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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.45 no.3 São Paulo jul./set. 2011

 

ARTIGOS

 

A função básica da mãe (e do analista) em bion e Winnicott, com foco nos conceitos de rêverie e holding1

 

The basic function of the mother (and of the analyst) according to Bion and Winnicott, focusing on the concepts of rêverie and holding

 

La función básica de la madre (y del analista) en Bion y Winnicott, centrado en los conceptos de rêverie y holding

 

 

Alfredo Naffah Neto

Psicanalista, mestre em Filosofia pela USP, doutor em Psicologia Clínica pela PUC-SP, professor titular da PUC-SP no Programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia Clínica, autor de vários artigos e livros sobre psicanálise e música, principalmente

 

 


RESUMO

O presente ensaio analisa os conceitos de rêverie e de holding no interior de suas teorias de origem, afim de discriminá-los um do outro. A partir daí, discute a clínica de esquizofrênicos, tal qual praticada por Bion e Winnicott, evidenciando como esses conceitos-chave definem a função analítica em ambos os autores, impondo diferentes modos de praticar a psicanálise.

Palavras-chave: rêverie; holding; Bion; Winnicott; análise de esquizofrênicos.


ABSTRACT

This essay analyses the concepts of rêverie and holding in their original theories, in order to discriminate them. Itproceeds to discuss the clinic of schizophrenics such as performed by Bion and Winnicott, showing that those key-concepts define the analytic function in both authors, imposing different ways of practicingpsychoanalysis.

Keywords: rêverie; holding; Bion; Winnicott; analysis of schizophrenics.


RESUMEN

El presente ensayo analiza los conceptos de rêverie y holding en el interior de sus teorías de origen, con el objetivo de distinguir el uno del otro. A partir de ahí, se discute la clínica de los esquizofrênicos, tal y como es practicada por Bion y Winnicott, mostrando que estos conceptos claves determinan la función analítica en ambos autores, imponiendo diferentes prácticas de psicoanálisis.

Palabras clave: rêverie; holding; Bion; Winnicott; análisis de esquizofrênicos.


 

 

1) considerações preliminares

Rêverie e holding são conceitos nucleares da psicanálise inglesa, o primeiro constitui a pedra angular da clínica de Wilfred Bion, o segundo a noção central da clínica de Donald Winnicott. E, talvez, por serem considerados conceitos homólogos em ambas as teorias, muitas vezes aparecem, em escritos psicanalíticos, justapostos - quando não, confundidos -, especialmente em autores que transitam de uma teoria para a outra sem maiores cuidados, recortando os conceitos de seu entorno teórico-clínico e fazendo as noções se equivalerem ou, pelo menos, se complementarem, na função psicanalítica.

Evidentemente, não estou me referindo àqueles que utilizam conceitos bionianos e/ ou winnicottianos (ou mesmo de outros autores) na sua composição teórica e os recriam, numa nova elaboração, como André Green, Thomas Ogden ou, mais próximo de nós, Luis Cláudio Figueiredo. Esses se dão ao trabalho de tentar construir um novo corpo teórico, no qual as noções emprestadas de outros autores vêm ocupar novos lugares, num todo relativamente coerente. Podemos nos identificar ou não com seus escritos, concordar ou discordar dos seus enxertos teóricos, mas não podemos negar que existe aí um trabalho de reconstrução, mais ou menos rigoroso.

Para todos esses fins - sendo mais ou menos justificado o uso que se faz desses conceitos -, é necessário, entretanto, nos perguntarmos se, nos seus lugares de origem, rêverie e holding designam processos semelhantes ou, pelo menos, equivalentes. O fato de ambos nomearem, para os autores citados, a principal forma de cuidado materno - e, por extensão, o núcleo da função analítica -, não os torna necessariamente similares.

A tarefa à qual me propus aqui é pesquisar o sentido dessas noções nas teorias que as referendam, bem como as consequências que esse sentido impõe à prática clínica dos seus respectivos autores. Considerarei aqui, especificamente, a clínica de pacientes borderline e/ ou psicóticos.

Isso não significa, de forma alguma, tentar restringir a utilidade desses conceitos (cujo uso é de grande abrangência, em diferentes situações de vida, dentro e fora do consultório), mas simplesmente focalizar uma condição clínica privilegiada, já que é nela que as singularidades de ambas as concepções se explicitam de forma mais clara.2

 

2) Rêverie e esquizofrenia

A noção de rêverie é altamente complexa e está ligada, na teoria bioniana, à noção de elementos β e de função α.

Bion entende que nossas primeiras experiências, ao nascer, implicam elementos sensuais/sensoriais (portanto, de origem somática) denominados elementos β que, para desdobrarem um componente mental, necessitam passar por um processo de elaboração, análogo à digestão, que ele designa como função a.3 Nas suas palavras: "Esse componente mental: amor, segurança, ansiedade, como distinto do somático, exige um processo análogo à digestão" (Bion, 1962, citado por Sandler, 2005, p. 460). Ou seja, se o bebê sente um mal-estar somático difuso e indefinido que, numa mente adulta poderia ser traduzido como medo de morrer, essa sensação obscura e apavorante, para adquirir contornos e significados mentais, para o bebê, dependerá de uma digestão a ser realizada. Nesse exemplo, podemos dizer que o mal-estar difuso é um conjunto de elementos β que, quando digeridos, transformam-se em elementos a, ganhando, então, forma imagética e verbal: medo de morrer (ou seja, conquistam dimensão simbólica).

"Elementos a podem ser usados para pensar, armazenar memória e sonhar. A função α. abstrai a 'concretude' das impressões sensoriais" (Sandler, 2005, p. 27). Ou, noutros termos, "a função α. 'des-sensorial-iza' ou transforma em imaterial aquilo que, em sua origem, era material" (Sandler, 2005, p. 643).

Bion entende que a mente primitiva do bebê é, inicialmente, incapaz de realizar esse tipo de depuração/transformação, dependendo, para tanto do adulto cuidador. Os elementos β são, então, segundo ele, evacuados sobre a mãe na forma de identificações projetivas e ela os devolve ao bebê, digeridos, transformados. Isso constitui, para ele, a forma mais primitiva de comunicação na relação mãe-bebê. Sandler diz:

Os infantes, por assim dizer, tomam emprestada a função α. de suas mães. Desta forma, a mãe desintoxica os elementos β da criança, sendo eles devolvidos ao infante numa forma digerida (Sandler, 2005, p. 27).

Assim, Bion se pergunta: ". Quando uma mãe ama o bebê, como ela lida com ele? Deixando de lado os canais físicos de comunicação, minha impressão é de que o seu amor é expresso por rêverie" (Bion, 1962, citado por Sandler, 2005, p. 645). Ou ainda, num sentido mais preciso: "Rêverie é um estado de mente que está aberto à recepção de quaisquer 'objetos' vindos do objeto amado e é, portanto, capaz de recepção das identificações projetivas do infante, sejam elas sentidas pelo infante como boas ou más" (Bion, 1962, citado por Sandler, 2005, p. 646). Rêverie designa, pois, o exercício da função α. sobre os produtos das identificações projetivas recebidas do objeto amado.

Resumindo, poderíamos dizer que ao conferir um estatuto mental às sensações somáticas do bebê, sejam elas boas ou más, calmantes ou terroríficas, a mãe possibilita que o mesmo possa reintrojetar aquilo que evacuou, mas sob forma depurada, desmaterializada, capaz - por isso mesmo - de propiciar-lhe, gradativamente, a possibilidade de sonhar,4 armazenar memórias e ir criando um aparelho de pensamento, já que somente os elementos α. possuem capacidade de relação e podem criar elos, formar estruturas. Serão eles que também garantirão, mais adiante, a distinção entre consciente e inconsciente e capacitarão a criança no uso da função simbólica nos seus mais diferentes níveis.

Assim se processa gradativamente o desenvolvimento de um bebê normal, aquele que, mais tarde, poderá vir (ou não) a desenvolver uma neurose. Mas, segundo Bion, como se formam os psicóticos? Simplesmente, carecem de uma mãe capaz de rêverie?

A questão não é assim tão simples; a ausência de uma mãe de mente aberta - para usar a expressão de Bion -, pode, sim, ser uma das causas da formação de uma psicose, mas geralmente não é a única, nem tampouco a principal.

Quando aponta as pré-condições para o surgimento da esquizofrenia, Bion começa dizendo: "Há o ambiente, que não examinarei dessa vez." (Bion, 1960, p. 70), o que impõe a pergunta: "Por que não examinará dessa vez?" E a resposta, que vai se confirmando ao longo do texto, é: simplesmente porque não vem do ambiente a pré-condição principal para a esquizofrenia. Esta se situa

na personalidade, que deve apresentar quatro traços essenciais. São estes: uma preponderância tão grande de impulsos destrutivos, que mesmo o impulso de amor é inundado por eles e transformado em sadismo; um ódio à realidade, interna e externa, que se estende a tudo o que contribui para a percepção dela; um terror de aniquilação eminente (Klein 1946) e, finalmente, uma formação prematura e precipitada de relações de objeto ... cuja fragilidade contrasta acentuadamente com a tenacidade com que são mantidas. (Bion, 1960, p. 70)

Ou seja, tudo o que está aí descrito como pré-condição para a esquizofrenia não provém de um ambiente deficitário, já que nesse texto Bion não está examinando o papel do ambiente na etiologia das psicoses. Ora, não sendo ambientais, essas pré-condições somente podem ser inatas, constitucionais. Bion as considera como "um dote". Eu o cito:

Estas (as pré-condições) são um dote, que faz com que, certamente, seu possuidor atravesse as posições esquizoparanoide e depressiva de um modo acentuadamente diverso de quem não é assim dotado. A diferença depende do fato de essa combinação de qualidades levar à fragmentação da personalidade em partes mínimas - em especial à fragmentação do aparelho de percepção da realidade que, na descrição de Freud, entra em operação em obediência ao princípio de realidade - e à projeção excessiva destes fragmentos da personalidade para dentro dos objetos externos (Bion, 1960, p. 70).

Ou seja, por serem mal dotadas, certas crianças já trazem uma propensão à esquizofrenia que as torna diferentes das crianças normais. O bebê com propensão esquizofrênica ataca sadicamente o peito materno e cinde os objetos e partes da sua personalidade - especialmente aquelas ligadas à percepção - em parte mínimas, em função do seu ódio à realidade. Tende, assim, a destruir todos os elos que possam levá-lo ao contato com aquilo que odeia. Nesse sentido, não tolera, também, os elementos a e a sua imaterial capacidade de produzir elos, ligações, pensamentos. Para o bebê com propensão à esquizofrenia, de muito pouco adiantará, nesse sentido, uma mãe de mente aberta, capaz de rêverie, já que ele tenderá a destruir o trabalho elaborativo por ela realizado. Resumindo, podemos dizer que se trata de crianças com uma baixíssima resistência à frustração, desenvolvendo todos esses mecanismos primitivos de defesa em função da dor psíquica que a realidade lhes provoca - considerados todos os tipos de frustração que ela, necessariamente, envolve.

Mas a questão é ainda mais complexa do que possa parecer, já que todo esse processo antes descrito constitui uma fantasia onipotente, uma ilusão do bebê, nos termos de Bion Bion, 1960, p. 72). Ou seja, é a parte psicótica da criança que acredita (e nisso se ilude) que pode realizar essas cisões e destruir o seu aparelho perceptivo, quando, de fato, há outra parte sua, não-psicótica, que continua mantendo contato com a realidade, mas que fica, entretanto, obscurecida pelo domínio da parte psicótica. Caso não houvesse essa parte não-psicótica e esse contato com a realidade, os mecanismos de defesa antes descritos nem seriam necessários.

A esquizofrenia descreve, pois, antes de tudo, esses embates entre a parte psicótica e não-psicótica da personalidade de um indivíduo, enquanto domina a parte psicótica. É possível se dizer - seguindo a tradição kleiniana, da qual Bion faz parte - que essa preponderância dos impulsos destrutivos, do ódio à realidade, do terror de aniquilação eminente etc. - associados à baixa resistência à frustração -, são manifestações do domínio da pulsão de morte sobre a pulsão de vida. E que isso caracteriza o "dote" do esquizofrênico.

 

3) a clínica bioniana da esquizofrenia

Para analisar, brevemente, a clínica de esquizofrenia proposta por Bion, cito, primeiramente, um trecho de uma sessão descrita num artigo publicado em 1957. Trata-se, segundo a sua descrição, de um paciente que usa a parte psicótica da personalidade para fazer cisões e identificações projetivas. Estava em análise há seis anos e nunca costumava faltar às sessões. Nessa sessão, entretanto, chegou quinze minutos atrasado e deitou-se no divã.5

Passou algum tempo mexendo-se de um lado para o outro, claramente procurando encontrar uma posição confortável. Por fim, ele disse: "Não creio que vou fazer alguma coisa hoje. Eu deveria ter telefonado para minha mãe". Fez uma pausa e então disse: "Não, eu achei que ia ser assim". Seguiu-se uma pausa mais prolongada e, então, disse: "Nada, a não ser coisas sujas e cheiros ruins".

"Acho que perdi minha visão". Uns vinte e cinco minutos haviam agora se passado, e nesse momento fiz uma interpretação.

Disse-lhe que essas coisas sujas e maus cheiros eram o que ele sentia que me levara a fazer, e que me obrigara a defecar tudo aquilo, incluindo a visão que ele havia posto dentro de mim.

O paciente se sacudiu convulsivamente e vi que perscrutava cautelosamente o que parecia ser o ar à sua volta. Então eu disse que ele se sentia rodeado por pedaços seus maus e malcheirosos, inclusive seus olhos, que sentia ter expelido pelo ânus. Ele respondeu: "Não consigo enxergar". Então, eu lhe disse que ele sentia que tinha perdido sua visão e sua capacidade de falar com sua mãe e comigo ao se desfazer dessas capacidades para não sentir dor. (Bion, 1957, pp. 77-80)

Poderíamos continuar a descrição da sessão em questão, mas isso não nos levaria a nada de muito diferente do que podemos observar nesse trecho citado. Ou seja, independentemente das justificativas de Bion para fazer tais interpretações - em função de materiais anteriores fornecidos pelo paciente -, podemos ver, claramente, que elas estão calcadas numa certa concepção do psiquismo e dos mecanismos de defesa psicóticos. Ou seja, trata-se de interpretações que descrevem claramente identificações projetivas e intro-jetivas realizadas pelo paciente (quais sejam: a visão do paciente, evacuada para o interior do corpo do analista, seguindo-se a fantasia de sua defecação pelo ânus do analista; a mesma visão, novamente reintrojetada devido ao medo da cegueira e, novamente, evacuada fantasiosamente pelo ânus do paciente a fim de evitar a dor produzida pela visão das coisas; e isso tudo levando à perda da visão e da capacidade de comunicação com o outro). Esse tipo de interpretação e tudo o que subjaz a ele ficarão ainda mais claros com o segundo exemplo que vamos examinar.

Vamos agora reproduzir um outro fragmento de sessão, descrito em "Notes on the theory of schizophrenia", no livro Second Thoughts (1967), portanto uma outra sessão dos anos 1950, retomada anos depois. Primeiramente, o autor nos adverte que se trata de um paciente esquizofrênico em análise há cinco anos e que a descrição realizada da sessão é condensada (tendo deixado de lado várias formulações repetitivas), o que pode criar a impressão de certa "aridez" (baldness) nas interpretações:

Paciente: Arranquei um pedacinho de pele do meu rosto e sinto-me bastante vazio.

Analista: O pedacinho de pele é o seu pênis, que você arrancou fora e todas as suas partes internas vieram junto.

Paciente: Eu não entendo . pênis . somente sílabas.

Analista: Você cindiu a minha palavra "pênis" em sílabas e, agora, ela não tem nenhum sentido.

Paciente: Eu não sei o significado, mas quero dizer: "Se eu não puder soletrar, não posso pensar".

Analista: Agora as sílabas foram cindidas em letras; você não pode soletrar - isso quer dizer que

você não pode reunir as letras novamente para formar palavras. Então, agora você não pode pensar. (Bion, 1967, p. 28)

O trecho citado é pequeno, mas suficiente para os meus propósitos aqui. Podemos considerar que, muito embora a sua descrição esteja condensada, depurada das repetições e, portanto, mais próxima de uma construção ficcional do que da realidade factual, nem por isso ela deixa de revelar princípios da técnica bioniana (inclusive porque vem corroborar o que pudemos observar na sessão anteriormente analisada). Passo, pois, à análise do trecho de sessão.

A primeira constatação importante é que a ferramenta clínica fundamental na análise da esquizofrenia continua sendo a interpretação, o que é bastante compreensível, já que se trata, segundo o próprio Bion, de devolver ao paciente, transformados em elementos a, os produtos das operações de cisão e evacuação, por ele realizadas, que tentam destruir qualquer forma possível de contato com a realidade, mantendo os dados perceptivos e mentais sob a forma incognoscível de elementos β.6 Isso como forma de resistência ao conhecimento que poderia ser propiciado pela análise.

As interpretações funcionam, pois, aí, como uma forma de rêverie, de digestão, transmutação, dos produtos difusos dessas operações, cujo componente mental necessita ser depurado. O analista realiza, então, uma espécie de contra-identificação projetiva, não violenta (segundo Bion), que favorece ao paciente a reintrojeção daquilo que foi evacuado, mas sob nova forma, digerida, capaz de ir lhe propiciando, gradativamente, a construção de um aparelho mental.

Note-se, também que, no trecho de sessão examinado - ainda que se considerem todos os silêncios e repetições excluídos por Bion do relato resumido -, as interpretações são usadas sem grande parcimônia, como manda a boa tradição kleiniana.

Entretanto, mais para o final de sua trajetória analítica, Bion mudaria essa maneira de operar analiticamente, mostrando-se mais cético e, consequentemente, mais parco, nas interpretações dadas a pacientes psicóticos.

No seu último livro Cogitations (Bion, 1992) aparece um texto não datado, denominado The attack on the analyst's a function (Bion, s/d, pp. 216-221), no qual são descritas sessões de um paciente no qual domina a parte psicótica da personalidade. Pode-se observar, então, que nessas sessões Bion permanece praticamente calado, na pura escuta.7 Em meio ao relato de uma das sessões, ele nos diz: "Eu decidi esperar." (Bion, s/d, p. 218). No final do relato de outra, comenta: "Há muitas interpretações que eu poderia dar e que dei no passado. Elas são aparentemente muito pouco eficazes" (Bion, s/d, p. 219).

Pode-se notar aí, certo desencanto de Bion em relação à eficácia dessa ferramenta analítica que tanto tentou elaborar e burilar, no tratamento de pacientes que, segundo o seu relato, são verdadeiros sacos sem fundo, que engolem as interpretações ou as despejam de volta no analista, sem deixar que sobre, no final, qualquer rastro delas. Não é por acaso que ele denomina essa seção do texto, que contém o relato das sessões, de "a Odisseia do analista" (the analyst's Odyssey), querendo significar, talvez, esse tipo de viagem analítica que navega quase sem rumo e encontra grande dificuldade de atingir terra firme.

Entretanto, pesando todos os prós e contras e todas as dificuldades encontradas, Bion nunca abandonou a interpretação como ferramenta clínica mor no tratamento de psicóticos. E isso, a meu ver, por uma simples razão: se a função analítica básica define-se, para ele, como rêverie, ou seja, se é necessário destilar um sentido mental das puras senso-rialidades (ou das operações de cisão e evacuação) e esse sentido tem de ser comunicado ao paciente deitado, privado de visão, isso terá de ocorrer por meio da linguagem; portanto, será necessária uma comunicação verbal, uma interpretação.8

A questão mor torna-se, então, como e quando interpretar, especialmente quando estão dominando, no processo, partes psicóticas da personalidade do paciente.

 

4) Holding e esquizofrenia

Holding é uma palavra que, na psicanálise winnicottiana, condensa vários significados. Eu cito Winnicott:

Sustentar (Holding):
Proteger da injúria fisiológica.
Levar em conta a sensibilidade cutânea da criança - tato, temperatura, sensibilidade auditiva, sensibilidade visual, sensibilidade para a queda (ação da gravidade) e a sua falta de conhecimento da existência de qualquer coisa que não seja ela mesma.
Isso inclui a rotina total de cuidados, através de dia e noite, e não é a mesma com duas crianças quaisquer, porque é parte da criança e não existem duas crianças iguais.
Igualmente, segue as mudanças diárias, minuto a minuto, consequentes ao crescimento e desenvolvimento infantil, tanto físico quanto psicológico. (Winnicott, 1960, p. 49)

Talvez a forma mais completa para definir holding seja descrevendo a mãe como um ego-auxiliar do bebê, posta a serviço da sua sustentação no tempo e no espaço, durante um longo período de tempo em que o bebê vive fundido ao meio ambiente, tendo uma identidade totalmente evanescente e fugidia e dependendo desse cuidado materno, como forma de manter minimamente uma continuidade-de-ser. A mãe como elo de união, manutenção e sustentação de um conjunto de experiências fragmentárias e dispersas.

Winnicott também entende que as sensações fisiológicas instintivas que atravessam o bebê e o impulsionam às atividades vitais necessitam de elaboração para ganharem um estatuto psíquico e poderem vir a ser gradativamente apropriadas pelo self (incluídos aí os impulsos agressivos/destrutivos e as experiências de prazer/desprazer que virão formar a sexualidade infantil). Mas, diferentemente de Bion, pensa que o bebê é, por si mesmo, capaz de realizar essa função desde o nascimento, primeiramente de maneira bastante rudimentar, e de forma cada vez mais complexa com o passar do tempo. Trata-se da elaboração imaginativa das funções corporais. Eu o cito:

Penso que devemos considerar que está havendo, desde o início, uma forma rudimentar do que chamaremos, mais tarde, de imaginação. Isso nos possibilita dizer que o infante ingere com as mãos e com a pele sensível da face, tanto quanto o faz com a boca. A experiência alimentar imaginativa é mais larga do que a experiência puramente física. A experiência total de alimentação pode rapidamente envolver uma relação rica com o seio materno ou com a mãe, quando esta passa a ser gradualmente percebida, e o que o bebê faz com as mãos e com os olhos amplia o âmbito do ato alimentar. Isso que é normal torna-se mais simples quando vemos a alimentação de um bebê sendo conduzida de forma mecânica. Tal alimentação, longe de ser uma experiência enriquecedora para o infante, interrompe a sua sensação de seguir existindo. Não sei como colocar isso de outra forma. O que há aí é uma atividade reflexa sem nenhuma experiência pessoal.

Quando o infante suga pontas de pano, o edredom ou uma boneca, isso representa um transbordamento da imaginação, tal qual ela é, imaginação estimulada pela função excitante central, que é a alimentação. (Winnicott, 1993, pp. 17-18)

Nessa concepção, todo o psiquismo infantil formar-se-á por meio desse processo de elaboração imaginativa e totalmente apoiado nas funções corporais, vindo a constituir, mais adiante, uma unidade psicossomática.9 Em um primeiro momento, a elaboração imaginativa da função alimentar cria, sob condições normais, o que Winnicott denominou ilusão de onipotência do pequeno infante. Quando dispõe de uma mãe suficientemente boa, capaz de fazer com que o seio surja, como num passe de mágica, diante da sua urgência instintiva, o bebê forma a ilusão de ter criado o objeto, no momento em que dele necessitava. Trata-se, aí, do objeto subjetivo.

Também as funções psíquicas de incorporação, evacuação, introjeção e projeção nascem, mais adiante, ancoradas em funções fisiológicas, tendo como modelos a ingestão e a defecação; sua dinâmica seguirá, pois, o padrão da função fisiológica modelo.10

Entretanto, a realização contínua da elaboração imaginativa - produtora de psiquismo -, por parte do bebê, necessita do holding materno como condição sine qua non, já que é graças a essa sustentação materna que essas experiências podem ganhar um mínimo de integração e de coerência, num período em que o bebê é não integrado (ou minimamente integrado).

Nessa direção de pensamento, a criança psicótica será aquela que sofreu falhas ambientais severas de holding no período de dependência absoluta (ou relativa) ou que formou, ao longo desses períodos, uma estrutura de personalidade precária que, no período posterior, do complexo de Édipo, frente às maiores exigências, entrou em colapso. Eu cito Winnicott:

O termo psicose é usado para significar ou bem que, enquanto infante, o indivíduo não foi capaz de atingir um grau de saúde pessoal que dá sentido ao conceito de complexo de Édipo, ou bem, alternativamente, que a organização da sua personalidade continha fraquezas que se revelaram por ocasião da solicitação máxima da condução do complexo de Édipo. Podemos verificar que há uma linha muito fina entre esse segundo tipo de psicose e a psiconeurose.
(Winnicott, 1959-1964, p. 131)

A diferença, para Winnicott, entre o paciente borderline e o paciente esquizofrênico designa, pois, antes de tudo, uma diferença de estado: latente ou manifesto. A doença borderline pode bem designar esse segundo tipo de psicose, aqui descrito, mais próximo da psiconeurose (mas que, nos períodos de crise, exibe sintomas psicóticos11) ou bem, uma esquizofrenia latente, na qual o falso self vem funcionando a contento, mas que pode entrar em surto psicótico durante os colapsos do mesmo. Como já me dediquei bastante a essa questão em artigos anteriores, vou aqui apenas resumi-la brevemente.

O falso self cindido constitui uma das defesas esquizofrênicas e se forma para proteger o núcleo espontâneo do bebê da falta de cuidados ambientais. Formado por mimetizações do meio ambiente, funciona como um escudo protetor que isola o self verdadeiro do bebê até que condições ambientais mais propícias aconteçam e ele possa retomar o seu desenvolvimento. Nessas condições, o self verdadeiro permanece em estado fragmentário e as adaptações ambientais são todas garantidas pelo falso self. Quando este falha e se desintegra, o indivíduo pode entrar em colapso, já que, nessas condições, o self verdadeiro, fragmentário, não possui instrumental para lidar com as demandas ambientais. Podem surgir, então, outros tipos de defesas esquizofrênicas, como a desintegração ativa, processo no qual as cisões originárias do psiquismo são multiplicadas e rearranjadas, de forma a proteger o self verdadeiro das intrusões ambientais/instintuais, já que agora, sem a proteção do falso self, o psiquismo fica completamente à mercê das mesmas.12

Por aí se vê que, para Winnicott, ao contrário de Bion, os componentes inatos, constitucionais, presentes na constituição da esquizofrenia, embora não sejam desconsiderados, estão muito longe de ocuparem o mesmo grau de importância. Evidentemente eles constituem a bagagem genética que fará com que um bebê seja diferente do outro: mais ou menos voraz, mais ou menos calmo, mais ou menos exigente no tempo dos cuidados etc. Mas a sua saúde psíquica dependerá, em última instância, da qualidade do holding materno.

 

4) A clínica winnicottiana da esquizofrenia

Winnicott sempre postulou que, na análise das esquizofrenias (bem como das patologias de tipo borderline), a ferramenta fundamental é a criação de um ambiente terapêutico capaz de criar confiança no paciente e dar sustentação a um processo de regressão aos estágios de dependência em que ocorreram as falhas ambientais. Ou seja, tendo uma concepção mais histórica e diacrônica do paciente - em comparação com a de Bion, mais estrutural e sincrônica -, Winnicott entende a regressão em situação terapêutica como uma segunda chance de, diante de condições ambientais mais propícias, o paciente poder retomar experiencialmente situações traumatogênicas e repará-las por meio do holding transferencial. Ou seja, aí a ênfase recai sobre o holding, como ferramenta clínica básica de reparação, nessas situações de regressão a estágios de dependência.

Bion pensava de forma totalmente diferente. Sobre a regressão disse:

Falamos sobre "voltar para trás" à meninice ou à infância. É uma frase útil, mas penso que é sem sentido. ... Você se lembra de quando estava no peito? Não, você esqueceu ou se livrou disso. Mas, tendo sido esquecidas, essas coisas persistem de uma maneira arcaica na nossa mente, de tal forma que continuam a operar ou a se fazer sentir . Desde que operem dessa forma arcaica, continuam a afetar o nosso trabalho. (Bion citado por López-Corvo, 2003, p. 249)

Ou seja, nesse texto Bion está dizendo que acredita em repressão e nos efeitos psíquicos do reprimido, mas não acredita em regressão. Em outro texto, entretanto, ele é menos enfático:

Winnicott diz que alguns pacientes necessitam regredir: Melanie Klein diz que não devem: eu digo que eles são regredidos (are regressed) e que a regressão deveria ser observada e interpretada pelo analista sem nenhuma necessidade de compelir o paciente a se tornar totalmente regredido antes que possa fazer o analista observar e interpretar a regressão. (Bion, 1960, p. 166)

Entretanto, que significa dizer aí que os pacientes "são regredidos"? A meu ver, é algo análogo a postular a existência de partes infantis da personalidade que atuam desde sempre na dinâmica psíquica, criando um estado permanente de "regressão", mas que não tem nada a ver com retornar a estágios de dependência. E, aí, mais uma vez, Bion reafirma a ferramenta clínica da qual nunca abre mão, mesmo nesses casos de "pacientes regredidos", qual seja: a interpretação.

Winnicott pensava de modo diferente. Para ele regressão significava um retorno experiencial a estágios de dependência e, nesse estado, acreditava que as interpretações eram desnecessárias.13 Mas para compreender melhor a sua postura clínica, retomemos o caso de Margareth Little, uma das interessantes análises que realizou com pacientes esquizoides.14

Digamos que Winnicott demorou um pouco para perceber que estava diante de uma paciente com defesas esquizofrênicas. Na primeira sessão, diante do recolhimento de Little, fez uma interpretação de resistência dessas que se costuma fazer para pacientes neuróticos: "Eu não sei, mas tenho o sentimento de que você está me trancando para fora por alguma razão" (Naffah Neto, 2008, p. 110). Mas Little não o deixou se enganar durante muito tempo; nas sessões seguintes, ao não se sentir compreendida, quebrou um vaso da sala, cheio de lilases e esmagou as flores com o pé. Winnicott, que gostava muito do vaso, deve ter ficado muito bravo; talvez para proteger a paciente da sua raiva, retirou-se, retornando somente no final da sessão; quando voltou, entretanto, já sabia do que se tratava. O que fez, então?

Começou por aumentar a duração das sessões para uma hora e meia; para quê? Para sustentar a necessidade de recolhimento esquizoide de Little e dar um tempo maior para que ela pudesse, já mais relaxada, sair do seu refúgio psíquico e entrar em relação com ele.

E o que Winnicott fazia nos momentos de puro terror em que Little entrava em total desespero e medo de aniquilação? Segurava as suas mãos durante um longo tempo, chegando mesmo a cochilar de cansaço. De que se trata aí? Também de holding; mais especificamente, de holding corporal.

As interpretações que Winnicott realizava eram, algumas vezes, constatações compartilhadas, do tipo: "Sua mãe é imprevisível, caótica e ela organiza o caos ao redor dela" (Naffah Neto, 2008, p. 113), ou interpretações temporais, capazes de ajudar a paciente a discriminar tempo presente de tempo passado; por exemplo, quando lhe disse - durante um intenso medo de aniquilação - que ela tinha sido psiquicamente aniquilada, mas tinha sobrevivido corporalmente e estava, então, revivendo a experiência passada.

Mas, poderíamos perguntar: isso não é rêverie? Winnicott não está aí retomando uma experiência somática difusa da paciente, nomeando-a e dando-lhe uma temporalida-de, portanto, um estatuto mental?

Podemos responder convictamente que não, já que não se trata, aí, de nenhum tipo de identificação projetiva, evacuada sobre a figura do analista.15 Trata-se de uma experiência traumática passada, que pode ser revivida por Little, no presente, graças ao holding oferecido pelo analista ao longo do processo. Por meio da interpretação, ele a ajuda a discriminar os tempos, a tomar consciência de que o que está sentindo naquele momento já aconteceu no passado (portanto, não está acontecendo no presente); está apenas sendo revivido sob forma de uma reminiscência.

O resgate final de Little da psicose ocorreu ao longo de um período de internação num hospital, nas férias de Winnicott, quando, de longe, ele controlava o ambiente hospitalar de forma a propiciar-lhe o máximo de liberdade, salvaguardando, ao mesmo tempo, um limite protetor. Durante esse tempo, Little pôde regredir a fases de dependência, refazer experiências fundamentais e renascer curada. Esse período está descrito com detalhes no livro da autora (Little, 1990), razão pela qual não me alongarei no seu relato aqui.

 

5) À guisa de concluir

Podemos, talvez, concluir, após todo esse percurso, que rêverie e holding constituem conceitos bastante dissemelhantes, envolvendo práticas clínicas igualmente diversas.

Não cabe, aqui, comparar ou avaliar o seu valor e a sua eficácia que sempre encontrarão adeptos e defensores de ambos os lados.

Entretanto, quando alguém diz que, na sua prática clínica, trabalha simultaneamente com holding e rêverie - sem retomar e recontextualizar esses conceitos numa nova forma de elaboração teórica -, é possível concluir que isso é, se não impossível, pelo menos disparatado, semelhante a juntar uma ária de ópera italiana com uma ária de ópera alemã, fora de qualquer contexto musical que lhes dê significado.

Penso que algumas formas de ecletismo teórico, do tipo anteriormente descrito, simplesmente destroem o rigor e a singularidade dos conceitos, lançando-os num senso comum, no qual já não significam mais quase nada. Pois a sua potência, como ferramenta teórica, provém das articulações internas da teoria da qual são parte integrante. Arrancados do seu habitat, são como flores que logo secam e fenecem.

 

Referências

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Correspondência:
Alfredo Naffah Neto
[Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC-SP]
Cons.: Rua Dr. Alceu de Campos Rodrigues, 309, cj. 73 | Vila Olímpia
O4544-000 São Paulo, SP
Tel: 11 3045-3082
naffahneto@gmail.com

[Recebido em 14.3.2011
Aceito em 3.8.2011]

 

 

1 Este artigo contou com a leitura crítica inicial do colega psicanalista Luis Cláudio Figueiredo, a quem agradeço.
2 Uma análise discriminadora desses conceitos já foi realizada anteriormente por outros autores, dentre os quais Ogden, em um artigo bastante interessante (Ogden, 2004). Entretanto, diferentemente da proposta aqui realizada, ele não utiliza a análise de esquizofrênicos (em ambos os autores) como foco privilegiado de investigação, o que imprime às suas descobertas um colorido um pouco diferente daquele que se descortina a partir do presente estudo.
3 Bion usava indistintamente os conceitos de mente (mental) e personalidade (e, mesmo pensamento, quando queria falar da mente na função que considerava a mais importante). Já Winnicott distinguiapsique de mente, sendo este último termo aplicável somente a uma parte especializada das funções psíquicas: às funções intelectuais.
4 Ogden procura articular a noção de rêverie ao conceito bioniano de continente-contido, desdobrando daí diferentes formas do sonhar, como processo básico de elaboração psíquica: "Assim, é básica ao pensamento de Bion a ideia de que o sonho é a forma primária por meio da qual realizamos um trabalho psicológico inconsciente com a nossa experiência vivida. Essa perspectiva ... integra o conceito de continente-contido. ... O 'continente' não é uma coisa, mas um processo. É a capacidade para o trabalho psicológico inconsciente do sonhar, operando em acordo com a capacidade para o pensamento pré-consciente nos moldes do sonho (rêverie) e a capacidade para o pensamento do processo secundário, mais inteiramente consciente. ... O 'contido, como o continente, não é algo estático, mas um processo vivo que, na saúde, está continuamente expandindo e mudando. O termo refere-se a pensamentos (no sentido mais lato do termo) e sentimentos que derivam da nossa experiência emocional viva" (Ogden, 2004, p. 13-56). Mas, para que essas diferentes modalidades do sonhar sejam possíveis e todas as articulações entre elas se formem na mente adulta, é necessário que os "mais elementares dos pensamentos que constituem o contido", os elementos b, que são, por assim dizer, "as almas do pensamento" (Ogden, 2004) sejam transformados em elementos a. Para isso, o recém-nascido necessita do continente materno, já inteiramente desenvolvido e funcionando.
5 Entretanto, para poder reproduzir aqui o trecho da sessão em questão, tive de pular os pedaços do texto em que Bion realiza longas descrições do processo anterior do paciente, tentando informar ao leitor o que o leva a tais interpretações. Se não fizesse isso, seria obrigado a reproduzir páginas inteiras do artigo, o que me desviaria dos objetivos aqui perseguidos. Ao leitor que queira ter acesso às informações completas, recomendo, pois, a leitura completa do artigo citado.
6 Podemos dizer que, partindo de O (a realidade em si mesma, inatingível, que somente podemos conhecer por meio de suas transformações, segundo Bion), o esquizofrênico tende a realizar transformações projetivas e transformações em alucinose. Esta última, além de produzir um movimento evacuativo, gera figuras que imaginariamente preenchem a falta de objeto e evitam a dor psíquica. Uma descrição detalhada desses processos é realizada por Bion em Transformations (Bion, 1965), um livro de difícil leitura. Entretanto, são de grande ajuda as excelentes análises e comentários realizados por Figueiredo, L. C. & Tamburino, G. & Ribeiro, M. no livro: Bion em nove lições - lendo Transformações (2011), que nos permitem uma digestão mais fácil da obra bioniana, sem - em nenhum momento - tentar reduzir a sua complexidade.
7 Decidi não reproduzir aqui o relato das sessões por questões de espaço, já que elas são descritas por Bion de forma bastante minuciosa e isso nos levaria à necessidade de reproduzir longos trechos de citação, desviando-nos de nossos objetivos.
8 Voltarei a essa questão mais adiante, quando discutir a diferença entre Bion e Winnicott com relação ao uso (ou não) da regressão em análise, como ferramenta terapêutica no caso de psicoses.
9 Nesse sentido, também, há uma diferença visível entre Winnicott e Bion. Enquanto Winnicott pensa em corpo e psique como equivalentemente necessários à constituição do psiquismo, postulando uma unidade psicossomática, Bion tende a certo mentalismo, colocando o pensamento como a função psíquica mais desenvolvida - e, hierarquicamente, mais importante - e mantendo o corpo como uma espécie de substrato inferior, a parte mais básica e originária do sistema de transformações.
10 Winnicott, em Human Nature, seu último livro não concluído (Winnicott, 1988, pp. 75-77, pp. 80-81) acaba distinguindo os conceitos de incorporação e evacuação de introjeção eprojeção. Os primeiros designam processos psíquicos que ocorrem desde o início, como produtos da elaboração imaginativa: nesse sentido, a criança incorpora os cuidados maternos e evacua as partes excedentes, desnecessárias ao seu crescimento psíquico. Os segundos (introjeção e projeção) implicam uma diferenciação da criança entre interior e exterior e carregam uma conotação mais mental e defensiva, quando o meio ambiente falha. Por exemplo, o bebê pode produzir e introjetar uma mãe idealizada, para fazer frente à mãe real, ausente ou invasiva.
11 Winnicott diz: "Pelo termo 'caso borderline' pretendo significar um tipo de caso no qual o centro do distúrbio é psicótico, mas o paciente possui suficiente organização psiconeurótica para sempre apresentar desordens psiconeuróticas ou psicossomáticas quando a ansiedade psicótica central ameaça irromper de forma crua" (Winnicott, 1968, pp. 219-220).
12 Para um aprofundamento da questão cf. Naffah Neto, 2007 e 2011.
13 Já discuti essa posição de Winnicott detalhadamente num artigo anterior (Naffah Neto, 2010). Resumidamente, pode-se dizer que, quando regredidos a fases de dependência, os pacientes entram em psicose de transferência, na qual desaparece a posição dupla e simultânea do analista como objeto subjetivo e como objeto objetivo, característica da neurose de transferência. Na psicose de transferência, o analista é visado somente como objeto subjetivo. Também desaparece aí a dupla inscrição passado/presente: Winnicott pensa que, nessas ocasiões, o paciente retorna ao passado e o analista torna-se efetivamente a sua mãe, em vez de simplesmente representar a sua mãe. Nessa condição, a interpretação não tem qualquer função discriminatória, já que objeto e tempo tornam-se unívocos, perdendo toda a polivalência simbólica.
14 A patologia esquizoide designa, na acepção aqui usada, uma das formas de patologia borderline, sendo esse último conceito entendido num sentido amplo, descrito na nota 9 do presente trabalho.
15 Aliás, para Winnicott, a grande maioria dos psicóticos não chega sequer a uma distinção clara entre mundo interno e mundo externo para poder realizar projeções, introjeções e identificações projetivas, que são mecanismos complexos e sofisticados, característicos de quem já possui um dentro e um fora. Assim, nas psicoses, nos momentos em que o falso self falha e se desintegra, temos que falar em estados fusionados e caóticos. E mesmo naquelas esquizofrenias nas quais parece impossível negar a existência de mecanismos projetivos, como, por exemplo, na esquizofrenia paranoide, não é bem disso que se trata. Nesse caso, estão em jogo impulsos agressivo/ destrutivos não apropriados pelo self (por deficiências de holding), que permanecem exteriores a ele e que funcionam como hordas bárbaras, errando a esmo, sem território próprio. Então, ora são vividos como potências estrangeiras, que ameaçam a integridade do self e este, para se proteger, tem de lançar mão da desintegração ativa (multiplicando as suas cisões). No momento seguinte, esses mesmos impulsos podem invadir e possuir o self, produzindo atuações agressivo/destrutivas, justificadas como forma de auto-defesa. Ou seja, os impulsos que ameaçam são os mesmos que defendem, mas essa circulação de um lugar a outro não são projeções, introjeções (ou identificações projetivas) do self. Este se encontra fragmentado e desprotegido, funcionando como um joguete de forças estrangeiras. Nos seus momentos mais ativos, lembra um cachorro perseguindo o próprio rabo.

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