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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.45 no.3 São Paulo jul./set. 2011

 

ARTIGOS

 

A linguagem do bebê: experiências precoces Observações psicanalíticas na Unidade de Cuidado Intensivo Neonatal

 

Baby language: early experiences Psychoanalytical observations in the Neonatal Intensive Care Unit

 

El lenguaje del bebé: experiencias tempranas Observaciones psicoanalíticas en la Unidad de Cuidado Intensivo Neonatal

 

 

Hilda BoteroI; Tradução de Ireô Lima

IMembro titular da Associação Psicanalítica Colombiana

Correspondência

 

 


RESUMO

A Observação de Bebês, considerada a partir de várias perspectivas, deu forte impulso à compreensão do recém-nascido, inclusive do bebê dentro do ventre de sua mãe, seus desenvolvimentos e possibilidades psíquicas. A título de proposta, sugiro que se considere o compromisso emocional de duas mentes para iniciar e garantir a sobrevivência física e emocional do bebê pré-, peri e pós-natal. O recém-nascido não possui palavras, ele tem a linguagem do corpo para expressar cada movimento emocional que ocorra em sua existência. A função alfa da mãe em compromisso intenso com o seu bebê realiza, através de íntima rêverie, a condução para o mundo humano por meio da transformação criativa dos elementos beta projetados pelo bebê, em sensações, experiências, e elementos alfa capazes de serem tolerados pelo tempo necessário para que se constituam num exercício de pensamento para o bebê. Mensagens evidentes, como as de Pablo, um bebê prematuro com apenas 20 minutos de vida, aproximam-nos da oportunidade de aceitar o desafio do compromisso emocional que requer o emprego da linguagem do bebê como ato comunicativo e diálogo afetivo. Penso que a função alfa é a função sábia da personalidade, que oferece ao bebê, dentro do útero de sua mãe e fora dele, o espaço emocional no qual possa construir seu universo comunicativo para o desabrochar de seu psiquismo.

Palavras-chave: linguagem; compromisso emocional; relação precoce; desenvolvimento psíquico.


ABSTRACT

Baby Observation, considered from various angles, gave a strong impulse to the understanding of the newborn, as well as the understanding of the unborn baby in its mothers womb, its developments and mental possibilities. I suggest considering the emotional commitment of two minds as a start and a guarantee of thephysical and emotional survival of the unborn, theperi-natal and thepost-natal baby. The newborn does not dispose of words; it employs body language in order to express each emotional move-ment which occurs in its life experience. The mothers alpha function, in intense engagement with her baby, accomplishes through an intimate reverie, the guidance towards the human world, by means of a creative transformation of the beta elements projected by the baby, into sensations, experiences, alpha elements capable of being tolerated long enough as to make them become a thinking exercise for the baby. Clear messages, such as those of Pablo, a twenty minute old premature baby, take us close to the opportunity of accepting the challenge of the emotional commitment which requires the use of the baby's language as a communicative act and an affective dialogue. I think that the alpha function is the wise function of the personality, which offers the baby in its mother's womb, and out of it, the emotional space in which it can build the communicative universe necessary for the blossoming of its mind.

Keywords: language; emotional engagement; early relationship; mental development.


RESUMEN

La Observación de bebés, desde varias perspectivas, ha dado un fuerte impulso a la compren-sión del recién nacido, e incluso del bebé en el vientre de la madre, sus desarrollos y sus posibilidades psíquicas. Como propuesta, ofrezco la consideración del "compromiso emocional" de dos mentes para iniciar y afianzar la supervivencia física y emocional del bebé pre, peri y neonato. El recién nacido no tiene palabras, tiene el lenguaje del cuerpo para expresar cada movimiento emocional que suceda en su existir. La función alfa de la madre en compromiso intenso con su bebé, realiza, en íntima ensonación, la guía hacia el mundo humano, a través de la transformación creativa de elementos beta (i) proyectados por el bebé, en sensaciones, experiencias, elementos alfa (a) factibles de ser tolerados el tiempo necesario para que se constituyan en un ejercicio de pensamiento para el bebé. Mensajes evidentes como los de Pablo, un bebé prematuro con sólo 20 minutos de nacido, nos acercan a la oportunidad de aceptar el reto del compromiso emocional que requiere usar el lenguaje del bebé como acto comunicativo y de diálogo afectivo. Creo que la función a es la "función sabia de la personalidad", que ofrece al infante en el útero y fuera de él, el espacio emocional en el cual construir su universo comunicativo para el despliegue de su psiquismo.

Palabras clave: lenguaje; compromiso emocional; relación temprana; desarrollo psíquico.


 

 

1. vida mental e desenvolvimento psíquico

Como elementos básicos de compreensão, vou referir-me sucintamente aos conceitos psicanalíticos de "função alfa, elementos alfa e elementos beta", de Wilfred Bion, que constituem as bases para "pensar sobre" a vida mental no bebê pré- e pós-natal. Creio que a função alfa é a "função sábia da personalidade", que oferece ao bebê, no útero e fora dele, o espaço emocional no qual constrói seu universo comunicativo para o desabrochar de seu psiquismo.

Bion destacou, em uma de suas conferências em São Paulo (1978), referindo-se a uma conjectura imaginativa sobre a vida mental do bebê no útero:

A questão central desta conjectura imaginativa é que, "mesmo antes do nascimento, o feto se torna sensível àquilo que poderia ser denominado ocorrências, eventos" ... . Não pode haver evidência clínica, pois ninguém analisou um feto. Mas é ridículo supor que um bebê recém-nascido não tenha mente, ou que uma criança de cinco anos tem mente, mas que não a possuía quando era bebê ou antes de nascer. ... poderíamos estar conscientes do fato de que aquilo que Melanie Klein descreveu como Identificação Projetiva ocorre ainda antes do nascimento, isto é, supondo que um embrião possa estar consciente de sensações primordiais. (Bion, 1978, citado por Deiss de Farias, 1999, p. 80)

A teoria da função alfa de Bion (1960), sobre a qual obviamente não vou me aprofundar, permite-me propor e ilustrar a base da comunicação, especificamente entre mãe e bebê, os inícios da interação e da subjetividade. Se a função alfa tem êxito, ela permite o desenvolvimento dos pensamentos e do aparelho mental, o qual proporciona o desenvolvimento psíquico. Mais do que uma definição dos elementos alfa (a) e dos elementos beta (b), tentaremos observá-los. Podemos fazê-lo, precisamente, na sua mais nítida expressão, o estado mental do recém-nascido. Bion nos diz:

Nas formas mais precoces de desenvolvimento, a criança percebe os objetos como vivos e possuindo caráter e personalidade, presumivelmente de forma indiferenciada de si mesma. Nesta fase, que se pode considerar anterior ao desenvolvimento do princípio da realidade, segundo Freud, o real e o vivo são indistinguíveis; se um objeto é real, para a criança, então ele está vivo; se está morto não existe. Se este objeto não existe e não está vivo, por que é necessário falar dele e estudá-lo? O problema está em dar resposta verbal sobre objetos percebidos em estado pré-ver-bal... ou não-verbal. ... Proponho que chamemos de elementos Alfa (a) os objetos reais e vivos, e elementos Beta (b) os objetos irreais e mortos. (Bion, 1960, p. 149)

Objetos protoreais pertencem ao domínio da protorealidade. A criança pré-verbal, continua Bion, dominada pelo princípio do prazer, à medida que o sente, irá se crer rodeada de objetos reais e vivos; se sobrevém a dor, estará rodeada de objetos mortos não existentes, destruídos por seu próprio ódio, pois não pode tolerá-lo: "entretanto, estes objetos, normalmente, continuam existindo, já que as impressões sensoriais continuam se registrando" (Bion, 1960, p. 150). Neste estado mental, se a intolerância sobe de nível o bebê expande os ataques, agora em direção a seu aparelho mental, que o informa da realidade e da persistência das impressões sensoriais e dos objetos que se percebem através de tais impressões (esta persistência na percepção será a base para que a vivência do bebê seja a de que estes objetos reais tenham sido introduzidos dentro de si mesmo). Uma maior intolerância já não irá se manifestar como um ataque ao aparelho de percepção, mas sim como uma destruição do aparelho encarregado da transformação destas impressões em material apto para o pensamento, e então o que está dentro da personalidade serão coisas, não ideias, palavras. A falha da função alfa (a) impõe obstáculos ao desenvolvimento psíquico e proporciona vivências violentas de encontro com o mundo.

A partir dessa inspiração, pensaria que um bebê na urn1 ou na ucin2 exige que envolvamos outro nível de nossa compreensão e, para tanto, proponho utilizar o compromisso com nossa própria emotividade colocando-a a serviço de nossa intuição. Nos primeiros momentos de um recém-nascido sua situação é dramática; a separação da mãe impõe vivências aterrorizantes, mais que de desamparo, de terror a não existir. A resposta mental, emocional, de pânico, condena o objeto, indistinguível de si mesmo, à morte, à não-existência. O desejo no bebê é onipotente, portanto, o objeto "morrerá", e como ele e o objeto são um só, o perigo a que se expõe um bebê, sem a atenção adequada, é indescritível.

Nem todos que trabalham com bebês têm filhos, mas todos nós fomos bebês, é a nossa história, uma realidade interna em cada um de nós. É por isso que sabemos, profunda e intimamente, do que um bebê necessita: ser embalado, olhado, tocado, que alguém se preocupe com ele, que seu choro seja atendido; ser limpo, acomodado, amado. Precisa assegurar-se, pouco a pouco, em sua experiência, que ele afeta o mundo, que uma urgência será atendida. E urgência são aqueles momentos nos quais a percepção da existência é tão precária que, aproximando-me da poesia, diria: "Estou líquido como a água, meus ossos desencaixados, meu coração como cera, tudo está dissolvido em minhas entranhas"3. assim um bebê poderia anunciar momentos de desespero por mensagens humanas que resgatem a sua integridade.

 

2. Compromisso emocional

As ações dos bebês são observáveis por todos: pais, pediatras, enfermeiras. Entretanto, há muitas razões que nos impedem de enxergar o fenômeno psicológico ou entender o processo que o move. Cada vez mais é demonstrável que para ver, para entender fenômenos psicológicos, ou melhor, para compreender as emoções, se faz imperativo nos "comprometermos", nós mesmos, como seres emocionais. Podemos aludir a algumas poucas razões para que isto aconteça: a partir dos estudos da psicologia da gestalt sabemos como os organismos percebem o todo e seu significado, em vez de ter uma percepção fragmentária ou em partes. Sabemos também como tal percepção varia entre as espécies ou entre os organismos de uma mesma espécie, segundo as etapas ou processos de adaptação. Assim, é necessária a presença de um organismo com sentimentos, sensações e pensamentos para que seja possível perceber sentimentos, sensações e pensamentos em outro organismo. Por outro lado, quando percebemos "algo" respondemos a ele, é uma realidade que não podemos eludir, e esta resposta legitima tanto o que, em verdade, percebemos quanto o que fazemos, privilegiando uma forma frente a tantas outras. É de se considerar, também, como quando alguém está dizendo ou fazendo algo diretamente a nós, que temos acesso a uma informação à qual um observador externo não tem. Esta é uma séria fonte de confusão ou de dificuldade na comunicação de experiências compartilhadas com os colegas, por exemplo. É o que, de alguma maneira, Bion alude como o inefável da experiência emocional. Re-ddy, V. & Trevarthen, C. (2004) nos apontam um exemplo desta realidade: quando alguém cumprimenta um bebê e em resposta obtém um sorriso, a experiência de quem recebe este sorriso é diferente da experiência de quem observa a cena. Quem receber diretamente esta resposta será afetado segundo a apreciação que tenha de tais intercâmbios, seu estado de ânimo, se tem conhecimento da história do bebê, e outras circunstâncias.

Estas reflexões nos permitem propor a "emoção" como a chave para o compromisso psicológico. A dissociação das emoções na aproximação com o bebê não nos permite entrar em "con-tato", não permite deixar fluir a simpatia própria para a sobrevivência física e emocional. Nossas observações e compreensões sobre a vida mental dos recém-nascidos nos aproximam cada vez mais da pertinência, ou melhor, da urgência à atenção emocional destes pequeninos. As emoções não existem para as mantermos trancadas à chave no indivíduo. As emoções são agentes ativos, mobilizam dores e buscadores de assertividade na relação com o mundo. É de sua natureza e função serem intensamente compartilhadas para motivar respostas de simpatia nos outros. Para todo aquele que está lidando com bebês, o "compromisso emocional" com eles provê não só riqueza de informação, mas é, inclusive, a rota mais confiável para compreendê-los. Os atos emocionais precisam, portanto, de percepção emocional e isso não se leva a cabo sem um compromisso emocional.

Posso relatar de minha própria experiência trabalhando intimamente, submergida com estas pequenas criaturas, que se não é com minhas emoções postas ali para ser sacudida não poderia entender tantas mensagens sutis e raivosas, amorosas e desesperadas destes seres indefesos - o que me leva a pensar que em vez de me defender de sentir as emoções, devo evocá-las, observá-las, compreendê-las para poder retornar esta compreensão. Devo fazer uso da minha "função alfa" (Bion, 1962), receber elementos beta, transformá-los em alfa, interpretá-los e devolver elementos que o bebê possa transformar, por sua vez, em outros que possa tolerar e que sejam factíveis de estruturar o pensamento. É a função que cria estrutura, que aplana o caminho para o desenvolvimento psíquico. O ponto essencial é, insisto, poder compreender como os atos emocionais precisam de uma percepção emocional e isto não se pode conseguir sem um "compromisso emocional" (emotional engagement). Sendo capazes de compromisso e de resposta, assistimos a uma realidade compartilhada, na qual o mundo de um pode ser compartilhado pelo outro. Um exemplo que Reddy, V. & Trevarthen,C. (2004) nos convidam a considerar é o de uma criança de doze meses, sentada sobre as pernas da mãe e olhando através da janela, que, de repente, vê uma revoada de pássaros. Ela acena a eles emocionada, exclamando, e com seus dois braços estendidos para eles. Sua mãe também os vê e diz em um tom de confirmação: "Sim, veja, não é emocionante?". A criança encosta no corpo de sua mãe e continua olhando os pássaros. A reação da mãe confirma em sua voz e no movimento de seu corpo a emoção da criança e legitima seu ato de comunicação.

Agora, quando falo de "compromisso" não falo do ato consciente cognitivo como tal, refiro-me, no bebê, a uma espécie de ordem de sobrevivência física e emocional. O bebê precisa estar atraído como um ímã por sua mãe-mundo, não pode se safar deste impulso de vida. Agarra-se à mamãe. E este é o "compromisso" ao qual me refiro, ele propõe este estado de compromisso como linguagem clara e rica de intercâmbio de comunicação e afetos.

Gostaria de enfatizar, ainda, a importância da permanência da mãe próxima ao seu bebê, na maior medida possível. Facilitar esta atmosfera, esta oportunidade, cria e assegura a continência necessária para que ela, a mãe, realize, por sua vez, a função continente para seu bebê. O desenvolvimento psíquico de seu bebê depende destes momentos compartilhados na continência indiscutível deste útero-mente, facilitando o trânsito ao mundo externo cheio de experiências ameaçadoras, mas também de afetos e oportunidades de desenvolvimento. Comungo totalmente com Reddy e Trevarthen quando nos alertam sobre a chegada à vida social de um recém-nascido, sua transição nas primeiras semanas a uma atmosfera diferente do suporte e da proteção do estado vital do feto que vive um "compromisso corporal" envolvente com sua mãe e que deverá ter continuidade com a evidência do propósito de um "compromisso emocional" dos estados de "intenção e interesse". A criação constante de episódios de carinho e interesse entre mãe e bebê, entre o self do infante e os Outros, em diálogo íntimo em seus primeiros meses, comunica e regula os estágios intersubjetivos de ação e experiência. O bebê é sensível à musicalidade comunicativa da intersubjetividade primária e à imediata consciência dos ritmos e emoções de outras mentes.

"A comunicação primária é emocional e intermental." Perde-se esta qualidade de comunicação quando uma mãe está ausente, física ou emocionalmente (Trevarthen & Reddy, 2004). Uma mãe deprimida, com uma dose pobre de razoável entusiasmo, poderia marcar no bebê a experiência que tão bem descreve André Green de um permanente duelo entre a mãe fisicamente presente, mas psicologicamente ausente: "A mãe morta é, então, contra aquilo em que se poderia crer, uma mãe que continua viva, mas que, por assim dizer, está psiquicamente morta aos olhos do pequeno filho de quem ela cuida" (Green, 1980, p. 209).

As experiências não são só uma percepção para a qual estamos equipados. Britta Blomberg (2005) tem uma proposição interessante a respeito, e nos propõe pensar o termo natureza como ligado ao material genético, e o de "nutrição", que representa uma ativa contribuição do ambiente. Este componente ativo é, então, o que delimitará nosso intercâmbio relacional com o infante e em geral com o indivíduo. É provável que os aspectos constitucionais e os traumas precoces no útero possam afetar as habilidades de percepção do bebê. Algumas crianças podem ter uma boa constituição física, mas sofrer severos traumas em sua experiência de maternidade, que pode ser uma experiência traumática em seus primeiros anos de vida. Observamos em crianças prematuras, por exemplo, que têm que lutar intensivamente para sobreviver fisicamente, como as experiências físicas (suas representações) de luta para sobreviver permanecem ao longo da sua vida. Exames e intervenções violentam sua integridade, ferem tão pequeno corpinho e o cérebro não tem sequer como registrar, sistematizar e encontrar onde dói, de onde está vindo este perigo (Britta Blomberg, 2005). Crianças cuja vivência é de ter suportado algo aterrorizante, quando não há nenhuma pessoa que possa conter a experiência no momento em que está ocorrendo, crêem estar permanentemente à mercê de pessoas aterrorizantes. Crianças com experiências físicas de dor, com experiências profundas, enterradas em seu mundo interno, apesar de uma mãe suficientemente boa, têm a vivência de que seus pais não são confiáveis, pois não foram capazes de defendê-los da interminável dor e do terror (Blomberg, 2005).

Conter a dor física é de importância vital para o recém-nascido, uma vez que esta função oferece a possibilidade de encontrar representação das vivências do infante. A contenção materna é, pois, indispensável, sua presença é um fator regulador, ordenador de emoções, que indica a rota humana para cada um de nós, seres humanos.

 

3. Amamentar, uma relação íntima

Uma das primeiras experiências do bebê em relação a um dentro é a experiência do mamilo em sua boca. É a primeira oportunidade que a criança tem de regular a distância: dentro de sua boca, esperando para mamar, com o mamilo ali dentro, ou em seus lábios, e sabendo também que é alimento. Com essa segurança o bebê é capaz de adiar por frações de tempo, em um início, sua satisfação. Talvez neste pequeno espaço-tempo olhe para a mãe e lhe sorria, ou olhe ao seu redor, uma sequência que pode ser encerrada com uma mamada. Isso propõe um exercício de regulação de um dentro-fora, proximidade-distância. É o que poderíamos chamar de o precursor da percepção da distância e da tridimensio-nalidade, o que leva o pequeno a desenvolver seus conceitos abstratos e especialmente a capacidade para pensar sobre os fenômenos a partir de diversas perspectivas.

A partir desta perspectiva, gostaria de insistir na importância da primitiva e íntima relação entre mãe e bebê, apoiada, estimulada pela natureza físico-emocional. A mãe deve permanecer próxima do bebê depois do nascimento pois mãe e filho se necessitam mutuamente para a pausada integração sensual e emocional que deve começar uma vez vivida a experiência do parto. Não é só o bebê quem precisa desta integração, a mãe também precisa se reintegrar, e essa experiência só se concretizará de maneira harmônica, rítmica e adequada na mútua companhia, na comunicação primária essencial de ambos. Por exemplo, só para citar brevemente um aspecto interessante: estudos realizados com recém-nascidos depois da experiência de separação da mãe, por uma hora, produziram evidências de como o sistema imunológico sofre conseqüências que perduram até quase um mês depois de tal separação (Busnel, 1999a).

Sabemos cada vez mais sobre o desenvolvimento da sensualidade no feto (macaco e humano), baseados em interessantes investigações.4 O olfato e o paladar, por exemplo, marcam evidências contundentes (experiências realizadas com prematuros que, do nosso ponto de vista, estariam mais próximas do feto). Para nosso tema imediato, cabe comentar resultados importantes sobre como, se o líquido amniótico teve um sabor ou um odor natural ou artificialmente determinado, o pequeno recém-nascido responde a esta memória. Fetos de mães diabéticas, cujo líquido amniótico é mais doce que o normal, tomam mais líquidos que os de uma mãe não diabética. Certas substâncias que ultrapassam a barreira placentária são reconhecidas depois pelo recém-nascido. Este conhecimento nos traz dados para uma melhor compreensão e apoio da amamentação. O bebê elege ou prefere aquilo a que está acostumado, o que conhecia no útero. O cheiro do seio materno, segundo as experiências realizadas, é reconhecido e preferido; o cheiro do seio da própria mãe; o cheiro do leite da própria mãe, também, e o cheiro do leite materno no lugar do leite artificial (Porter & Marshall, citados por Busnel, 1999b). O líquido amniótico foi cheirado e provado suficientemente no útero, portanto o recém-nascido elegerá o líquido de sua própria mãe também. "O líquido amniótico atua como elemento de vínculo entre a vida intrauterina e o leite." Outros mamíferos não humanos, por exemplo, lambem sua barriga impregnado-a de seu líquido amniótico, como que "mapeando" a zona para suas crias. O reconhecimento deste cheiro guiará o pequeno até as mamas de sua mãe (Porter & Marshall, citados por Busnel, 1999b).

O recém-nascido é atraído pelo cheiro do líquido amniótico. Depois de quatro dias, esta preferência é transferida ao cheiro do leite materno, que ainda é colostro. Vemos o processo ou a seqüência: líquido "amniótico-colostro-leite". Depois de oito dias, se o leite materno não desceu, esta preferência desaparece; sabemos, também, que se habitua mais lentamente ao leite artificial do que se habituaria ao leite materno. Uma observação interessante é aquela que mostra como determinados bebês não querem mamar em suas mães que estiveram internadas em hospital. Supomos que a alimentação do hospital é diferente da alimentação da casa da mãe, o que faz com que o leite adquira um odor diferente ao do líquido amniótico, pois sabemos que o bebê cheira e degusta de acordo com a alimentação da mãe. A continuidade do gosto permanece igual, líquido amniótico, colostro, leite. Poderíamos, assim, seguir o rastro para cada sentido, mas não é a oportunidade para fazê-lo aqui. É importante fazer esta correspondência que ajuda na compreensão ainda mais profunda de por que mãe e bebê devem permanecer juntos, e por que ajudar para que a amamentação materna se realize.

Quando me refiro à maternidade, à relação mãe-bebê, estou considerando o pai como esteio e companhia para a mãe, compartilhando a gravidez e a experiência completa de nascimento e amamentação, como continente da experiência emocional da mãe. A presença, o amor, o cuidado e, sobretudo, a localização segura do pai na mente da mãe, este esteio da mãe, são indispensáveis para configurar o meio ambiente familiar necessário para seu desenvolvimento. A falta do pai, por qualquer causa, à medida que observamos e compreendemos a mente humana, será um fator decisivo na privação. Porque o bebê não está somente privado da presença, amor e aceitação do pai, "a criança está privada de uma mãe na plenitude de sua função para amar, atender e compreender as necessidades emocionais do filho" (Botero, 1998).

Como exemplo, vou introduzir-me no mundo do recém-nascido: uma observação na Unidade de Cuidado Intensivo Neonatal, onde a experiência emocional de contactar esses primórdios da emocionalidade comove até o mais íntimo de nossos rincões psíquicos.

Pablo: um moribundo nasceu5

20 minutos de nascido.
Idade gestacional: 34 semanas.

Quando Pablo saiu da sala de partos, já lhe haviam proporcionado os primeiros cuidados médicos e ele vinha "viver" na ucin, em uma espécie de torpor envolvente e desolado. Suas expressões trouxeram, à minha mente, todos e cada um dos seres que havia acompanhado morrer, ou seja, estava assistindo - que privilégio! - a esses instantes de trânsito: Pablo estava no umbral rumo à vida "e" rumo à morte.

Como este pequenino, os bebês que ingressam à uci nos afetam de uma forma arrepiante, estimulam os mais profundos rincões da psique, evocam nossas experiências primordiais e revivemos perdas permanentes, morte, impotência e também vida. É dramática a forma na qual convivem a alegria vital e a dor mortal.

Equipes médicas, instrumentos sofisticados e pessoal correndo de um lado para o outro, atendendo à emergência mais imediata. Neste momento, esta experiência se configurou em mim como algo tão próximo da passividade de aceitação da morte! Aproximei-me mais de Pablo, que mantinha sua boca aberta em um gesto de dor, uma figura desdentada e sofredora, não tinha idade nem sexo, não tinha vida nem morte, mas ali estavam ambas, a vida e a morte. Emitia uma queixa gutural, de além-túmulo, que ressonava dentro da incubadora; eu afinei meu ouvido, aproximei-me e percebi levemente e entrecortado aaaahh, aaaahh! ... de suas entranhas. Era, por sua vez, a urgência para receber, beber, acolher o mundo e, ao mesmo tempo, talvez, projetar para o mundo seus conteúdos pulsantes de morte, seu encontro com este "terror de não existir" (Sandri, R., 2000). A expressão em seu rosto estava estática, um gesto de dor congelado em uma espécie de espanto. pela vida? ... pela morte? ... Não soube e ainda não sei. Sua respiração era irregular, estava com aparelho respiratório e lutava, duramente, por. Bem, não sei pelo que lutava. Houve muitos espaços e tempos nos quais o sentia longe, indo-se; em outros, suas queixas se faziam mais audíveis e eu pensava: Sim, está vivo, está lutando, está voltando. De onde? - me perguntava. De onde sinto que ele volta? Será que ali, neste espaço-tempo, neste ser e não-ser, sim percebemos e sabemos o que é a morte? Será que ali aprendemos o que é viver? Ali nos chamam os sons e os suspiros do exterior, e o nada e o silêncio... do... quê?... Do não existir?

De um pequeníssimo corpo encolhido, pouco a pouco foi emergindo, saindo de sua "fetalidade", um bebê ainda sem a nitidez suficiente para ser situado na mente de todos os que o rodeavam, como que atravessando o umbral da não existência; sua boca se arqueou ainda mais e se retraiu em uma confissão de dor e recomeçou seus aaahhh, aaahhh intermitentes; seus braços, com suas mãozinhas fechadas se retraíram até seu peito e dali, com esforço, impelia seus gemidos. Neste momento, uma enfermeira se aproximou, fitou-o e comentou, quase sussurrando, não bebê, você não vai conseguir. Chamou o médico e ambos começaram a manipular mangueiras, oxigênio, enfim, você não vai conseguir parecia uma sentença, e eu, o que entendia, então? Compreendi, agora, como a luta que se encenava em minha mente era a luta de Pablo; pulsavam nele viver e morrer, e minha mente era um continente no qual se ancorava seu esforço por viver; eu podia exercer esta função continente, receber, entender e devolver, como um alimento nutritivo, seus esforços vitais.

Tão logo esta emergência foi atendida, e observando-o por um longo tempo, comecei a lhe relatar, em um esforço de manter esta conexão comigo, responder ao seu chamado, comecei a falar sobre como o sentia dentro de mim, sobre como brilhava, sobre seus esforços de chamar a minha continência. Falei de sua mãe, onde estava, como estava, e de seu amor por ele, de seu nascimento, sim, havia nascido e estava vivo! Permaneci falando não sei quanto tempo. O bebê entrou em um estado de atenção tranqüila, seu rosto foi se relaxando e sua expressão, agora, não evocava meus moribundos. Cessaram seus gemidos afogados, seus lamentos primitivos, seu aaaahhh, aaaahhh se transformou em uma respiração mais ou menos rítmica, parecia dormir. Permaneci um bom momento mais observando, e de tanto em tanto narrava para ele como o via, como respirava e o que se passava ao seu redor, mais em um sussurro do que em uma intervenção audível, talvez de murmúrio de voz humana que nutria seu encontro com a vida.

Fui visitar a mãe de Pablo. Estava dolorida e em um estado similar ao de seu bebê: em um torpor imenso, perdida no desconhecido, não sabia onde estava e o que havia acontecido. Com retalhos de suas lembranças remendamos a experiência de ser mãe, de haver dado à luz. Pouco a pouco ela resgatava fragmentos de dores, enjôos e medos infinitos. Seu bebê também foi emergindo da bruma e ela foi retomando sua experiência: era mãe e tinha um bebê. Onde está meu bebê? - perguntava com voz débil; e eu me lembrei, com um estremecimento, dos aaaahhh, aaahhh! de Pablo. Ali se encaixavam um som e o outro. Senti-me um emissário de um e outro. Em mim, com esta observação e esta visita, confluí-am mamãe e bebê; eles me usavam como ponte para suas mensagens, se eu os entendia, se os aceitava e se os transmitia. Aqui entendi cabalmente meu imenso trabalho nessa relação.

 

4. Discussão

Esta é apenas uma ilustração dramática de um despertar abrupto, de uma chegada à vida dentro dos campos da morte. Uma experiência que o bebê projetou. sim, projetou dentro de mim, utilizando-me como um continente útil para a sua comunicação com o mundo; um continente também para a mãe, que errante e perdida, queria encontrar seu bebê. Como pensamos nós, os psicanalistas, que começa a vida emocional se não simplesmente com a vida, a vida-em-si? Como este bebê está percebendo, ouvindo, sabendo de sua experiência? Desde quando o bebê tem faculdades para ser visto com uma mente, com uma psique funcionando? Como é ou como funciona a mente ou a psique no bebê recém-nascido, e, inclusive, no bebê no útero? Esta é uma zona de exploração e de emocionantes descobertas, que precisa ser urgentemente compreendida. É tão difícil comunicar a experiência de compreender este estado-mundo do bebê, é algo que ainda não tem nomenclatura e muito menos explicação como tal; é um contato emocional inefável, como diria Bion, uma experiência emocional que me une à intensa reflexão de Rosella Sandri:

Comment passer du visible au non-visible? Comment passer du visible observable du comportement, d'un geste, d'un son, au non-visible de la pensée, du fantasme, du monde psychique interne qui se constitue et se construit chez un bébé?6 (Sandri, 2000, p. 1)

Nessa zona na qual me encontro, com todo tipo de observações, reafirmo uma imensa e intensa tarefa por realizar em uma Unidade de Cuidado Intensivo de Neonatais. A compreensão da vida emocional nestes primórdios de existência nos propõe um desafio enorme na criação e no fortalecimento dos vínculos emocionais.

Estive pensando, logo após a observação e enquanto escrevia minhas próprias vivências, em como minha voz envolvia o bebê em uma "vaga formação de sensações" (Tustin, 1987) próxima a uma figura autista. Tustin inspira as mais apreciadas tentativas de compreensão deste ser em seus primórdios de existência.

Parece provável que a criança humana normal tenha disposição inata para criar "figuras". Estas figuras primárias tenderão a ser vagas formações de sensação. Compensarão a dificuldade do fluxo de sensações que constitui para a criança seu sentimento inicial de existir. (Sandri, 2000, p. 131)

Esta "figura" parece que se ajusta a partir do "toque" de substâncias corporais brandas. Mas, em cada bebê do qual me aproximo nestes momentos de lutas por existir, dentro de uma incubadora, antes ainda de se permitir um contato físico, vejo que as minhas palavras acedem aos seus sentidos ainda desorganizados como um toque à pele, ao ouvido, a cada sentido que neste momento são todos os sentidos. Pablo sentiu que "toquei" sua existência, e a minha voz, além de ser um imã de atração até a vida, foi um objeto de sensação suficiente para organizar, por momentos, suas tentativas de existir.

Gostaria de deixar em suas mentes um pequeníssimo pedaço de uma bela Conjectura Imaginativa acerca da experiência de Meg Harris, uma menina prematura:

Na manhã seguinte, depois de haver sido prematuramente expulsa do seio materno durante uma violenta tempestade, despertei-me para me encontrar dividida em pedacinhos e presa a uma incubadora, com meus sentidos presos a diferentes formas de tortura: meus olhos fechados em frente a uma luz ofuscante, minha boca ressecada, minha pele áspera, a mucosa sensitiva do meu nariz atravessada cruelmente por tubos estranhos. Mas o pior de tudo: minhas orelhas, os portais da harmonia no meu corpo, não podiam detectar nenhuma melodia familiar, nenhum consenso rítmico, nada. exceto um vazio universal e uma ausência total de entendimento. somente a dor podia conectar meus sentidos para que eu pudesse reconhecê-los como outras funções do meu eu. Em contraste com o estado de alerta dos meus sentidos estava o peso moribundo do meu corpo, o peso morto das minhas extremidades que horas antes dançavam no líquido amniótico.

Na noite anterior, a placenta havia transitado por águas profundas e escuras, um pouco a pé, um pouco voando, havia explorado o universo criado para nós, os bebês.

Outra coisa assombrosa para lembrar foi uma umidade deliciosa que, às vezes, se aproximava de meus lábios secos e sedentos e que eu sugava insaciavelmente com minha língua, tal como eu havia feito com o líquido amniótico. (Meg Harris Williams. "O patinho feio", Texto Inédito)

 

Referências

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Correspondência:
Hilda Botero
[Associação Psicanalítica Colombiana]
Calle 124 # 20 - 76, Apto. 502
Bogotá D.C., Colombia - C.P. 110111
Tel: 57 16370067
hildabotero@hotmail.com

[Recebido em 14.3.2011
Aceito em 5.5.2011]

 

 

1 URN Unidade de Recém-Nascidos.
2 UCIN Unidade de Cuidado Intensivo Neonatal.
3 Salmo 22 O livro da oração comum. Citado por Margareth Cohen, en Sent Before My Time. The Tavistock Clinic. Series London 2003 (tradução da autora; tradução ao português pela tradutora).
4 Smotherman 1999, hospital Robert Debret, Paris, Marie Claire Busnel, 1999, estudos sobre o olfato, Porter e Coe, nos Estados Unidos, e Marshall, França.
5 Originalmente, essa vinheta clínica foi apresentada no Congresso de Observação de Bebês Esther Bick, em Florença, Itália, em 2004.
6 Como passar do visível ao não-visível? Como passar do observável do comportamento, de um gesto, de um som, ao não-visível do pensamento, do fantasma, do mundo psíquico interno que se constitui e se constrói dentro de um bebê? (Tradução da tradutora, a partir da tradução do espanhol)

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