento do próprio limite da vida mental humana.

Seis anos mais tarde, em Transformações (1965), volta a se referir ao tropismo quando trata da consciência (da natureza de um tropismo) como uma percepção de uma falta de existência que demanda existência, um pensamento à procura de um sentido, uma hipótese definitória à procura de uma realização se aproximando dela, uma psique procurando uma habitação física para lhe dar existência.

Mas é em Cogitations (Bion, 1992, p. 48 e 49) que vemos um capítulo (de 1959), inteiramente destinado a tropismos, agora no plural. Nele, desenvolve o duplo aspecto do tropismo e o aparenta à identificação projetiva. Descreve sua perspectiva comunicacional (que nos interessa no presente trabalho), sua ação na própria personalidade, a qual depende da estrutura desta, e, principalmente, a importância da existência de um objeto, o seio, no qual os tropismos possam ser projetados.

Se esse objeto não existe, o resultado é um desastre, toma a forma de perda de contato com a realidade, apatia ou mania... Mas se existe tal objeto, um seio capaz de tolerar a importância de identificações projetivas, então podemos supor que o resultado será mais favorável, ou pelo menos ficará em suspenso. ... A ação apropriada aos tropismos é a busca. Até esse ponto, considerei que essa atividade poderia estar relacionada com assassinatos, parasitismos e criação, os três tropismos. Assim, considerados individualmente, vemos os tropismos conduzirem à busca de:

a. Um objeto para matar ou que seja morto

b. Um parasita ou hospedeiro

c. Um objeto para ser criado ou criador

Mas, tomada como um todo, a ação própria dos tropismos, no paciente que busca tratamento, é a busca de um objeto com o qual possa fazer identificação projetiva. Isto se deve ao jeito de que, em tal paciente, o tropismo de criação é mais forte do que o tropismo de assassinato. (Bion, 1992, p. 4)

A rejeição ao tropismo, por intolerância à identificação projetiva, por exemplo, por ansiedade (perseguição) e ódio, ou apatia, resulta numa contribuição do componente ambiental, como diz ele, ao desenvolvimento da parte psicótica da personalidade.

O desenvolvimento da personalidade depende então da existência de um objeto similar ao seio, no qual os tropismos (identificação projetiva) podem ser projetados.

Se o objeto não existe, um desastre sucede para a personalidade, que em última instância, se torna estruturada em termos da perda de contato com a realidade, apatia ou mania. O senso de autoestima, diz ele, é responsável por uma restituição bem sucedida, por um objeto dotado de sensibilidade e receptividade emocional, de projeção em busca de um significado. Este aspecto da experiência da relação da criança com o objeto primário é responsável pelo elemento ambiental na formação da parte psicótica da personalidade. A criança aprende a internalizar uma mãe seio que provê continência psíquica e utiliza a emoção com a finalidade de compreender. A falha em introjetar um objeto que compreende as emoções distorce o crescimento e impede o desenvolvimento de uma função fundamental para a constituição de nosso senso inato de existência. O resultado é a formação de uma mente explosiva sem ressonância emocional, na qual as defesas psicóticas são enxertadas em seguida. O ponto crucial vem a ser a constante deterioração do aparelho psíquico... (Bion, 1992, p. 48)

Como tantas das formulações de Bion, esses desenvolvimentos podem representar auxílio efetivo para a reflexão acerca de algumas situações clínicas.

Sabemos que a experiência emocional pode ser veiculada por alguém por meio de modos de expressão muito diversos, dependendo de seu estágio de elaboração. Atos que parecem não ter nenhum sentido, sonoridades não verbais ou construções muito elaboradas podem nos servir de pistas. As expressões que derivam da experiência emocional podem ou não ser apreendidas pelo interlocutor (Montagna, 1996). Depende de que o código que a embala seja decifrado por ele, a partir de intuição sensória, sonhos, fundamentalmente em estado de rêverie. No fazer clínico é relevante que possamos distinguir uma expressão que contém puro automatismo mental de uma outra que mostra, ao longo do tempo, alguma articulação de sentido comunicacional. É a existência de um interlocutor que decifre a comunicação que permite sua confirmação. Isso passa pela rêverie do analista e pela contratransferência. Também Caper (2010) é um autor atento a essa distinção entre comunicação com sentido e aquela que veicula automatismo mental.

Meltzer (1978) destaca que o tropismo, como utilizado por Bion para a vida mental, postula uma conscientização da falta de existência que demanda existência, um pensamento em busca de significado, "como uma pré-concepção que ele (Bion) assumiu por definição não ser observável". Essa compreensão de Meltzer se refere à posição adotada por Bion em Transformações.

Bion em Cogitações (1992, p. 159) aponta que a transformação em psicanálise depende da qualidade de acolhimento da emissão. Se não houver o encontro do analista seio-continente pode ocorrer a transformação em psicose, apatia ou mania.

O interessante é que o elemento tropismo encontra-se desde um nível pré ou protomental, quase somático, até um nível de mais complexidade, o pensamento que busca um sentido. Esse caráter, ao mesmo tempo embrionário e polissêmico, da utilização do tropismo confere ao conceito uma pluralidade possível e, também, desejável de utillizações com a qualidade de referente claro daquilo que se veicula.

Por exemplo, para Eigen (2001) a teoria do tropismo permite embasar um aspecto "osmótico" da análise, o qual, graças à identificação projetiva, refere-se à permeabilidade do analista, que deixa o outro entrar em sua mente, sentir seu impacto, manter em si imagens e pensamentos oriundos do outro - e vice-versa. Nas relações humanas, quanto e em que circunstâncias somos permeáveis ao outro? Esse é um aspecto da maior relevância no processo psicanalítico.

O tropismo, fenômeno de ampla verificação clínica, por suas características implícitas e essenciais de movimento sujeito-objeto com manifestações "palpáveis", perfeitamente observáveis a partir do método psicanalítico, é um conceito sub-utilizado pelos analistas contemporâneos. É importante frisar que se trata de um conceito diferente, no nível epis-temológico, ao de pulsão, não se confundindo com este, como apontam Escallón e Archila (2010).

 

III. Tim, presenças e ausências

Da análise anterior, Tim faz menção a longos períodos de silêncio durante as sessões. Não posso dizer que esse padrão se repita comigo, ainda que muitas vezes sua comunicação verbal pareça subitamente se truncar. A liberdade que faz brotar ideias em cadeias associativas se torna exígua, demandando uma atividade algo vicariante de minha parte, do tipo de que necessitam alguns pacientes bem mais alexitímicos do que ele. Em algumas ocasiões, essa sua paralisia associativa abrupta me invade; num momento, como que atordoado, não posso também pensar, imaginar, sonhar, conjecturar. Absorvido isso, em seguida voltamos a sonhar. Outras vezes loquacidade acompanha seu entusiasmo, num tema ligado ao momento, angustiante ou não. Em geral é colaborador. Nos damos bem. Há expansões, dentro da sessão e, pelo que depreendo, fora dela também. A análise tem efetivamente posto em movimento o trabalho em áreas de identidade e, particularmente, embodiment de suas emoções e de sua vida psíquica. Com isso quero dizer que sua figura delgada, passos leves, estampava um modo de ser etéreo, desencarnado, digamos que também não engajado com a realidade, interna ou externa, mais compromissado com os praze-res do dia a dia do que com uma atividade consistente - poderíamos dizer predominância de cisões. De modo muito interessante, aos poucos, parece estar "encarnando" suas emoções e seu mundo mental, e de certo modo substanciadas pela mudança de expressão corporal.

Peculiar foi, durante algum tempo, seu comportamento em seguida à concretização inequívoca de realização importante em sua vida profissional, acompanhada por expansão em tipos de vínculos pessoais. Nas sessões, ecoava ódio a seu pai, que sentia como gratuito, mas incontrolável. Por vezes o atribuía ao jeito de ser deste. Ao mesmo tempo, engajou-se numa empreitada profissional que contou com suporte dele, cujo sucesso celebrou comigo, para depois disso "sumir" por três meses. Minto. Compareceu a uma sessão, no fim do primeiro mês de sumiço, para me pagar. Disse que ia viajar, em vinte dias, mas aí não veio mais por esse tempo. Utilizava mensagens de celular, tipo sms, para justificar ausências, informar presença no dia seguinte, desculpar-se por não ter ido. Mas a maioria do tempo foi um "silêncio" que se instalou.

Como depositário dessa ação "trópica", indagações surgiam em minha mente: nuan-ces de sensações várias, sentimentos, conjecturas, algumas nítidas e outras esfumaçadas, próximas ou longínquas, uma ausência presente ou uma ausência absolutamente instalada como tal, o nada e a não coisa, ambiguidade. Podia sentir que ainda um fio o ligava à análise, ainda que por vezes via como distante a perspectiva de continuidade de nosso percurso juntos. Às vezes, simplesmente, me esquecia de sua existência. Em seus horários, eu permanecia no consultório com outros afazeres, deixando de lado a questão de sua existência; outras vezes, sonhava e era como se eu tivesse que trabalhar sozinho, por mim, dentro de mim, a comunicação que de algum modo estava no ar. Como se aquela vicariância descrita dentro da sessão agora se fizesse necessária num contexto bastante sui generis. Podemos dizer que se trata de um setting ampliado pela distância espacial e também temporal. Colucci aproxima esse espaço de fronteira ou cesura:

a fronteira organizada pela cesura, não contém objetos, há um vazio de objetos, mas é a fonte de uma energia potencial passível de dar continuidade à vida uma vez que é a origem de toda potencialidade para o crescimento. (Colucci, 2010)

De minha parte, há muito costumo estar atento ao que se tem por dimensão interna do setting (Montagna, 1991).

Tim utilizava esse setting ampliado, a partir de uma "força gravitacional", que posso comparar a um gravito-tropismo. Afinal, o espaço analítico mantém uma apreciável força gravitacional, não tão considerada em psicanálise. É como um espaço/campo virtual dentro do qual se mantém o investimento libidinal necessário para a preservação do vínculo.

Não se tratava de tolerar ou não o não saber, e essa observação é relevante. A dificuldade não era essa. Ao longo do tempo, uma não existência adquiria existência e o desafio era acolhê-la (a ausência presente) e significá-la, ou ressignificá-la. Cabia a mim dar continência, metabolizar, sonhar, conjecturar sobre o que poderia estar se passando, com a convicção de que, como um caleidoscópio, as configurações podiam se alterar e se alterariam a cada movimento. Tratava-se, sim, de pensamentos em busca de sentidos, o que também se relaciona com tropismo.

Sobrevinham incertezas sobre se aquela ação curiosamente trópica se referia à comunicação - identificação projetiva comunicacional ou de ataque, destruição - e as respostas que eu encontrava variavam. Impunha-se a consideração da polissemia implícita nas comunicações humanas. O termo tropismo, nas diversas acepções utilizadas por Bion, permite uma ampla quantidade de perspectivas, desde as invasões de morte à comunicação de vida. O termo permite ir além (ou aquém) da identificação projetiva e caminharmos para a identificação adesiva, incluindo, portanto, uma gama bem maior de fenômenos veiculados no receptor. Tropismo mostrava-se apropriado para ancorar minha posição quando eu buscava pensar, também, conceitualmente o fluxo interativo daquele momento.

A complexidade e multiplicidade de níveis de comunicação não verbais estavam em jogo. Por um lado, a evidente possibilidade de paralisação do analista pela ausência do paciente, podendo "esquecê-lo", pode se configurar como tropismo de morte, inequívoco ataque ao vínculo. Por outro lado havia paralelismos que não podiam deixar de serem levados em conta enquanto a comunicação fosse possível. Por exemplo, ele, em desconforto pela necessidade de sustento em algumas áreas por seu pai, até então, me deixava também na situação de receber meus honorários na sua ausência prolongada, o que podia gerar uma sensação contratransferencial de o estar espoliando, recebendo pelas sessões sem trabalhar efetivamente; ou, então - ele, com componentes da ordem da castração, me deixava em princípio impotente, um analista que não podia exercer sua função pela sua ausência. Até como forma de não me deixar castrar, exercícios como esses faziam a análise permanecer existindo. É claro que outras possibilidades poderiam existir, mas essas já eram hipóteses que seriam pesquisadas, quando em contato com ele.

Outra questão que frequentemente se impunha a mim era - até que ponto deixar a situação se estender dessa maneira? Até que ponto isso era importante para acolher as necessidades do paciente de poder ser ou não ser, vir ou não vir, e, por outro lado quando se iniciava a necessidade de dar um basta, de se colocar ordem, aqui sim uma castração, mas simbólica. Hospitalidade também implica em configuração de ordem, de limites. Posso dizer que sua estabilidade era instável. Indagava-me também, buscando pontos referenciais para reflexões: Que invariâncias podemos buscar na presença e na ausência física? Dada sua história, a predominância seria de introjeção de elementos "maternos" paralisantes, "paternos" em linhagem de castração? Até onde está em jogo a órbita gravitacional que nos faz sustentar nossa convicção de que o que ocorre está dentro do âmbito dos fenômenos analíticos do percurso, ou, a partir de quando aquela análise poderia dar-se como interrompida? Muitas vezes me vi duvidando disso, mas prevaleceu o sentimento de que a análise ainda existia. Um eventual desconforto por não receber no dia certo, no segundo mês, que me sugeriam telefonar e cobrar versus a estratégia de tolerar, de manter a tática de aguardar o contato. Até que ponto uma tentativa de manipulação sádica estava em jogo e que deveria ser interrompida pela ação do analista? (ao mesmo tempo enviava mensagens por sms desculpando-se por não poder comparecer, dizia que iria no dia seguinte, mas no dia seguinte desculpava-se novamente). Nesse sentido ataca o parasita que ele sente que está dentro dele, em mim. Trata-se de um tropismo negativo -em Cogitations é o tropismo de assassinato. O que era importante? O paciente ter a experiência de um analista que aceitava e suportava a angústia de suas identificações projetivas, ao mesmo tempo expulsivas e comunicativas, por meio do impacto emocional causado (ou recebido)? Havia um perverso convite à corrupção?

O que me era claro é que qualquer ação incisiva no sentido do corte somente poderia ocorrer seguindo uma real convicção íntima de que era isso o melhor a fazer. Quando ele me telefonou, disse-lhe que precisaríamos conversar para ver se ele queria mesmo seguir a análise. No dia seguinte faltou - "por motivo justo" -, mas retornou na sessão subsequente. Em nosso encontro seguinte declarou-se muito assustado pela possibilidade de que eu quisesse interromper sua análise, que havia sentido uma ameaça disso ao telefone. Após esse período passou a não faltar às sessões o que possibilitou que emergissem as questões relacionadas a elementos e marcantes características, cujo surgimento no campo transferencial revelou-se da maior importância em nosso percurso, erigindo-se como um marco propiciador de mudanças significativas.

 

V. Alinhavo e pontuações

Alinhavo agora alguns desafios a serem trabalhados pelo analista, em situações dessa natureza, que permitirão, ou não, que ele possa extrair o útil numa situação potencialmente perdedora. Em outras palavras, para que exista, no limite, um trabalho interno do analista a partir de sua experiência emocional, na perspectiva de amplificar sua arte de continência do que recebe de seu paciente no campo transferencial. Encontrar sentidos possíveis, plausíveis, na situação, a serem, quando viável (mas não necessariamente), pesquisados junto ao analisando, pode também servir como ponte de contato, material para a pesquisa da verdade, agente de eventuais desenvolvimentos, se isso ocorrer de um modo eminentemente insaturado. Albergar as nuances do tropismo carregado de elementos beta é vital para a preservação do vértice analítico e da própria análise.

Esse trabalho solitário na ausência do paciente, não verbal, de importância única, havia se tornado claro para mim, na minha experiência com observação de bebês, até mesmo como fonte de mudanças na relação. Os trabalhos de Joyce McDougall (1983) e de Neville Symington (1983), comentando as reações do analista na ausência do paciente em situações onde está em jogo engajamento e liberdade do analista, corroboram meu ponto de vista. A manutenção da visão de nós mesmos como analista daquela pessoa, ainda que na ausência, é fundamentalmente uma questão de fé, tanto na análise e nos sentidos que tudo aquilo pode ter, principalmente no vínculo em questão.

 

Pontuações

Para trabalharmos essas circunstâncias precisamos manter a fé, a convicção, no trabalho analítico - e a esperança da permanência da ligação, esta reafirmada pela confiança estabelecida entre os componentes do par. A atenção às sutilezas de comunicação e de variação sintônica de nossos estados mentais são também ferramentas da maior relevância no caso. São pressupostos que se constroem como fundamentos da possibilidade de trabalho na circunstância.

Mantermos a convicção analítica e a esperança, além da confiança na dupla, é fundamental para que exista a possibilidade de trabalho nessas condições.

A experiência emocional do analista vai orientá-lo quando é preciso dar um basta à ação esvaziante do paciente para recuperar a continuidade ao processo de modo presencial, e quando está prevalecendo o tropismo de vida, que pode ser melhor acolhido com o exercício de tolerância.

À medida que a atitude do paciente tem tinturas de aparente "convite à corrupção", ganhar sem o trabalho presencial, aproveitar-se, refestelar-se com sua ausência, o trabalho interior do analista será também a maneira de "neutralizar" o tropismo de morte. O ataque ao setting substitui um ataque direto ao analista. O paciente precisa ser colocado a par disso, quando for possível. Suportar a ambiguidade descortinada pela circunstância é da maior valia.

Numa análise o setting é estabelecido de comum acordo, no entanto, é comandado pelo analista que protege e zela por ele, mesmo se eventualmente o analisando não faz sua parte nisso. O direito de vir ou não vir é atropelado pela ausência paralisadora, controladora, ainda que por vezes desse sinal de sua existência por sms, verdadeiros torpedos pelo celular. Tim ameaçava vir e depois se desculpava novamente. Verdadeira tortura. Imposição de suspense e agonia no analista.

Análise é experiência de intimidade, uma relação de cooperação, de trabalho, em que observamos tropismos e, dentre muitas outras coisas as "ferências" que circulam entre analista e analisando. Podemos observá-las a partir também da contratransferência, ou, caso se queira, do impacto emocional no analista da presença (ou ausência) do analisando. A experiência da análise pode adquirir, em circunstâncias como essa, a conotação de vivência religiosa para o analisando, com dimensão xamânica. O analista precisa estar preparado para não embarcar em um conluio dessa natureza.

Estamos, em última instância, numa zona de diferenciação entre vazio (pausa, silêncio) e vácuo (sucção, evisceração). O analista será referência estável para esse afastamento/ permanência/aproximação, num nível não verbal; aqui existe semelhança com observação de bebês. Diferentemente de ataque ao vínculo, pode existir também uma necessidade de afastamento com confirmação de permanência por parte do paciente. Ele pode ir que continuamos aqui.

O espaço criado entre nós poderia ser visto como um espaço que se aproxima do transicional, de Winnicott, criativo, que permite transformações. Também pode ser visto como uma cesura, um espaço a ser transposto, em que é importante se diferenciar vazio de vácuo (sugador). A fronteira delineada pela cesura não contém objetos, mas seu vazio é uma fonte de energia passível de dar continuidade à vida e favorecer o crescimento.

Um ponto importante a considerar é a aproximação com Winnicott, uma vez que, se centrarmos o foco de que o objeto deve estar onde foi colocado pelo sujeito, será possível a ligação, conforme nos aponta Bion no texto citado de Cogitations. Então, o sujeito pode se voltar, por sobrevivência e crescimento, a um real tropismo de vida. E se na análise o parâmetro da neutralidade possível é bem vindo, ele só tem sentido a favor da vida, fundamentalmente, a favor da qualidade da vida mental.

 

Referências

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Correspondência:
Plinio Kouznetz Montagna
[Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo SBPSP]
Rua Gracindo de Sá, 71 | Jardim Paulistano
01443080 São Paulo, SP
Tel: 11 3368-3364
pkmontagna@gmail.com

Recebido em 20.4.2011
Aceito em 19.8.2011

 

 

1 A origem deste artigo foi um trabalho apresentado na jornada "Psicanálise: Bion: as teorias que sustentam a nossa clínica", realizada em abril de 2010 na Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo SBPSP.

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