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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.45 no.4 São Paulo out./dez. 2011

 

DIÁLOGO

 

Entrevista com Inês Bogéa1

 

 

O trajeto

Comecei na dança de pernas para o ar. Comecei na ginástica olímpica, fiz todo um percurso de ser ginasta e aos onze anos eu parei, porque meu técnico deixou de ser meu técnico. Parti de um lugar que é do risco, da inquietude, de cabeça para baixo... Da ginástica olímpica fui para a capoeira, que é uma luta, também um desafio, um risco, da perna que passa bem pertinho de você, desse encontro do corpo que fica no limite entre o privado e o público, entre o encontro com o outro e a solidão. E, ao perceber a possibilidade do choque de um corpo com o outro, uma bênção2 no peito e uma meia lua3 na cara, saí atordoada desse lugar, da capoeira, para começar a pensar numa outra hipótese. Coincidentemente, no dia em que isso aconteceu, fui para casa, e meu pai estava assistindo "O Lago dos Cisnes" na televisão, e aquele universo branco ficou na minha cabeça com a imagem de flutuar. No dia seguinte, quis fazer balé.

Fui então para a dona Lenira,4 minha primeira professora. Aliás, atualmente, estou fazendo um documentário sobre ela. Dona Lenira falava muito durante a aula, ao que eu não estava acostumada: "cuidado o cotovelo", "levanta a mão", "menina, olha a cabeça". Ela falava, falava, falava, e eu encontrava um silêncio interior, sentia a sala ampla, um jeito diferente de mexer o corpo. Pensei: "é aqui que quero ficar". Entrei de vez na dança com jeito de ginasta: eu tinha um objetivo muito claro, que era lançar uma perna até o mais alto e descer essa perna, fazer o maior salto possível, ficar lá por mais tempo, e aos poucos fui aprendendo que dançar não era isso. Dançar era preencher o espaço com a minha personalidade. Isso a dona Lenira dizia: "- Inês, o que liga um passo ao outro? O que liga é você". Então, é linda a sua perna alta, mas ela tem que me dizer quem você é. Essa perna só tem significado se for algo expressivo, caso contrário, é só um gesto.

Essa é a parte da minha infância. Na academia da dona Lenira, eu me formei, na Royal Academy of Dancing, como professora e bailarina. A academia era um espaço de encontro de muitos artistas de várias partes do Brasil. Ela sempre convidava professoras de fora, coreógrafos. E foi ali que encontrei Bettina Bellomo,5 grande nome da dança mineira, que me viu fazer aula e perguntou "- O que você está fazendo aqui?".

Eu tinha dezenove anos e pensava, nem sei se posso ser profissional, o que é ser profissional de dança, como a gente sobrevive nessa área? Bettina deu uma resposta que era uma não-resposta, mas era uma total resposta: "Ser profissional de dança é ser apaixonado por essa dança, romper todos os desafios, acreditar que você pode dançar em um país onde a gente carece de educação. Você pode ser profissional de dança se quiser".

Fui para Belo Horizonte, lá fiz uma audição no Palácio das Artes, onde a Bettina era da banca. Passei e me mudei para lá.

Cheguei para dançar, mas peguei greve de bailarina, o que era um contrassenso eu não entendia; não queria mais ser bailarina. Novamente, a Bettina falou: "Calma, vai até o Grupo Corpo ver o que é".

Lá fiz uma aula onde estavam o Paulo, o Rodrigo e o Pedro (Pederneiras), para me assistir. Bettina deu a segunda aula dizendo que eram eles os que poderiam me aprovar. No fim da terceira aula, eles falaram: "- Gostaríamos de te contratar, mas não temos vaga, você pode ficar no grupo fazendo aula, estando com a gente". Respondi: "- Não, eu preciso dançar, quando tiverem vaga, vocês me ligam". Fui embora dançar no Compasso Companhia de Dança, que era um grupo pequeno, onde fiquei durante oito meses. Em dezembro o Rodrigo me ligou dizendo que tinha uma vaga para mim. Entrei para o Grupo Corpo em janeiro, e lá fiquei por doze anos. A minha carreira profissional é toda no Grupo Corpo, onde me encontrei como bailarina.

 

As marcas do movimento

A maneira como me desloco no mundo diz quem sou.

Acho que fazemos isso no dia a dia, não é? Quando você está na sua casa, por exemplo, alguém abre a porta, você não precisa ver a pessoa para saber quem é.

Eu imprimo no mundo uma marca por meio do meu movimento. A minha personalidade está no jeito que me movo, no modo como me sento, no jeito que olho para as pessoas... Você diz o que quer com sua presença, quem você é, e cada vez que está em cena, está se encontrando profundamente consigo mesma.

Você habita os mesmos e os muitos personagens que existem em você. Cada coreografia, mesmo que não tenha uma narrativa, tem para você uma história, uma impressão. Desde o momento em que você encontra o coreógrafo, aprende o gesto pedido, procura descobrir quem ele é, e também quem é você neste lugar, neste momento, toda essa construção vai passar pelo seu corpo. E você, com o seu corpo, comunica para o outro o entendimento que teve daquele mundo que o coreógrafo te apresentou. Quem sou eu, na coreografia do Rodrigo Pederneiras.

 

Agora quero flutuar, agora quero falar

O Grupo Corpo tem uma linguagem específica, muito aeróbica, e quando completei 34 anos, não conseguia mais dar a resposta corporal no mesmo ritmo que meus colegas. É um atraso no movimento, que não é visível e não é possível recuperar. Eu falava: "- Por mais que tente, não chego onde quero". E fui percebendo que era um problema muscular. Então pensei "quero parar, não quero mais dançar". Escolhi o teatro para fazer minha despedida individual, meu último espetáculo. Um segredo, compartilhado apenas com meu marido. Foi em Paris, no Champs Elysées. Quando voltei, comuniquei minha decisão ao Pederneiras: "- Quero parar assim, vocês me dizendo que ainda posso dançar".

Eu me preparei a vida toda para ser uma bailarina onde o movimento é a tônica principal. Você pode ter uma dança até do não movimento e ser extremamente expressiva, ou pode ser um bailarino criador intérprete, que não é o meu caso, eu era a intérprete, e gostava desse lugar. Gostava de aprender o jeito do outro dançar e transformar esse jeito em meu. E como já estava do outro lado da cena, escolhi ir por aquele caminho. Muitos bailarinos do Grupo Corpo também fazem essa escolha, acredito que devido ao número de espetáculos que a gente faz por ano. É um período da vida em que se abre mão de muitas coisas pessoais para viver a dança plenamente. Enquanto todo mundo está festejando, muitas vezes você está dançando, quando todo mundo está de férias, você está viajando. Você viaja nove meses por ano! É muito tempo. Faz oitenta espetáculos. Então, tem uma hora que fala "- Ah, quero ficar em casa". Mas é mentira, não para em casa um minuto.

Quando dançava, eu tinha muita curiosidade de conhecer os grupos e ficava angustiada por não poder assisti-los. Comecei a fazer um mecanismo, junto com outros bailarinos, que era assistir um ensaio, pedir um dvd, um livro, alguma coisa dos outros grupos. Fui construindo uma biblioteca e uma videoteca de dança. Quando voltávamos para Belo Horizonte, fazíamos um grupo de estudo de dança na minha casa. Acho que essa foi minha transição. Então, quando quis parar, por coincidência, estava começando a escrever para a Folha de São Paulo.

E foi assim que a questão da crítica bateu na minha porta. No grupo de estudos cada um produzia textos, escritos que não chamávamos de nada. Você via o espetáculo e escrevia um comentário para partilhar com seus amigos. E uma dessas coisas que escrevi, mandei para meu marido - que trabalhava no jornal escrevendo sobre música - que leu e disse: "- Isso é uma resenha", e eu ri. Nem sabia direito o que significava. Ele perguntou: "- Posso mandar para o jornal?". Sérgio D’Avila, na época o editor, quis publicar. Quando vi meu texto publicado quase morri. É assim, o texto, ganha vida, ele fica diferente quando está no jornal. O meu coração batia, um horror, eu não sabia mais o que sentia e falei "- Não, eu não escrevo, foi só um acaso". E essa foi minha primeira matéria para o jornal.

Combinamos que eu escreveria regularmente para o jornal. Aproveitaria minhas viagens, entrevistaria pessoas. Até entrevistei Pina Bausch.

Quando resolvi parar de dançar, pedi para conhecer a história do Grupo Corpo, que era também a minha história, e escrever um livro sobre eles. Queria falar sobre as coreografias, mas não me sentia segura para falar sozinha, e convidei uma série de pessoas, o Renato Janine Ribeiro, a Eliane Robert Moraes, o próprio Arthur Nestrovsky, que é meu marido, o Marco Giannotti para escreverem comigo. Fizemos um livro de ensaios, que organizei, e esse foi meu primeiro livro, feito para eles, e foi também minha passagem para o outro lado da cena.

Depois disso, fiz graduação em filosofia e depois doutorado em Artes.

 

Traduzindo-se

Parando de dançar, mudei de cidade, estado civil e de profissão, tudo de uma só vez. Foi muito difícil.

Assistia aula de filosofia dançando. Eu que passava seis horas por dia em movimento, de repente tinha que passar quatro horas sentada. Não conseguia.

Conversei com meus professores, era impossível ficar quatro horas sentada, precisava me movimentar. Ficava no fundo da sala para não incomodar as pessoas porque um ser humano se movendo durante uma aula é um negócio que não dá. Mas eu precisava dançar a frase musical que os professores falavam. Eles têm ritmos na aula, têm cadência. Eu fazia movimentos pequenos e procurava ser bem discreta, mas ficava em pé no fundo da sala, fazia uns movimentos de cabeça, uns alongamentos, aí, tal, um braço, mas procurava ficar assim, invisível para os outros, porque era só uma necessidade que eu tinha.

Ficar na redação também era difícil porque para escrever eu tinha que dançar. Eu me organizava de cabeça para baixo, mas só podia fazer isso na minha casa. Virar crítica foi apavorante. Como jornalista de dança você faz matéria, entrevista as pessoas. Agora, fazer críticas sobre o espetáculo das outras pessoas foi bem mais complicado. Então, eu assistia o espetáculo, dançava o espetáculo no meu corpo e escrevia a dança que percebia. Procurava ter o mesmo ritmo da dança no ritmo das frases. Nisso, quem me ajudou muito, foi o Arthur novamente. Eu perguntava para ele "- O que está escrito aqui, é isso que danço?", eu dançava para ele ver.

Dançava a coreografia, aquilo que absorvia da coreografia, como eu fazia antes. Você olha o coreógrafo se movimentar e dança com ele, o que ele faz, e depois você vai incorporando, transformando o gesto dele no seu. Essa é uma arte que passa de corpo a corpo. Você vai entendendo o outro pelo movimento, e o outro vai te entendendo e você vai achando uma dinâmica comum. A mesma coisa eu fazia com os espetáculos.

Eu, que sempre conversei pelo corpo, queria construir a frase escrita como a frase do movimento. E o difícil de transpor a dança para as palavras da maneira que eu imaginava, era conseguir transmitir o mesmo ritmo, a mesma dinâmica, os espaços, as ideias por meio da construção da frase em português. Eu queria construir a frase escrita com a frase de movimento. E com uma frase de movimento acontece o mesmo que com a dança, se você faz um gesto sem pausa, sem interrogação, sem exclamação, ele não significa nada. Precisa da vírgula para criar o tempo da suspensão, do encadeamento rápido das coisas para criar as diferentes nuances. E isso que eu sentia no corpo era o que procurava fazer no papel.

Eu sentia no corpo a dança do outro, e tentava traduzir a dança do outro no corpo. E, por meio dessa percepção, traduzir para uma outra linguagem. Claro que nunca existe coincidência entre sentidos. Mas eu procurava isso. E confesso que acordava cedo para ver no jornal se não tinha nenhuma barbaridade. Mas teve várias. Nesse caminho fui atrás de teóricos que escreviam críticas. Eu já estava ligada à filosofia justamente para poder me tornar crítica. Precisava conhecer melhor a contextualização, a classificação, a ordenação, os elementos que compõem a cena. Mas a transposição da linguagem dançada para a linguagem escrita levou um tempo, eu também fiquei me desconhecendo até me reconhecer em outro lugar. Foi um momento muito solitário. Antes, eu trabalhava em grupo e tinha um diálogo constante com as pessoas e, de repente, passei a ter um papel em branco para preencher até as onze horas da manhã depois de ter assistido um espetáculo na noite anterior. Era apavorante, apavorante. Era como se eu estivesse fora de mim, como se estivesse do outro lado da cena, sabe? Do outro lado da cena...

Parar de dançar é um momento muito difícil para o bailarino, todos os bailarinos passam por isso e você se sente alguém que não é você, que está fora do eixo, que não acha seu centro, que não sabe como olhar para o mundo, não sabe como se relacionar com o mundo. E aos pouquinhos você vai encontrando de novo seu eixo, debaixo do seu pé, no centro do seu corpo, no jeito que lido com o computador, que me movimento para escrever, na inquietude de ir e voltar e escrever no computador, e anotar no papel, e aí você vai encontrando outro jeito de dançar. Eu ainda me considero bailarina. É dessa perspectiva que olho para o mundo, alguém que precisa encontrar seu eixo para dialogar com o outro, precisa encontrar no corpo as referências do mundo para falar com o mundo, precisa achar o desequilíbrio e o equilíbrio, as forças na fragilidade, gosto muito de ouvir o outro.

 

Silenciar para poder escutar

Hoje trabalho com a percepção de movimento.

Um grande projeto que me encantou foi o Fábrica de Cultura, eram mil e quinhentos adolescentes das maiores regiões de São Paulo, um desafio. Para mim o único modo de fazer cem adolescentes silenciarem para que possam se escutar sem levantar a voz, conseguir controlar angústias, ansiedades, desejos é por meio do movimento e do gesto. Não se pode usar um controle rígido com eles, é um controle na percepção, pela escuta fina que pode se estabelecer de um para o outro. São cem, mas tem que ser um a um - olho no olho de cada um deles.

Tenho turma de cento e cinquenta que vão à Companhia pela primeira vez assistir a uma palestra. Eu já começo com a palestra em movimento: "- Põe o seu pé no chão, tira a sua bolsa, começa a mexer comigo, onde está sua mão, onde está sua costela", enfim, eu vou brincando assim.

Com uma turma de adolescentes, você tem de ficar no meio deles, e vai contaminando - você empurra um, sem falar, o outro empurra também. E pouco a pouco vai se criando um eco. Normalmente na primeira aula você já estabelece um silêncio, que é o espaço de procura de si mesmo, que não é forçado e que vem desse encostar-se ao outro. Saio então do centro, vou passando, encontrando cada um, olho para um, olho para outro. Eles vão se organizando.

Trabalhar com esses adolescentes foi um aprendizado muito grande porque eram meninos muito distintos de diferentes regiões da cidade, o que faz muita diferença. Que tipo de dança você dá para eles, que dança é essa que não é de premissa profissional, mas uma dança que pertence a todos no sentido da expressividade?

Penso que todos nós percebemos o mundo em movimento, mas alguns prestam mais atenção e outros menos. Por exemplo: você vai fazer uma entrevista, e o entrevistador faz uma pergunta que te desafia, o que você faz corporalmente para poder se estruturar e não perder seu eixo? Encosta o pé no chão, senta bonitinho. A ideia é dar essa ferramenta para os meninos para que possam lidar com a agressividade, com as dificuldades da vida. Eles aprendem rápido porque é muito fácil. É questão de se aproximar e ensinar. Eles logo passam a perceber, quando estão mais ou menos agressivos, isso modifica a relação deles em suas próprias casas, começam "a ler" os outros. Os pais reclamam que eles ficam insuportáveis falando: "- Está crescida essa postura, cuidado com o seu eixo, você está fora do eixo".

Essa experiência ocorreu junto com meu doutorado sobre a metodologia do Ivaldo Bertazzo,6 trabalhei quatro anos com o Ivaldo. Foi um belo aprendizado.

No doutorado, procurei sistematizar sua metodologia em palavras. Procurei descobrir quais eram seus princípios e fui percebendo que estavam ligados a questões do pós-guerra. Suas grandes referências são da década de 1970, período em que muitos profissionais europeus como Mme. Béziers7 estavam preocupados com os corpos mutilados que vieram da segunda guerra.

Ivaldo criou sua metodologia a partir de outras, como a dança indiana com seus triângulos, sua base de apoio. A dança indiana é uma dança clássica. Ele escolheu uma dança clássica com muita definição de desenhos corporais para trabalhar com o cidadão comum. Creio que essa escolha tem a ver com o ritmo, com o desenho que dá caminhos que podem ser percorridos, são caminhos também da musculatura em relação ao esqueleto e com a forma como cada um se organiza.

 

A dança que pertence a todos

Toda dança clássica tem o caminho muito definido. O balé clássico surge no começo do renascimento, onde você não podia dar as costas para o rei. Por exemplo, o andeor8 permite o encaixe da cabeça do fêmur na bacia, o que amplia a liberdade do movimento. Nessa posição, consigo andar de lado sem virar as costas para o rei, consigo girar mais rápido para ficar de frente para o rei. A musculatura andeor, que aparentemente é natural, é o que me permite levantar a perna.

A dança clássica indiana é diferente, tem um trabalho de rosto e de mãos muito importante, um trabalho das Mudras, que é uma linguagem de comunicação. Escolhi estudar a dança que pertence a todos como forma de expressão: quem sou a partir do entendimento do meu corpo, dos meus espaços, da minha musculatura, e como esse corpo se relaciona com os espaços ao redor, como cada um se relaciona com o outro por meio da linguagem dos gestos, da linguagem da presença humana. Quando não se encontram mais palavras, é pelo olhar, pela postura que você se comunica. Às vezes esquecemos isso e é importante resgatar.

 

A companhia de dança e os bailarinos

No meio dessa história, fui convidada a ser diretora da São Paulo Companhia de Dança. É o sonho de todo bailarino ter uma companhia de dança. O João Sayad, secretário da Cultura do Estado de São Paulo (2007-2010), fez uma pergunta para um grupo: você criaria uma companhia de dança clássica hoje, sim ou não e por quê? Respondi: "- Eu criaria uma companhia de dança clássica contemporânea. Uma companhia que dança o clássico, mas dialoga com o hoje, que dança também as danças feitas especialmente para os bailarinos dessa companhia". Ele falou "- Tudo bem, então vamos fazer uma companhia da dança clássica contemporânea".

Uma companhia contemporânea seria aquela que dança as obras emblemáticas do repertório, (mesmo as do século XIX) e também obras criadas especificamente para ela, porque é necessário um diálogo entre os coreógrafos e os artistas de hoje - algo é criado especificamente para o seu corpo, que se descobre junto ao movimento. Você interpreta uma obra que está pronta no seu tempo, mas ela remete a outro tempo. Então você tem que entender esse outro tempo, o gesto desse outro tempo, a codificação desse período e isso não é necessariamente uma releitura. Na dança clássica, você não podia dar as costas para o rei, então o centro do palco era também o centro da plateia, o bailarino principal ficava de frente para o rei, a corte ficava em volta como os bailarinos e o corpo de baile. A rua é um espaço público onde todos se cruzam, a frente é para onde você está indo, hoje não há mais uma única frente.

Vou dar um exemplo da Companhia. Escolhemos, para estrear, uma peça de Balanchine,9 de 1935, chamada "Serenade", que ele criou para a escola de dança, e onde queria mostrar a diferença entre dança na sala de aula e no palco. As bailarinas daquela época eram mais redondinhas, porque a estética corporal daquela época era mais redonda. As bailarinas de hoje são mais esguias.

Mantivemos algo que era o princípio do Balanchine, a dança é como o vento, sempre em movimento. Essa é a passagem do clássico para o neoclássico. O clássico passa de uma pose para outra, o neoclássico está no desequilíbrio que liga um gesto ao outro, assim as poses não são fotográficas, você está sempre passando, está sempre em movimento.

Para que as bailarinas de hoje dancem essa peça elas têm que entender esse tempo do Balanchine, "- Olha, essa é posição clássica, você está em quinta posição, vai até quinta, mas já está saindo". Ele faz isso pela bacia, que é o centro do corpo, ele te desloca. Essa é uma dança clássica. Balanchine tem como sucessor no contemporâneo o Jíri Kylián10 e o Forsythe,11 por exemplo. Colocamos então em uma mesma noite um Jíri Kylián, que é um coreógrafo vivo - escolhemos uma obra de 1986 - não é tão diferente assim, do século XX. Ele tem outra leitura, é uma comédia sobre a época em que Mozart viveu. Quando você vê essas duas peças, vê dois tempos diferentes da dança clássica. Isso é uma companhia, para mim, clássica contemporânea. Depois disso você assiste uma coreografia criada pelo Henrique Rodovalho, que é coreógrafo brasileiro e criou especificamente para os bailarinos da Companhia. Os elementos clássicos estão ali em um movimento contemporâneo. A atitude é diferente, a cena é diferente, a postura do bailarino tem que ser diferente. E é um grande e delicioso desafio para o bailarino, você calça sapatilha de ponta, dança ponta, e sai para fazer mil fouettés,12 com o pé no chão, com roupa de rua e tem que olhar diferente assim, direto e não mais para o alto. Sem aquela imaterialidade de voar.

 

Formação de plateia

Essa diversidade é prazerosa para o bailarino, que experimenta varias possibilidades, mas também para o público. Você tem uma plateia mais diversa; composta de amantes do clássico e do contemporâneo. Aos poucos, a Companhia, que é uma companhia do governo, acaba formando uma plateia mais conhecedora da nossa arte.

Nossa companhia tem verba pública e é o que toda companhia de dança é, produz e circula com os espetáculos, a diferença está no fato de que essa Companhia pensa o passado, porque sem ele, não estaríamos aqui, e o Brasil não conhece os seus antecessores. Fazemos essa série, Figuras da Dança, que passa na TV, onde os bailarinos têm que assistir os depoimentos públicos e os antigos vêm dar aula para eles. Fazemos também o Processo de trabalho, outro documentário que conta como é a dança em construção, como se constrói uma coreografia por meio do bailarino, do coreógrafo, do professor. Tem também o que chamamos livros de ensaio, como o que fiz para o Grupo Corpo, várias pessoas de diversas áreas escrevendo sobre a dança e a Formação de Plateia.

Essa formação acontece na cena, mas também por meio de palestras que começam com o professor dançando na cadeira para dizer: "- Olha, dá para dar aula de matemática, geografia e português em dança", quais são os ângulos retos do seu corpo, como a sua respiração afeta sua emoção, como a pulsação do seu coração faz com que a sua letra saia fora de forma. Do mesmo modo que você escreve português, você dança, não dá para falar sem fazer pausa, não dá para escrever sem vírgula, sem ponto, sem interrogação, sem dinâmica. É uma provocação para que ele produza um material em vídeo, para levar para a sala de aula e que fala do cotidiano da dança.

Ele ouve a palestra, vê o vídeo, dança mesmo, tira as cadeiras e dança com os adolescentes e eles assistem o ensaio e vêem o bailarino assim nessa distância que a gente está. Eles levam toda essa experiência para a sala de aula e eu recebo seus alunos para assistir o espetáculo de dança. É mais que o espetáculo, é uma plateia inteira que dança e um monte de olhares daqui para lá. Isso dá a perspectiva de um e de outro. Eles ganham um folheto que é desenhado por um cartunista e desenham para mim, eu mando de volta e, quando eles entram no teatro, o desenho deles está sendo projetado no telão. Eu faço um círculo com eles para que a dança continue viva lá nos outros espaços e que pertença a todos, como de fato pertence. A gente só esquece que dança, mas, na verdade, todo mundo dança.

 

O palco

Bailarino precisa de palco, cresce no palco. Pode até ensaiar em sala de aula, mas a sala de ensaio é o rascunho, o teste da tentativa do encontro com o outro para se reconhecer. E o palco é ponto de encontro consigo mesmo. O outro é o espelho onde você se vê refletida.

Quando você está na coxia, tudo passa na sua cabeça, as sequências dos passos, as correções da ensaiadora, o que precisa consertar... mas quando você passa da coxia, tudo se modifica. Porque ou se entrega a você mesma e ao movimento ou não vai conseguir ser.

Se eu pensar qual é o próximo passo, erro. Eu penso com o corpo. O que penso é a sensação. "- Ah, tem um espaço que vou ocupar, tem uma verticalidade, tem um olhar para ela, eu quero encontrar você", penso isso.

Para entrar no palco, tem uma concentração, um foco, uma preparação, um aquecimento, nenhum bailarino entra no palco sem se aquecer, você faz aula antes, a tal da aula do balé clássico. A maquiagem é o momento onde você vai se ver no espelho, vai se entregando, se transformando também. A roupa que você põe. Todos os elementos vão te ajudando a compor aquele dia que você vai vivenciar no palco. Tem um enorme frio na barriga, mas quando entra em cena...

Você tem que ser, e o palco é o lugar onde você é por excelência. Você é e por isso encontra o outro. Você está na plenitude daquilo que se preparou para ser naquele personagem que quer habitar. E mesmo em uma dança clássica, você se pergunta: "- Ah, vou ser sempre princesa?", "- Não. Como estou hoje?", "- Eu sou uma princesa com raiva, com medo, com amor? Quem sou eu hoje?". E é desses diversos modos que vou conseguir habitar aquele personagem.

A Ady Addor conta um caso maravilhoso, ela fala assim: "- Fui estrear no Teatro Municipal do Rio", ela era do balé do IV centenário, "e aí eu estava girando, fouetté" - é um passo super difícil -, você gira em uma perna só no mesmo lugar, "e aí no quinto ou sexto, pensei: estou arrasando. Não deu o sétimo, eu estava no chão". E a plateia bate palma, "coitada da bailarina"...

O espelho - público - te responde. Você se entrega a ele e ele se entrega a você. Às vezes uma plateia barulhenta te desacorçoa, e aí você tem que se encontrar mais ainda consigo mesma para que ela te escute. E se o público é muito silencioso, você fica curiosa, "- O que será? Quem vem aí?".

É esse o diálogo. E tem também muito diálogo com quem está na cena com você. Mesmo sendo solista, você só é uma grande solista se o seu corpo de baile está com você. Se o seu corpo de baile é você. Você olha para eles, eles olham para você. Senão está absolutamente solitária em um mar de pessoas, e aí não dá para ser completamente.

 

 

1 Entrevista realizada em São Paulo, em 6 de setembro de 2011, com a participação de Ana Maria Rosenzvaig, Marina Kon Bilenky, Patricia Bohrer Pereira Leite, Sonia Soicher Terepins, Susana Muszkat e Thais Blucher. Inês Bogéa é diretora da São Paulo Companhia de Dança, doutora em Artes, professora no curso de especialização em linguagem da arte da USP, documentarista e escritora. Foi bailarina do Grupo Corpo e crítica de dança. Autora de diversos livros.
2 Benção é um golpe de capoeira que visa acertar o corpo do adversário acima do abdomen. Para isso a perna de trás da ginga é esticada para frente, em linha reta, visando empurrar ou deslocar o adversário e não bater.
3 Meia-lua de frente: estando com as pernas lado a lado, lança-se uma delas esticada varrendo a horizontal em um movimento de rotação fazendo a trajetória de uma meia-lua. Acerta-se o adversário com a parte interna do pé.
4 Lenira Borges, do Lenira Borges Studio de Vitória, ES.
5 Bettina Bellomo é uma das principais maitres de ballet. Seu trabalho causa importante impacto no desenvolvimento da dança contemporânea.
6 Ivaldo Bertazzo coreógrafo e educador, criador da idéia do cidadão dançante, que possibilita o dançar para o cidadão comum.
7 Mme. Marie-Madeleine Bézièrs: fisioterapeuta francesa, desenvolveu um método de coordenação psicomotora com bebês e adultos.
8 Andeors: para fora.
9 George Balanchine: é reconhecido como o coreógrafo que revolucionou o pensamento e a visão sobre a dança no mundo, sendo responsável pela fusão dos conceitos modernos com as ideias tradicionais do balé clássico
10 Jíri Kylián: bailarino e coreógrafo tcheco.
11 William Forsythe: bailarino e coreógrafo americano.
12 Fouettés: O termo indica um virar com uma mudança rápida na direção da perna de trabalho que passa em frente ou atrás da perna de apoio.