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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.45 no.3 São Paulo jul./set. 2011

 

RESENHAS

 

Cartas a uma jovem psicanalista

 

 

Almira Correia de Caldas Rodrigues

Membro do Instituto de Psicanálise Virginia Leone Bicudo da Sociedade de Psicanálise de Brasília SPB

Correspondência

 

 

Autor: Heitor O'Dwyer de Macedo1
Editora: Perspectiva, São Paulo, 2011, 321p.
Resenhado por: Almira Correia de Caldas Rodrigues

para mim, a ética da psicanálise e a ética da amizade são a mesma coisa. ... a amizade é o operador do pensamento por excelência. (Macedo, p. 101)

Cartas a uma jovem psicanalista é o terceiro livro do psicanalista Heitor O'Dwyer de Macedo traduzido para o português, sendo os outros dois Ana K., a conjugação do corpo: história de uma análise e Do amor ao pensamento. Lettres à une jeune psychanalyste originalmente publicado em 2008, pela Éditions Stock, foi agora traduzido por Claudia Berliner.

O autor se apresenta em um trecho de seu livro: "Sou brasileiro de nascença e cheguei na França em setembro de 1968, vindo de um país sob ditadura militar. No Brasil, eu era diretor de teatro. Acho que eu fazia bem esse trabalho, mas era sobretudo um muito bom diretor de atores. Embora, na França, eu tenha estudado psicologia para poder trabalhar nos hospitais, sempre disse que foi o teatro que fez de mim o psicanalista que sou. Viam nessa afirmação um modo de fazer charme. Mas é a pura verdade. Se, com os analistas que encontrei, aprendi a cuidar de mim e a pensar minha prática clínica, foi meu trabalho com os atores que me forneceu o primeiro enquadre de meu encontro com os pacientes". (Introdução, p. xxi)

O livro consiste na reunião de 36 cartas dirigidas a uma jovem psicanalista, forma que Macedo escolheu para chegar aos leitores - por meio de uma relação com o outro (real ou imaginário, não importa), e um outro marcadamente diferente dele, uma mulher, e jovem em seu trabalho. Macedo coloca-se, em seu próprio dizer, na posição de interlocutor privilegiado e acompanhador da jovem psicanalista. Penso que isso nos diz, de início, de seu desejo de se colocar em um lugar fraterno, matriz da amizade, que, de fato, ele sustentará ao longo das missivas.

Mediante uma conversa coloquial, Macedo expressa sua vastidão, assentada em mais de quatro décadas de psicanálise. Entre falas de grande simplicidade e de complexas reflexões, o autor aborda o universo da psicanálise, transitando nas questões de teoria, método, técnica, estilo, função e ética psicanalítica. A partir dessas múltiplas entradas realiza cote-jamentos de vida e psicanálise. Expressa uma imensa generosidade, à medida que reúne suas experiências, sua clínica, suas leituras e conhecimentos e as compartilha com a sua correspondente e, consequentemente, com todos nós, realizando, assim, uma ação de comunicação e coragem ímpar.

Suas cartas podem ser divididas em três frentes profundamente conectadas: diálogo com autores e teorias psicanalíticas; trajetória e percurso analítico próprio; e reflexões sobre temáticas diversas. Na primeira frente, o diálogo com Freud permeia o livro, traduzindo o olhar e a leitura singular de Macedo. Neste diálogo, destaco a Carta 11. Leitura de "Além do princípio de prazer: a insistência de Bros", em que Macedo problematiza o texto freudiano, e a Carta 36. Freud e Bspinoza, em que ele traça as aproximações e distanciamentos entre ambos os autores. Em outra ponta, um diálogo com Lacan é latente e acontece en passant. Este diálogo contido é intrigante e sinaliza para uma interlocução futura de forma sistemática e aprofundada.

Macedo entrelaça seu viver psicanalítico e suas referências teóricas com destaque, a meu ver, para alguns amigos internos: Sándor Ferenczi, Donald Winnicott e Joyce McDougall. Discorre, ainda, sobre diversos autores contemporâneos, os quais ele apresenta para sua correspondente e leitores - Piera Aulagnier, Michel Neyraut, Philippe Réfabert, Fran-çoise Davoine, Jean-Max Gaudillière, Loup Verlet e Claude Lanzmann.

Na Carta 7. O problema Ferenczi, Macedo orienta leituras para se adentrar no pensamento de Sándor Ferenczi, esperando produzir a vontade de se "conhecer o gigante de Budapeste, que amava a vida e que, dizem, ria feito criança" (p. 45). Fala do resgate deste analista a partir de um importante texto de referência de Wladimir Granoff, Ferenczi: falso problema ou verdadeiro mal-entendido, publicado na França em 1961, visando libertá-lo do lugar que a história oficial de Ernest Jones o tinha colocado. Este artigo propiciou um reencontro com Ferenczi e o seu reconhecimento como coautor, a partir de 1908, da invenção da psicanálise e pesquisador da ampliação da clínica analítica para os casos limites, a psicose e as organizações psicossomáticas. Seguiram-se mais textos: outro de Granoff, em 1993, sobre a correspondência Freud/Ferenczi, e o prefácio de Judith Dupont ao Diário Clínico, escrito por Ferenczi em 1932. Macedo diz que o psicanalista em questão torna-se um problema por afirmar que Freud foi incapaz de reconhecer a sua transferência negativa camuflada por sua idealização; ao reafirmar a importância do trauma em relação à fantasia; ao colocar que a cura analítica consiste em curar uma criança das sequelas psíquicas de uma relação com uma mãe louca (implicando numa reconsideração da teoria do pai).

Na Carta 10. O conceito de continuidade de existência em Winnicott: transferência e tratamento do trauma, Macedo propõe-se a dar um "fio condutor" para a leitura de Winnicott, e afirma que a noção de continuidade de existência (being) condensa o pensamento principal em operação naquele autor que, a seu ver, reserva um lugar central em sua teoria para a tradução psíquica das experiências sensoriais e dos processos de maturação fisiológicas. Winnicott diz da existência da realidade da fantasia e da existência do real do trauma e Macedo constata que existe uma dívida de Winnicott para com Ferenczi que um dia será resgatada. Considera que a obra de Winnicott pode ser lida como a clínica do trauma e diz que a noção de sujeito em Lacan é a sua tradução do self em Winnicott.

Na Carta 17. A perversão e a somatização: o trabalho de Joyce McDougall, Macedo destaca o lugar fundamental dos afetos na obra desta psicanalista, a partir da contratransfe-rência e do trabalho psíquico do analista. Também afirma que a sua teoria sobre perversão e sobre psicossomatização constitui uma contribuição revolucionária. Observa que a noção de criação é essencial nos trabalhos da autora e está presente nas manifestações de defesa, no sintoma e no trabalho analítico.

Em uma segunda frente - trajetória e percurso analítico -, Macedo afirma vínculos e parcerias estabelecidas com Hélio Pelegrino, Françoise Dolto, Gisele Pankow e Victor Smirnoff. São histórias plenas de vida, de gratidão e reconhecimento pela contribuição de cada um deles para o seu desenvolvimento.

Reconhece Pellegrino (Carta 12. Pellegrino) na origem de sua relação com a psicanálise e consigo próprio, a quem procurou ainda com 16 anos. Em sua homenagem organizou um Encontro Latino-Americano de Psicanálise, nomeado "A psicanálise sob o terror", realizado em 1986, em Paris, em que psicanalistas do Brasil, Argentina, Uruguai e Chile dialogaram com psicanalistas franceses interessados na clínica de psicóticos. Conta que Pellegrino não compareceu ao encontro, pois dez dias antes ficou doente e veio a falecer na véspera do lançamento do livro que reuniu os textos e debates do evento. Fala de sua dor e de sua admiração por Hélio, por sua coragem e integridade, e enfrentamento da ditadura com duas únicas armas - o pensamento e a indignação. Destaca, ainda, o trabalho de Pellegrino como criador da Clínica Social, "pioneira na tentativa de inscrever na cidade o fruto das pesquisas sobre o inconsciente e, assim fazendo, fornecer os meios para ampliar o campo do possível, para tornar o encontro com a realidade mais criativo, para transformar o encontro com o real numa experiência humanizadora" (p. 90).

Narra seu encontro "perturbador" com Françoise Dolto (Carta 4 - Françoise Dolto e o amoralismo psicanalítico). Fez análise de supervisão com ela quando começou a atender crianças, e aí nasceu uma relação de trabalho e uma amizade profunda. Também frequen-tou as consultas que ela mantinha no hospital Trousseau, por onde passou uma geração de analistas. Fala da genialidade de Dolto, de sua "disponibilidade para o inesperado" e de seu profundo entendimento de que o "inumano faz parte do humano".

Especial e forte foi a relação de Macedo com Pankow, relatada na Carta 8. A psicose: o encontro com Gisela Pankow e na Carta 9. Gisela Pankow e o ensino. Conta que seu contato com Pankow teve início com a leitura de seu livro O homem e sua psicose em que ela propunha quatro tipos de psicose. A autora fala do psicótico como alguém que apresenta referências habituais do espaço destruídas, correspondendo à destruição da representação de seu próprio corpo. Macedo diz que atendeu a uma paciente fazendo uso dos estudos de Pankow e enviou para ela todas as suas anotações. A partir daí, ela o "convocou" para supervisão e, posteriormente, o convidou a participar de seu grupo de encontros mensais. Com ela aprendeu o que era um ensino - "transmitir a alguém, por intermédio de uma prática concreta, o sentimento do mundo" (p. 51). Refere-se à Pankow como uma mulher de impressionante entusiasmo, generosidade, alegria, ímpeto e que exigia uma reciprocidade total.

Na Carta 22. O exemplo de Victor Smirnoff, Macedo fala do início de sua supervisão com este psicanalista, a partir de um momento difícil pela brusca interrupção do trabalho com Pankow, depois de quase três anos. Conta que Smirnoff foi responsável por seu encontro fundamental com Winnicott e que ele encarnava o exemplo deste em termos de sua capacidade de apoio, de identificação com o outro, de prazer no trabalho. Destaca que o essencial em Smirnoff era o lugar que ele dava à criança que vivia nele. "Smirnoff era a prova de que o tédio é antinômico ao pensamento, ele era a demonstração viva, a afirmação de que os materiais das descobertas clínicas em psicanálise dependem das qualidades da infância: disponibilidade para o instante, para o espanto, para a emergência, para a angústia alegre da aventura, para o risco do desconhecido." (pp. 162-163).

Por fim, em uma terceira frente, Macedo discorre sobre várias temáticas do viver e da psicanálise de uma forma instigante e livre, dedicando a cada uma delas uma carta: o enquadre, a transferência, o humor, o dinheiro, a transferência e a amizade, a histeria, o terapeuta, a saúde psíquica, a confiabilidade, a mãe interna, o escrever, o poder totalitário e a psicose, o amor verdadeiro, o ódio, o supereu. São reflexões fruto de suas sistematizações de vida, de trabalho, de leituras experienciadas. Nesse sentido, estabelece uma profícua distinção entre tratamento (para aqueles que comprometeram toda expressão espontânea pela violência traumática sofrida) e análise (para aqueles para quem a angústia é um dado da existência), não dedicando superioridade a nenhum dos espaços/tempos. E ressalta que o campo da transferência não é apenas o das repetições, mas também o que se abre para a possibilidade de inscrição de novas representações, pela dimensão do inédito, do inaugural e do não repetitivo na relação analítica.

Considero que o livro traz uma importante contribuição para se pensar sobre a psicanálise na atualidade e sobre a atualidade da psicanálise. Por seu vigor e originalidade é uma obra importante para os analistas em formação e para aqueles que se interessam pelo campo. Também é um texto importante para os psicanalistas de "longa data", ao propiciar uma revisitação a autores e temáticas expressivas, a partir de um pensamento livre, aberto e, paralelamente, denso e sustentado na clínica e teoria psicanalítica e, ainda, nas "intransigências", segundo Macedo, nossos limites mais íntimos. De resto, gostaria de dizer que recebi as cartas de Macedo com entusiasmo, exatamente na condição de jovem psicanalista.

 

 

Correspondência:
Almira Correia de Caldas Rodrigues
Centro Clínico do Lago
SHIS, QI 09, Bloco E-1, sala 209, Lago Sul
71625-009 Brasília, DF
Tel: 61 9296-2890
almira.rodrigues@gmail.com

[Recebido em 26.6.2011
Aceito 4.7.2011]

 

 

1 Heitor O'Dwyer de Macedo é membro titular do IV Grupo, Sociedade de Psicanálise da França e doutor em Psicologia Clínica e Psicopatologia, Universidade de Paris VII (Sorbonne), França. A entrevista concedida pelo autor a Mário Eduardo Costa Pereira, em 2000 - em que trata da psicanálise brasileira e francesa e da clínica da psicose em instituições de saúde - foi publicada na Revista Latino-americana de Psicopatologia Fundamental, IV, 4, 138-147. Disponível em: www.fundamentalpsychopathology.org/art/dez1/entrevista.heitor.pdf.

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