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Revista Brasileira de Psicanálise

Print version ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.45 no.4 São Paulo Oct./Dec. 2011

 

ARTIGOS TEMÁTICOS: CORPO

 

O corpo-sujeito

 

The body-subject

 

El cuerpo-sujeto

 

 

Liana Albernaz de Melo Bastos

Membro efetivo da Sociedade Brasileira de Psicanálise do Rio de Janeiro SBPRJ. Doutora em Ciências Humanas e da Saúde UFRJ. Professora adjunta da Faculdade de Medicina UFRJ

Correspondência

 

 


RESUMO

A autora desenvolve a partir das teorias freudianas, a noção de corpo-sujeito. Faz um breve restrospecto teórico destacando o caráter inovador da prática psicanalítica. Aponta as insuficiências da prática médica por sua matriz positivista no cuidar do corpo. Apresenta uma vinheta clínica para sustentar tecnicamente a noção de corpo-sujeito.

Palavras-chave: teoria freudiana; prática psicanalítica; prática médica; corpo-sujeito.


ABSTRACT

From the use of Freudian theories, the author develops the notion of body-subject. There is a brief theoretical retrospective emphasizing the innovative character of psychoanalytic practice. The author points out the insufficiencies of the positivistic medical practice when treating the human body. There is also the presentation of a clinical case which sustains, from a technical point of view, the notion of bodysubject.

Keywords: Freudian theory; psychoanalytic practice; medical practice; body-subject.


RESUMEN

La autora desarrolla, a partir de las teorías freudianas, la noción de cuerpo-sujeto. Hace una breve retrospectiva teórica subrayando el carácter innovador de la práctica psicoanalítica. Apunta las insuficiencias de la práctica médica por su matriz positivista en el cuidado del cuerpo. Presenta una viñeta clínica para sostener técnicamente la noción de cuerpo-sujeto.

Palabras clave: teoría freudiana; práctica psicoanalítica; práctica médica; cuerpo-sujeto.


 

 

O barbeiro relanceou os olhos pelo gabinete, onde fazia principal figura a secretária, e sobre ela os dois bustos de Napoleão e Luís Napoleão. Relativamente a este último havia, ainda, pendentes da parede, uma gravura ou litografia representando a Batalha de Solferino, e um retrato da imperatriz Eugênia.
Rubião tinha nos pés um par de chinelas de damasco, bordadas a ouro; na cabeça, um gorro com borla de seda preta. Na boca, um riso azul claro...
- Quero restituir a cara ao tipo anterior; é aquele. (Rubião apontou para o busto de Napoleão III).

Em poucos minutos, começou o barbeiro a deitar abaixo as barbas de Rubião, para lhe deixar somente a pêra e os bigodes de Napoleão III.
Volveram ainda dez minutos, antes que os bigodes e a pêra fossem bem retocados. Enfim, pronto, Rubião deu um salto, correu ao espelho no quarto, que ficava ao pé; era o outro, eram ambos, era ele mesmo, em suma.

(Machado de Assis, 1994, pp. 766-767)

Em Quincas Borba, Machado de Assis, nos conta, com mestria ímpar, o modo como Rubião se torna, também, Napoleão para fazer de Sofia, sua amada, imperatriz. A loucura de Rubião toma corpo por uma mudança em seu corpo (E quem melhor que um barbeiro para fazer o corte que cinde as personalidades alternantes de Rubião?). Rubião fala de uma restituição de um outro anterior que já o habitava. É pelo olhar do espelho que a constituição do seu eu como um outro e como si mesmo se apresenta. Seu corpo, sendo seu, é o do outro. O riso azul claro o leva às nuvens e os pés nas chinelas o põem no chão. Seu corpo vive muitos tempos, o de Napoleão e o de Rubião, o de antes, o de agora, o do futuro. Dividido, ele é mais do que a soma: ergo-suum.

Desde sempre presente na pena dos literatos e dos poetas, foi na pena de Freud que o enlaçamento do psíquico e do corporal ganhou contextualização teórica como processo universal constituinte do sujeito humano, presente não apenas na loucura. Freud operou -e sua operação demandou muito mais tempo do que a realizada pelo barbeiro em Rubião -a conjugação do corpo-alma construindo várias teorias, abandonando algumas, refazendo outras. Para compreender o humano, Freud criou um novo saber.

Gerada no berço da modernidade, a psicanálise padeceu, nos seus primórdios, de todas as suas insuficiências. Por um longo percurso, não isento de impasses e de contradições, a psicanálise, rompendo com as oposições sustentadas pelo paradigma da modernidade, pôde aceder à outra concepção antropológica: o homem enquanto sujeito da experiência e do conhecimento. Movido por forças inconscientes, o homem não tem mais a razão como instrumento hegemônico do conhecimento, o único, para o paradigma moderno que nos poderia fazer aceder ao real. O real, ao ter nele incorporada a dimensão da realidade psíquica, também deixa de ser homogêneo e racional (Plastino, 1993, 2001). Além disso, a psicanálise nos permite superar o divórcio entre o corpo e a alma, operado pela modernidade, permitindo a compreensão do sujeito como necessariamente encorpado (Bastos, 1998).

Muitas abordagens psicanalíticas, depois de Freud, trouxeram novas luzes às suas descobertas. Não apenas grandes nomes como Ferenczi, Melanie Klein, Bion, Ballint, Lacan, Winnicott, entre outros, mas também autores contemporâneos (Fédida, Laplanche, Ogden e, particularmente Green,1 dentre os estrangeiros, além dos nacionais: Birman, Figueiredo, Plastino, Maia, Khel e tantos outros). Todos beberam na fonte freudiana. Foucault referindo-se a Freud e Marx disse:

Esses autores tem isso de particular: não são apenas autores de suas obras e de seus livros. Produziram algo mais: a possibilidade e a regra fundamental para a formação de outros textos.
(Citado por Figueiredo, 2009, p. 2)

A tentativa do presente texto é, assim, resgatar - ainda que de forma breve - a construção freudiana da experiência psicanalítica, que traz à cena a intersubjetividade e a in-trasubjetividade, as teorias pulsionais, que aportam para a superação dos dualismos corpo/alma e homem/natureza, e a constituição identificatória que ancora o inconsciente no corpo dentro da alteridade. Podemos com isso construir a noção de sujeito-corpo, capital para o exercício da prática clínica - seja da psicanálise seja da medicina (Bastos, 2006).

 

A experiência analítica

Considerar, inicialmente, a experiência psicanalítica significa colocar, no cerne da prática clínica, os sujeitos singulares e históricos, determinados pelos afetos e produtores, por essa via, de conhecimento (Castoriadis, 1999). O conhecimento, no paradigma moderno, se dá por meio do experimento com o esvaziamento da experiência. O experimento é neutro, a-histórico e universalizador. Desse modo, ele aborda uma parte do real, mas não é suficiente para abarcar a complexidade humana (Morin, 1996) presente na experiência clínica.

A experiência clínica nasce com a prática da medicina (Foucault, 1987). É da prática médica que Freud parte. Contudo o corpo do qual a medicina trata é entendido pelo vértice do experimento, isto é, ele é ignorado na sua história singular e, consequentemente, da subjetividade (Bezerra Filho, 2001). Os poderosos recursos biotecnológicos dos quais a medicina contemporânea está armada atestam a crescente importância que o experimento tem assumido no exercício médico. Desse modo, o corpo do qual a medicina trata é um corpo-maquínico. Acenando, cada vez mais, para um quadro que sobrepõe as máquinas ao homem pela atribuição de valor de verdade absoluta aos exames complementares, a prática médica tem se esvaziado perdendo aquilo que se chamava a "arte médica". Sem desconhecer que tais recursos têm sido extremamente valiosos para diagnósticos e tratamentos, não podemos nos esquecer que eles complementam a prática clínica. De complementares, eles vêm se tornando fundamentais, transformando em obsolescência a máxima de que "a clínica é soberana". O médico, ao minimizar a soberania da experiência clínica, faz-se dessubjetivado e dessubjetivador (Bastos, 2006). Foi pela transmutação do experimento em experiência que Freud acedeu à subjetividade.2

Para dar conta da experiência analítica, Freud forjou vários corpos teóricos. Um deles, fundamental para a superação das polaridades modernas corpo/alma e natureza/cultura, foi o conceito de pulsão. A pulsão tem particular interesse nesse trabalho à medida que a medicina ocidental contemporânea tem reduzido o tratamento dos doentes a tratamento de organismos doentes (Bastos & Proença, 2000). O corpo humano, sendo biológico, não se explica apenas pela biologia. É preciso nele considerar outras dimensões. (Morin, 1996)

Freud tratou das relações entre o organismo biológico e a alma, na primeira teoria pulsional, pela oposição entre a fome e o amor. A fome, da ordem da autoconservação, não era geradora de conflitos psíquicos. O sofrimento psíquico advinha dos avatares da pulsão sexual. Contudo, Freud foi além: a pulsão sexual, distinta do instinto animal pela variabilidade do objeto, é instituinte do humano. O estudo da sexualidade infantil estabeleceu a gênese pulsional por meio da universalidade do corpo perverso polimorfo desenhado na relação do bebê com os que dele cuidam (Freud, 1905/1976i). Apesar da ousadia da primeira teoria pulsional com sua tentativa, em parte bem sucedida, de ultrapassagem do modelo moderno, ela ainda se mantinha dentro dele na medida em que pensava a emergência do psíquico a partir da res extensa e se pautava por critérios quantitativos ao considerar a pulsão regida pelo princípio de prazer e este referido à descarga da excitação (Freud, 1911/1976d).

A segunda teoria pulsional, ao trazer o conceito de pulsão de morte, expresso pelo ódio e pela destruição, em oposição às pulsões de vida, regidas por Eros, trouxe a dimensão qualitativa para o epicentro da complexidade humana. A primeira polaridade pulsional não foi abandonada; ela foi subsumida nas pulsões de vida. O ódio e o amor configurando a ambivalência afetiva originária passaram a corresponder ao "bloco de natureza" humana (Freud, 1920/1976f). O que Freud buscou foi a superação da oposição corpo/alma à medida que se desfez a separação entre o psiquismo e corpo. Não há a existência de um sem o outro: psiquismo e corpo são apenas duas formas de apresentação do humano.

Ao afirmar a natureza humana como afetiva e social, Freud, pontuou as características próprias do modo de ser humano. A cultura revela-se, assim, criada pelos movimentos eróticos e destrutivos (Freud, 1930/1976e) não mais explicável pela racionalidade dos contratos sociais da modernidade.

O estudo da identificação permitiu, sobretudo após a viragem dos anos 1920, a ul-trapassagem definitiva das dissociações do pensamento moderno (Florence, 1994). Pela incorporação dos objetos, regido pela ambivalência afetiva, o psiquismo se estrutura. (Freud, 1917/1976a). A busca pelos objetos, sendo necessidade vital não se resume a ela, criando o humano na relação com outros humanos. As protoidentificações, determinadoras das identificações secundárias, nascem da indissociação originária corpo-psiquismo (Freud, 1923/1976b). As identificações originárias, dadas pela incorporação do pai totêmico e do casal parental, fazem das marcas afetivas, a historicidade do sujeito quer como história pessoal, quer como história social (Freud, 1913/1976h).

A segunda tópica, sujeita ao dualismo de Eros e da pulsão de morte, reitera as superações das dicotomias corpo/psiquismo e individual/social. O id, aberto para o corpo, e as instâncias dele decorrentes forjadas pelas identificações, o ego, como superfície psíquica e corporal, e o superego, herdeiro do complexo de Édipo, mostram a imbricada rede amorosa e destrutiva que correlaciona o corpo e o psíquico, o individual e o social. O funcionamento paradoxal do superego, como portador dos ideais, ao mesmo tempo instância interditora, revela, mais uma vez, o humano regido fundamentalmente pelos afetos ambivalentes e, desse modo, inserido na trama social (Freud, 1923/1976b). A intrasubjetividade e a intersubjetividade não podem mais ser dissociadas. O corpo e o psíquico não são um fora e um dentro: é o corpo-sujeito.

A noção de corpo-sujeito amplia o entendimento da experiência analítica contemporânea. O corpo sendo o lugar, por excelência dos afetos, todo o tempo se presentifica na prática analítica. A sintomatologia não se restringe àquela das doenças psicossomáticas. Toda uma gama de sofrimentos, da fibromialgia à síndrome do pânico, da drogadição aos transtornos alimentares3 frequenta, cada vez mais, nossos consultórios. Se muitos desses sofrimentos já existiam, o que hoje nos chama atenção é a sua prevalência.4 O esgarçamento das redes sociais, o bombardeamento da imagem, a perda dos referentes universais, a pulverização da rede simbólica (Bauman, 1998) tem aumentado o desamparo e a angústia descarregados maciçamente no corpo.

Também a prática médica é hoje invadida por pacientes com queixas vagas e difusas referidas ao corpo que, não encontrando substrato orgânico, são diagnosticados como depressões. O uso abusivo de antidepressivos pela população receitados pelos médicos mostra a insuficiência de uma compreensão maior do sofrimento psíquico e uma falência de um modelo que desconhece a subjetividade (Bastos, 2000).

Nesse sentido, a psicanálise ao não operar o divórcio corpo-mente, com a noção de corpo-sujeito, aponta para o fato de que o corpo biológico não existe de forma autônoma. Sua bagagem genômica não é um destino inexorável como pretende um certo viés reducionista. Ela é uma probabilidade, mais ou menos forte, afetada pelo contexto sócio-histórico-cultural no qual o sujeito se constitui. A rede constitutiva do sujeito não é um "ao lado" do corpo biológico. Ela produz sentidos e mudanças. Não se trata, assim, de privilegiar o aspecto biológico sobre o psíquico - ou vice-versa - mas de entendermos que, em certos momentos, pode haver a apresentação predominante de um sobre outro sem excluir aquele silenciado. Já Freud (1914/1976c) falava que a uma simples dor de dente corresponde um maciço retraimento narcísico.

 

A prática analítica de sujeitos-corpos

A prática psicanalítica é uma prática de sujeitos-corpos e não de mentes desencarnadas. Isso a faz ocupar um lugar único e privilegiado na compreensão clínica. O psicanalista - também ele sujeito-encorpado - faz parte desse cenário. As psicanalistas mulheres não desconhecem o impacto que, por exemplo, suas gestações determinam na clínica. Não são apenas os ventres volumosos que aí estão, mas todas as fantasias que um bebê na barriga desperta em cada um dos pacientes. O corpo-sujeito do analista se presta como uma tela para a transferência. Seu gênero, sua idade, sua aparência tudo funciona produzindo efeitos. Também eles precisam ser trabalhados. Isso não significa pensar tão somente a "pessoa" do analista. A neutralidade analítica não é o apagamento do corpo-sujeito do analista, mas seu entendimento de que ele é parte constitutiva do campo transferencial para além da sua pessoa.

A escuta analítica regida pela atenção flutuante e a associação livre estão impregnadas de afetos pela pulsionalização do campo. Todos nós analistas já tivemos sono, angústia, medo, raiva, náusea, cefaleia, alívio, contentamento, perplexidade etc., experimentados em nossos corpos, em muitos momentos de nosso trabalho provocados pelo encontro inter e intrasubjetivo com nossos pacientes. A riqueza do trabalho consiste em poder fazer uso analítico de todos esses elementos. Assim, não é indiferente o campo teórico no qual nos alinhamos. A técnica deve considerar e instrumentalizar nossa compreensão teórica.

 

Ana e Liana

Depois de marcamos uma entrevista pelo telefone, recebo Ana em meu consultório. É uma mulher de trinta e poucos anos, grande obesa. Senta-se à minha frente. Penso, de imediato, que felizmente a poltrona é capaz de acomodá-la com conforto. Penso ainda que o fato de eu ser magra pode incomodá-la.

Ela me sorri timidamente e sinto um certo alívio. Tomo isso como um sinal de que o contraste entre nossas massas corporais não tenha sido considerado por ela como impedimento. Lembro-me, com angústia, nesse momento, de uma desastrosa experiência analítica que tivera, há muitos anos, com uma grande obesa, mais velha do que eu, que me abandonara num momento de ódio dizendo que eu podia comer caixas e caixas de chocolate, coisa proibida para ela, e que, desse modo, eu jamais a entenderia. Tudo isso me passa pela cabeça num flash rápido.

Sua voz é delicada e infantil fazendo contraponto com a minha que é grave. Mais um contraste entre nós. Dessa vez, ao contrário da experiência desastrosa anterior, sou eu a mais velha.

Fala de si mesma. Diz que já tentara várias terapias, incontáveis dietas, mas que as abandonava sempre. Fala de diversas consultas a nutricionistas, endocrinologistas etc. Sua gordura a faz muito infeliz. Sente-se incapaz, não apenas de emagrecer, mas de ter autonomia. Mora com os pais de quem depende economicamente. Eles lhe dizem todo o tempo que sendo gorda nada conseguirá na vida. Menos ainda um bom casamento. Ela concorda com eles, mas não consegue emagrecer. Pergunto-lhe quando começou a engordar.

Diz que desde pequena sempre foi gordinha e que na adolescência se agravou. Observo, novamente, sem nada falar, a sua voz frágil, quase infantil e seu tom choroso.

Conta da péssima relação que tem com a mãe que a ofende e humilha todo o tempo dizendo que é burra e gorda. Apesar de ter concluído um curso superior, também sente-se burra. Nesse momento, falando de si, o faz com uma crueldade como conta que a mãe lhe fala. Digo isso e ela sorri, mas diz achar que a mãe tem razão.

Falo que ela também deve ter razões para ser assim.

Conta que a mãe nunca a tratou bem. Desde pequena sofre com críticas. Nunca se sentiu cuidada. Mesmo hoje, quando tenta as dietas, a mãe enche a geladeira de coisas que engordam. Não a ajuda em nada, mas quer a filha o tempo todo à sua disposição para atendê-la. Obedece sempre, pois tem muito medo de que o confronto faça a sua vida ainda mais infeliz. Além disso, sua mãe vasculha a sua vida mantendo-a sob suspeita todo o tempo. Para a mãe, Ana não é confiável.

Vou sendo tomada de um grande sentimento de pena. Vejo à minha frente um bebê faminto de cuidados.

Ana volta ao tema das dietas e de como não consegue fazê-las. Digo que, ao me ver magra, deve pensar que eu entendo tudo de dietas. Ela ri e eu continuo: - Não sei se eu entendo de dietas para emagrecer, mas acho que você veio me procurar atrás de uma outra dieta: uma para engordar.

Ela me olha espantada.

Uma dieta de cuidados, digo, uma dieta para engordar a Ana que se sente tão pequena, tão incapaz. Acho que você vem engordando fora, no corpo, como uma espécie de proteção. Talvez uma Ana mais forte, mais alimentada, mais confiante em si, possa abrir mão da proteção da gordura.

 

Comentários finais

A busca incessante de Ana por especialistas em nutrição mostra a insuficiência do campo médico para lidar com aquilo que, se apresentando no corpo, não diz respeito ao corpo biológico. Nada há de ordem orgânica que justifique sua grande obesidade. Também ela não desconhece os princípios de uma alimentação equilibrada. Simplesmente ela não consegue segui-los. Sem considerar o corpo-sujeito de Ana nada produz resultado. O que está em jogo é a encenação de uma luta pela sobrevivência psíquica. Comer desmedidamente é a sua forma de tentar engordar uma Ana desnutrida de cuidados. Essa estratégia também serve ao ódio que tem da mãe. Manter-se obesa é desobedecer-lhe escancarando a luta que se trava entre elas. Nesse sentido, ela é vencedora, mas ainda com isso ataca a si mesma, sentindo-se "gorda, feia e burra" (nas suas palavras), pela culpa experimentada pelos sentimentos agressivos aos pais. A ambivalência afetiva condensa-se nesse sintoma.

Tal qual Rubião, Ana deseja ser "magra, linda e inteligente" para conquistar o amor do Outro. Um Outro que encarna o ideal do ego, "o tipo anterior", nas palavras de Rubião, o bebê maravilhoso que sonhamos um dia ter sido. Esse ideal é caucionado pela cultura contemporânea que nos apresenta, falaciosamente, a imagem de um corpo perfeito como a chave necessária para o amor.

Sua dependência econômica fala de uma cobrança que faz a eles daquilo que eles não lhe deram e não dão. Servindo como ataque a eles, ataca a si mesma impedindo sua autonomia. Mais um sofrimento para si própria. Fechada nesse ciclo vicioso, Ana definha. Não consegue estabelecer o corte, aquilo que Rubião pede ao barbeiro e que, no seu delírio, Rubião imagina realizar concretamente por meio da intervenção do outro, barbeiro, em seu corpo. Para tal teria que cortar a própria carne, mas falta a Ana o corte necessário que lhe possibilitaria romper a ilusão narcísica, sair desse espelhamento fatal que não lhe permite descolar-se do olhar materno buscando desesperadamente ser vista com bons olhos, ser amada.

Foi a desnutrição de Ana como sujeito que apontei, mas, para tal, era preciso que eu, como corpo-sujeito, apontasse o meu lugar na cena transferencial. Percebi meu primeiro cuidado com ela na minha observação da poltrona, o colo que lhe oferecia. Era imperioso que ele fosse confortável, cômodo e confiável suportando seu peso (peso-pesado/peso-pluma). A lembrança angustiante do meu fracasso anterior me fez estar atenta às nossas "diferenças ponderais": eu precisava pegar leve, com delicadeza o peso-pluma, mas com força suficiente para ampará-la, o peso-pesado. Meu corpo magro na cena transferencial poderia despertar ódio, como com a paciente da qual eu me lembrara, ou servir - como tentei fazer - como uma dentre outras possibilidades de existência. Entendi que Ana, travada no seu circuito pulsional, me pedia para que pudesse fazê-la andar de forma mais leve porém mais encorpada.

Meu comentário final abre para outros inícios. Não apenas dela e nela, mas em mim, nas inúmeras possibilidades que se abrem para se pensar: as ditas patologias borderline, o fazer analítico, a fala e o silêncio do analista, o uso das interpretações e construções, a falha básica apontando para a insuficiência dos primeiros objetos, os transtornos alimentares etc.5

Também, como Ana, preciso lidar com a minha voracidade. Por isso fiz esse recorte, barbeira de mim mesma.

 

Referências

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Correspondência:
Liana Albernaz de Melo Bastos
[Sociedade Brasileira de Psicanálise do Rio de Janeiro SBPRJ]
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Tel: 21 2552-3867

Recebido em 27.6.2011
Aceito em 24.10.2011

 

 

1 Perguntado sobre o que havia de novo em psicanálise, Green respondeu: Freud. (Citado por Figueiredo, 2009).
2 O conceito de sujeito não está presente, de forma nomeada, na obra freudiana posto que ele é uma elaboração posterior. Contudo consideramos que os conceitos emergentes das concepções freudianas antropológica e ontológica estão na base da compreensão do corpo-sujeito tal como propomos.
3 Essas são as novas denominações propostas no CID que faz uma redução organicista e, portanto, reforça o aspecto dessubjetivador que preside a prática médica contemporânea.
4 A discussão se essas são, ou não, novas patologias se esvazia se entendemos o sujeito como necessariamente constituído na rede social. Desse modo, em cada momento histórico há novas formas de subjetivação.
5 Remeto o leitor ao excelente artigo de Figueiredo, L. C. (2011) "A situação analisante e a variedade da clínica contemporânea".