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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.45 no.4 São Paulo out./dez. 2011

 

ARTIGOS TEMÁTICOS: CORPO

 

O corpo e os ideais na clínica contemporânea1

 

The body and ideals in the contemporary clinic

 

El cuerpo y los ideales en la clínica contemporánea

 

 

Maria Helena Fernandes

Psicanalista, Doutora em Psicanálise e Psicopatologia pela Universidade de Paris VII, com pós-doutoramento pelo Departamento de Psiquiatria da unifesp, professora do Curso de Psicossomática do Instituto Sedes Sapientiae e autora dos livros L’hypocondrie du rêve et le silence des organes: une clinique psychanalytique du somatique (Villeneuve d’Ascq: Presses Universitaires du Septentrion, 1999), Corpo (Coleção “Clínica Psicanalítica”. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2003) e Transtornos Alimentares: anorexia e bulimia (Coleção “Clínica Psicanalítica”. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2006)

Correspondência

 

 


RESUMO

Estandarte de um ideal de perfeição que se busca insistentemente alcançar, o corpo é hoje hiperinvestido, porém frequentemente apontado como fonte de frustração e sofrimento, constituindo-se como um instrumento privilegiado de expressão do mal-estar na cultura contemporânea. É nesse contexto que as figuras clínicas evocadas pela anorexia, mas também pela bulimia e pela sutil diversidade das problemáticas alimentares vêm ocupando um lugar de destaque. Sendo assim, a partir de duas imagens clínicas, pretendo abordar neste artigo três aspectos marcantes na anorexia e na bulimia: a fetichização do corpo, o apego ao ideal e a amplitude do mecanismo da recusa e da clivagem. E isso com o objetivo de refletir a respeito da participação da função alimentar e sua relação com o corpo e os ideais nas vicissitudes do mal-estar contemporâneo.

Palavras-chave: corpo; anorexia/bulimia; ideal de magreza; recusa e clivagem; alimentação.


ABSTRACT

An emblem of a persistently sought-after ideal of perfection, the body today undergoes intense investment. However, it is pointed as a source of frustration and suffering, becoming a privileged instrument of the expression of unease in contemporary culture. It is in such a context that the clinical figures evoked by anorexia, as well as bulimia and the subtle diversity of eating disorders, have gained a prominent position. Thus, taking two clinical images as a starting point, I plan on approaching, in this article, three poignant aspects of anorexia and bulimia: the fetishization of the body, the attachment to the ideal, and the magnitude of the mechanism of refusal and of cleavage. This will be done with the objective of reflecting on the part played by the eating function, and its relation with the body and ideals, in the variations of contemporary unease.

Keywords: body; anorexia/bulimia; ideal of thinness; refusal and cleavage; eating.


RESUMEN

Estandarte de un ideal de perfección que se busca insistentemente alcanzar, hoy se invierte mucho en el cuerpo, sin embargo este es señalado frecuentemente como fuente de frustración y sufrimiento, convirtiéndose en un instrumento privilegiado de expresión del malestar en la cultura contemporánea. Es en este contexto que las figuras clínicas evocadas por la anorexia, así como por la bulimia y por la sutil diversidad de las problemáticas alimenticias vienen ocupando un lugar de destacado. Siendo así, a partir de dos imágenes clínicas, pretendo abordar en este artículo tres aspectos fundamentales en la anorexia y la bulimia: el hechizo del cuerpo, el apego al ideal y la amplitud del mecanismo de rechazo y ruptura. Y esto con el objetivo de reflexionar al respecto de la participación de la función alimenticia y su relación con el cuerpo y los ideales en las vicisitudes del malestar contemporáneo.

Palabras clave: cuerpo; anorexia/bulimia; ideal de delgadez; rechazo y ruptura; alimentación.


 

 

Atualmente o imenso interesse pelas questões que envolvem o corpo pode ser facilmente verificado pela quantidade de reportagens que invadem nosso cotidiano tratando da saúde ou da doença. Sem falar na abordagem estética, que se tornou um dos assuntos preferidos também das publicações sérias. O corpo toma a frente da cena social. Sua forma ou seu funcionamento é assunto frequente nas conversas entre amigos, nas piadas contadas na mesa de bar, no cinema, na literatura etc.

O corpo saiu do espaço privado do interior das casas e do espaço restrito das instituições de saúde e ganhou o espaço público: as academias, as clínicas de estética... a rua. Corpo nu, corpo vestido, corpo de mulher, corpo de homem, o corpo serve para vender qualquer coisa, inclusive o próprio corpo. Basta observar a quantidade de propagandas de tratamentos cirúrgicos e estéticos que vemos hoje em dia.

Não se pode deixar de notar que os progressos tecnológicos da medicina e da genética vêm reformulando de maneira acelerada a relação do sujeito com o próprio corpo, tanto no que diz respeito às questões do adoecer quanto às questões ligadas ao envelhecimento. Habituados a transpor os limites do corpo, os cientistas nos informam entusiasmados que tais progressos nos permitirão viver mais e melhor. Livres de doenças que durante bom tempo perturbaram o sono da humanidade, somos convidados a nos deixar embalar pela perspectiva de vencermos também a luta contra o tempo.

As ressonâncias desses progressos certamente se fazem escutar na clínica psicanalítica da atualidade. Estandarte de um ideal de perfeição que se busca insistentemente alcançar, o corpo é hoje hiperinvestido, porém frequentemente apontado como fonte de frustração e sofrimento, constituindo-se como um instrumento privilegiado de expressão do mal-estar na cultura contemporânea. É assim que, cada vez mais, marca presença na psicopatologia da atualidade a obsessão pela magreza, a compulsão para fazer exercícios físicos, a compulsão alimentar, o horror do envelhecimento, as excessivas e múltiplas intervenções cirúrgicas de modelagem do corpo que aparecem hoje, em nossa clínica cotidiana, ao lado das mais diversas descompensações somáticas. Tomando a frente da cena, é o corpo que se constitui como fonte de insatisfação e de impedimento à potência fálico-narcísica.

Nesse cenário, as figuras clínicas evocadas não só pela anorexia, mas também pela bulimia e pela sutil diversidade das problemáticas alimentares, vêm ocupando um lugar de destaque, engajando o corpo e, por sua prevalência entre as mulheres, relançando a discussão sobre a feminilidade. Por um lado, a eclosão das dificuldades alimentares na adolescência assinala a importância das questões relativas à sexualidade e à autonomia, por outro, as problemáticas psíquicas colocam a preocupação com o corpo, sua forma e seu funcionamento, no centro das nossas interrogações. Nesses quadros clínicos esses dois eixos, o corpo e a feminilidade, organizam-se em torno de um ponto comum, a alimentação, o que vem, de uma certa forma, assinalar a importância do modelo da oralidade na constituição do sujeito.

Ora, para a psicanálise, a constituição do sujeito é um processo por meio do qual se ingressa no universo simbólico humano, o que, necessariamente, evoca a dialética própria dos modos específicos de relação com a alteridade. A necessidade de compreensão dessa dialética assinala à clínica psicanalítica um lugar privilegiado enquanto um dispositivo de investigação e compreensão das vicissitudes do sofrimento humano. Sofrimento este que, atualmente, vem conferindo também à função alimentar um lugar de destaque.

Nesses últimos anos, a questão do corpo na psicanálise tem me ocupado bastante e deu origem a vários artigos e três livros. No primeiro livro, abordei as vicissitudes da percepção do corpo nos processos de adoecimento somático (Fernandes, 1999). No segundo, dediquei-me a explorar a função do corpo na teoria freudiana (Fernandes, 2003). E no terceiro, sobre a anorexia e a bulimia na clínica psicanalítica, me propus a contribuir para melhor compreender as distorções da imagem corporal tão comum nesses casos (Fernandes, 2006a).

O percurso realizado neste último livro levou-me a explorar as vicissitudes da relação precoce mãe-bebê e sua relação com as identificações e, consequentemente, com os ideais, a diferenciação, a autonomia, o tempo e a morte. Essa trajetória fez despertar em mim um interesse, cada vez maior, na articulação entre psicopatologia e cultura, dando origem a alguns artigos publicados nos últimos anos. É, mais uma vez, a essa articulação que irei me dedicar neste texto.

Sendo assim, não tenho a intenção aqui de propriamente retomar as hipóteses metapsicológicas que foram exploradas por ocasião desse último livro, nem mesmo de me deter na complexidade do manejo transferencial desses casos. Minha intenção neste artigo é salientar a fecundidade da clínica psicanalítica da anorexia e da bulimia para colocar em evidência a centralidade da questão do corpo e dos ideais na psicopatologia contemporânea e sua relação com a alimentação.

 

Psicopatologia e cultura

As discussões a respeito da articulação entre as vicissitudes culturais e a psicopatologia têm recebido a atenção dos psicanalistas que, cada vez mais, se recusam a lidar com os subprodutos clínicos da nossa cultura como se fossem meros casos isolados e individuais. Essa recusa responde à necessidade de considerarmos os registros social, ético e político implicados na teorização clínica.

Muitas são as vozes que se erguem em nosso meio para ressaltar que o aumento dos casos de anorexia e bulimia, de depressão, de síndrome do pânico, de somatizações, de adições (as lícitas e as ilícitas), assim como, do desinvestimento na interioridade e no pensamento reflexivo, responde a uma tentativa de se lidar com a radicalidade das transformações experimentadas nos últimos tempos. A função cotidiana e central da alimentação parece desempenhar, nesse contexto, um papel não negligenciável de catalisador dessas transformações. Não é por acaso que os historiadores da alimentação insistem no papel central de seu objeto de pesquisa, bem como na posição estratégica deste no sistema de vida e de valores das diversas sociedades. As problemáticas alimentares, tais como a anorexia e a bulimia, atingem justamente essa centralidade.

Atualmente, a discussão a respeito da relação entre anorexia, bulimia e cultura se impõe à medida que, nos últimos tempos, os ideais de magreza vêm assumindo uma significação amplificada, sobretudo para as mulheres. Na nossa sociedade do novo milênio, que tem como marca registrada o permanente convite ao consumo, é notória a imensa quantidade de produtos à venda para fazer emagrecer. O sucesso de vendas destes produtos só reafirma o quanto a imagem e a aparência magra são hoje maciçamente investidas.

No Brasil, 53% da população feminina faz regime. Nos últimos 5 anos, o uso de remédios para perder peso cresceu 500%, assim nosso país é hoje o 3° maior consumidor de medicação para emagrecer no mundo. O Brasil é também o 2° país no mundo em número de cirurgias estéticas, a maioria realizada em pessoas jovens, entre 20 e 34 anos, para as quais ainda não são significativas as marcas do avanço da idade. Pode-se dizer que a magreza é atualmente objeto de um verdadeiro culto. Os estudos sobre a evolução dos costumes mostram, conforme afirma Vindreau

que esse ideal de magreza da sociedade ocidental se acentuou nessas últimas décadas e domina em todas as classes sociais. (1991, p. 67)

Entretanto, nas antigas descrições clínicas da anorexia, como as clássicas descrições de Lasègue e Gull, o medo de engordar não é citado. Isso permite associar o medo de engordar ou o desejo de emagrecer, tão amplamente veiculado pelas anoréxicas de hoje em dia, aos ideais de magreza que só começaram a vigorar a partir das décadas de 1920 e 1930. De fato, tal desejo só foi sistematicamente considerado como principal motivação para a recusa alimentar das anoréxicas por volta de 1930.

Se é evidente que a anorexia e a bulimia não são uma expressão sintomática exclusiva das mulheres, também não se pode negar que a nítida prevalência desses quadros clínicos entre as jovens de nosso tempo solicita uma reflexão a respeito das vicissitudes do mal-estar feminino na contemporaneidade.

Como testemunha a invenção da psicanálise a partir da escuta das histéricas, sabemos que cabe às mulheres um papel não negligenciável como porta-vozes das mazelas da dimensão subjetiva de seu tempo. Sabemos também que as mulheres, ao longo dos séculos, recorreram aos seus corpos para expressar as vicissitudes de sua subjetividade e as mazelas do ser mulher que cada época lhes propõe (Fernandes, 2006b, 2008).

Em um estudo bem documentado sobre a evolução histórica da anorexia, Weinberg salienta:

As santas e beatas da Idade média, com seus jejuns auto-impostos, não perseguiam um ideal de magreza, mas um ideal de ascese e de comunhão com Deus. Ou ainda, faziam da recusa em alimentar-se uma forma de conservarem a virgindade e opor-se aos casamentos arranjados. (2004, p. 6)

A recusa alimentar, além de aparecer como uma forma de comunicação, aparece também como uma forma de resistência e reação frente às estruturas patriarcais do mundo medieval.

Todos esses elementos apontam não somente para o interesse que a anorexia e a bulimia vêm despertando, mas, sobretudo, para a abrangência da discussão que vem sendo engendrada a partir desses quadros clínicos. A abrangência dessa discussão decorre da necessidade de enfrentarmos os desafios, não apenas os desafios clínicos, que não são negligenciáveis, mas, especialmente, os desafios teóricos. Essas patologias desafiam o saber psicanalítico e, sobretudo, solicitam uma reflexão a respeito do mal-estar contemporâneo, cujas imagens, a clínica psicanalítica, não se cansa de refletir.

Sendo assim, a partir de duas imagens clínicas, pretendo abordar neste artigo três aspectos marcantes na anorexia e na bulimia: a fetichização do corpo, o apego ao ideal e a amplitude do mecanismo da recusa e da clivagem. E isso com o objetivo de refletir a respeito da participação da função alimentar e sua relação com o corpo e os ideais nas vicissitudes do mal-estar contemporâneo.

 

A recusa do corpo e a clivagem do ego

Lígia chega à análise profundamente deprimida, fazendo uso de antidepressivos; chega a comer e vomitar até oito vezes ao dia. Encontra-se emagrecida, referindo um medo enorme de engordar e ficar feia. É uma moça que chama a atenção pela sua beleza. Dedica-se com exagero aos exercícios físicos e relata obter "alívio" com essa atividade. Corre durante horas no parque do Ibirapuera, quilômetros a fio, chegando mesmo à exaustão. Após terminar a faculdade, os episódios bulímicos a impedem de dar continuidade ao seu desejo de fazer uma pós-graduação. Inicia reticente sua análise, dizendo que já se submeteu a duas terapias anteriores, mas "não adiantou nada" - diz ela.

Michelle tem 14 anos, precisa ser internada no hospital geral devido ao seu estado físico: pesa apenas 32 quilos e continua recusando alimentação; está amenorreica há vários meses. Uma equipe terapêutica é formada para ocupar-se do caso. Um psiquiatra, uma psicanalista, um clínico geral e uma nutricionista. O quarto de Michelle está sempre cheio de comida. Deliciosas guloseimas, frutas frescas e finos chocolates parecem ser, entretanto, encarados com desprezo por seu olhar distante. Quando a atendo pela primeira vez, ainda no hospital, Michelle usa uma sonda parenteral para alimentar-se. Sugiro à família que retirem do quarto toda espécie de comida. Após uma semana, consigo com o clínico geral uma ordem de saída e vou com Michelle ao Shopping dar um passeio; ela pede para fazer um lanche e vamos ao McDonald’s. "- Hambúrguer com batata frita, por favor!". Uma pequena mordida no hamburguer, duas ou três batatas fritas e nada mais. Parecendo apreciar encantada a abundância colorida do prato, Michelle olha, mas não come. Três semanas depois, tendo atingido o peso mínimo para permitir a alta hospitalar, ela deixa a internação e continua sua análise indo até meu consultório.

A obstinada recusa alimentar das anoréxicas, acompanhada da insistente recusa das transformações do corpo produzidas pelo emagrecimento, não deixa passar desapercebido, especialmente nos casos mais graves, que algo escapa aos mecanismos tipicamente conhecidos na neurose. Esse inquietante algo mais, esse além da neurose, tem sido reconhecido por vários autores que assinalam a tonalidade perversa e aditiva presente na organização do funcionamento psíquico dessas jovens.

Paul-Laurent Assoun (1995) assinala que a anoréxica deixa Freud perplexo porque ela é justamente aquela que sabe o que quer, ou melhor, ela é a encarnação mesmo de uma escolha - a escolha de não comer. Uma escolha que se apoia sobre a recusa das necessidades do corpo. Segundo Assoun (1995), é essa "forma particular de Verleugnung que dá a essa estrutura neurótica sua coloração perversa" (p. 135).

Philippe Jeammet (1991) também vai nessa direção e, ao referir-se à bulimia, fala em "arranjo perverso" (p. 98). É importante notar que não se trata de uma estrutura perversa estável, mas sim de um arranjo defensivo secundário. Diferentemente da perversão, em que o papel da angústia de castração é determinante, nesse arranjo perverso a angústia de castração cede lugar à angústia de separação, com sua oscilação entre abandono e intrusão.

Mais tarde, referindo-se à anorexia e à bulimia, Jeammet (1999) discute a dimensão aditiva presente nesse arranjo perverso e salienta ainda que

uma das facetas desse arranjo perverso é sua propensão a sobreinvestir todo o domínio das sensações ligadas à exterioridade, ao contato das superfícies, em oposição ao domínio das emoções, da troca afetiva e da internalização dos vínculos, que é, dessa forma, contornado. (pp. 40-41, grifos meus)

Jeammet verá nessa "cultura da sensação" uma tentativa dessas jovens de se proteger do vazio interno e do risco de perda do objeto.

Isso nos permite compreender melhor a busca ativa de sensações físicas, principalmente a de cansaço, provocada pelo excesso de atividades motoras, como se observa em Lígia, mas nos possibilita também entender o investimento no reaparecimento do apetite, como se pode notar em Michelle.

Jeammet nos lembra que para os toxicômanos o estado de falta é tão importante quanto a satisfação; em relação à anorexia, ele continua:

É todo o arranjo relacional com o objeto que vai, assim, ser substituído por uma alternância da busca de sensações de excitação e de um apaziguamento, sabendo que na anoréxica, contrariamente a outras formas de condutas aditivas, o apaziguamento não é procurado como satisfação direta, mas está ligado ao triunfo que propicia a não satisfação da necessidade. (1999, p. 41)

Em Michelle isso era particularmente evidente, pois seu olhar siderado diante do hambúrguer com batatas fritas, que, aliás, ela mal tocou, parece demonstrar que a satisfação diante do alimento, praticamente intocado, parece consistir em dominá-lo e controlá-lo, recusando a sua ingestão.

Evelyne Kestemberg, Jean Kestemberg e Simone Decobert (1998), por sua vez, particularmente a partir do estudo sobre o fetichismo, salientam que o que lhes chama a atenção nesses casos é a impossibilidade de elaboração da angústia de castração, em que o mecanismo da recusa parece incidir sobre o próprio corpo do sujeito. É assim o corpo próprio que é elevado à categoria de fetiche. A realidade recusada, insistem os autores, "não é tanto a realidade exterior - (tal como é classicamente descrito como específico da psicose) -, mas a realidade do próprio corpo" (p. 190, grifos meus).

Fica evidente, então, que a recusa do corpo próprio assume não somente um lugar de destaque nessas patologias, mas também permite estabelecer aqui uma fronteira com a psicose. Não se trata de uma recusa da realidade exterior, como estamos acostumados a ver na psicose. Trata-se de uma recusa da realidade do corpo próprio - seu tamanho, sua forma, sua espessura, sua imagem, bem como suas necessidades e seus desejos.

Lembremos que, quando se debruçou sobre o problema do fetichismo, Freud (1927/1991) utilizou a palavra Verleugnung (recusa) para caracterizar essa posição defensiva do ego que consiste em recusar-se a reconhecer a realidade de uma percepção considerada traumatizante, particularmente a da ausência de pênis na mãe. Assim, a recusa no sentido freudiano apresenta-se como recusa da realidade e carrega a ideia de uma clivagem do ego.

E. Kestemberg, J. Kestemberg e S. Decobert assinalam ainda que, nesses casos, observa-se a presença de um ideal do ego sempre distante e projetado no futuro, sugerindo assim uma manipulação fetichista de si mesmo, dos outros e de seu próprio corpo. Eles escrevem:

De fato é a realidade do próprio sujeito, no que ela tem de mortal, no que ela tem de erótica, no que ela tem de humana, que é negada por esses adolescentes em uma megalomania jamais explicitada sobre forma de representação delirante, mas totalmente atuante no seio de um fetichismo singular. Uma clivagem particular do ego permite manter o princípio de realidade em um setor privilegiado no qual ele funciona de uma maneira praticamente perfeita (atividades cognitivas), mas é rejeitado quando se trata de demandas pulsionais, de fantasmas, que permanecem mal integrados e mal aceitos. (1998, p. 191, grifos meus)

Essa clivagem particular do ego - que só faz fracassar o princípio de realidade diante da realidade do próprio corpo - era marcadamente observável tanto em Michelle quanto em Lígia. Ambas eram descritas como filhas ideais, estudiosas e bem comportadas; nunca tinham dado trabalho aos pais, até que pararam de comer. Ao recusar o alimento, o primeiro dom oferecido pela mãe, essas jovens parecem se situar além da necessidade. A recusa da realidade do corpo - que, em outra ocasião traduzi como um corpo em negativo, corpo recusado - é o estandarte de uma recusa a toda e qualquer possibilidade de necessitar do outro (Fernandes, 2010).

Tal pavor de depender do outro só pode ser enfrentado mediante uma recusa da realidade humana do sujeito enquanto tal, isto é, de suas necessidades e de sua vulnerabilidade. É assim que se pode compreender o aparente paradoxo entre o êxito dessas meninas no campo da exterioridade (atividades escolares, obediência aos pais e às leis etc.) e o fracasso delas no domínio da interioridade, isto é, as dificuldades que apresentam para administrar as demandas afetivo-relacionais e pulsionais próprias da adolescência (Fernandes, 2007).

Essa adaptação hipernormal ao mundo externo parece velar as dificuldades sutis dessas jovens diante do gerenciamento de conflitos, particularmente em relação aos pais. Os conflitos normais entre pais e filhos na adolescência, quando as reivindicações de independência começam a aparecer, parecem estar ausentes nessas famílias. Michelle e Lígia não reivindicavam independência, não criavam polêmica para sair com as amigas à noite, não enfrentavam discussões sobre isso e também não burlavam uma lei estabelecida. Na verdade, a princípio não pareciam interessadas nesses assuntos, mantendo-se sossegadamente alheias aos interesses próprios das jovens nessa fase da vida.

Esse alheamento parece tranquilizar os pais a tal ponto que chegam a não enxergar o retraimento dessas meninas e o progressivo isolamento delas das amigas da mesma idade, assim como demoram para perceber o emagrecimento significativo delas. Por um certo tempo, as atividades cognitivas e sociais ainda se sustentam, até que começa a ficar evidente o progressivo empobrecimento da vida dessas jovens como um todo, uma vez que seus interesses parecem concentrados na manutenção do controle da restrição alimentar. Fica claro o empobrecimento da vida psíquica e a extrema dificuldade de contato com a subjetividade.

 

O apego ao ideal

Fazendo eco aos autores que enfatizam a prevalência do mecanismo da recusa no funcionamento psíquico dessas jovens, Fuks salienta a amplitude desse mecanismo:

Recusa da diferença sexual, da castração e da morte. Mas, também, recusa da alteridade do objeto, da passagem do tempo e das mudanças que ele produz no corpo. Sua capacidade de prescindir da comida é uma recusa das leis próprias da natureza, mas também, das da cultura. É conhecido o lugar da comida nos rituais coletivos cotidianos e nos grandes eventos, tendo sido destacada, pela psicanálise, sua importância nos processos de identificação constitutivos do laço tribal ou comunitário. (2003, p. 152)

Esse autor aproxima esse funcionamento psíquico ao que é próprio das neuroses narcísicas, em que se observa a imposição de um ideal absoluto e o fechamento do espaço psíquico.

Nesse sentido, Fuks destaca que as anoréxicas parecem encarnar o ideal:

Na gestão narcísica do ideal, não somente se regulam por valores absolutos; elas, mais bem, os representam, os encarnam. Não aspiram à magreza, são a magreza. Essa fusão com o ideal, essa condição onipotente é o suporte de uma energia inesgotável e da força de convicção que sustenta seu saber a respeito delas mesmas. (2003, p. 151)

É como se insistissem em seguir vivendo "como se as leis desse mundo, que valessem para os outros, a elas não se aplicassem" (Fuks, 2003, p. 151). Não é à toa que foram caracterizadas por Raimbault e Eliacheff (1989) como as indomáveis, pois não se deixam domar pelas leis da natureza nem pelas leis da cultura.

Valérie Valère - a jovem francesa que se tornou célebre após ter escrito um livro em que conta a experiência de seu tratamento para a anorexia - expressa essa adesão ao ideal de forma contundente:

Não se pode de um dia para o outro não conhecer mais a fome, não ter mais necessidade de nada, isso é falso! Trata-se de um treinamento, um objetivo: não ser mais como os outros, não ser mais escrava dessa exigência material, não mais sentir essa sensação de completude na barriga ... . Eu tenho a impressão que essa regra leva a um outro mundo, límpido, sem dejetos, sem imundices, ninguém se mata porque ninguém come. (1978, p. 112)

A ordem subversiva e indomável das anoréxicas parece evocar um mundo sem morte, isto é, sem corte, sem separação, sem conflito, sem diferença. Um mundo onde ninguém se mata porque todos já são imortais e, como os Deuses do Olimpo, não precisam de comida. Nessa perspectiva é a dimensão da morte que desaparece.

Isso nos permite compreender que essas jovens, ao levar a inanição à beira da morte, não estão querendo se matar, como frequentemente é assinalado. Porém, nessa obstinada recusa da morte, elas podem efetivamente morrer, pois é a realidade do próprio sujeito, no que ela tem de mortal, de erótica e, enfim, de humana, que é recusada enquanto tal. O misto de fascínio e horror que exercem as anoréxicas poderia ser pensado como uma espécie de reação contratransferencial perante nossa dificuldade diante da própria morte, isto é, diante de nossas angústias de separação e de castração.

Não posso deixar de assinalar aqui que Freud utiliza de forma relativamente imprecisa as expressões: ideal do ego (Ichideal) e ego ideal (Idealich). Esses termos aparecem pela primeira vez em Para introduzir o narcisismo (Freud 1914/1995b). Enquanto instância diferenciada, o ideal do ego constitui um modelo ao qual o sujeito procura se adequar. Sua função essencial é justamente ser uma referência para o ego. Sua origem, apesar de sua atualização reforçada no momento do Édipo, é principalmente narcísica. É a tradição psicanalítica pós-freudiana que vai insistir em distinguir essas duas expressões, salientando que as diversas formas de relação do sujeito com essas instâncias ideais correspondem a diferentes padrões de relação com as figuras parentais.

Assim, o ego ideal seria a instância originária em que se constitui o ego do sujeito a partir do que Freud denominou narcisismo primário. Conforme salientam Laplanche e Pontalis, o ego ideal se define como "um ideal de onipotência narcísico forjado a partir do modelo do narcisismo infantil" (1990, p. 255); nele o sujeito se define como seu próprio ideal, numa relação eminentemente dual com sua imagem, como insistiu Lacan (1949/1966) no seu ensaio sobre o Estágio do Espelho. No ideal do ego, o sujeito não é seu próprio ideal; este é algo que o transcende e ao qual ele deseja atingir. Lacan (1936) salienta que nesse caso a relação não é mais dual, mas triangular, estando o sujeito marcado pela instância paterna em sua subjetivação. A marca da figura paterna no psiquismo da criança vai permitir contornar os impasses colocados pela relação com a mãe, criando as condições de possibilidade da abertura do sujeito para uma posição desejante.

Desse modo, Alonso enfatiza o ideal do ego:

produto do recalque e rearranjo dos restos do complexo de Édipo, introduz o tempo futuro. Entre o eu ideal e o ideal de eu instaura-se a temporalidade que diferencia passado, presente e futuro. O ideal de eu permite criar laços sociais e amorosos na dimensão do mais tarde e abre o lugar para o desejo. Os ideais nos puxam pra frente; quando eles desaparecem, só nos resta o caminho da regressão em relação ao eu ideal, do retorno ao estancamento narcísico da libido. Quando prima o eu ideal, morre o desejo e ficamos entregues aos excessos da pulsão que ameaça engolir o eu. (2003, p. 233)

Essa passagem do ego ideal ao ideal do ego instaura a dimensão temporal, guardiã da possibilidade do desejo. Sendo assim, a rigor, deveríamos dizer que, na cena fantasmática, as jovens anoréxicas e bulímicas situam-se no registro do ego ideal, não conseguindo se inscrever no registro do ideal do ego, daí a persistência da recusa da morte e do tempo, que é mais acentuada ainda na anorexia do que na bulimia.

A recusa da realidade humana, no que ela tem de mortal e erótica, sugere que a anorexia abrigaria, assim, um fantasma de indestrutibilidade do corpo, como se o sujeito se recusasse a ver-se como vulnerável. Nesse sentido, o sentimento de onipotência e a recusa da realidade do corpo próprio parecem manter entre si relações estreitas, combinando-se a um ego ideal bastante poderoso que leva o sujeito a tentar manter-se na ilusão de um corpo inatingível, simultaneamente ileso à morte e ao tempo.

 

A lógica perversa

No que se refere particularmente às jovens bulímicas, parece evidente que, diante da angústia despertada pelas solicitações próprias da adolescência e da existência de um modo geral, o ato bulímico muitas vezes aparece privando, em graus diversos, a atividade psíquica do espaço interno ao pensamento, ao afeto e à reflexão, que é sua condição de possibilidade. O regime da urgência e a intolerância para com as exigências da realidade levam a uma espécie de abolição da temporalidade, abrigo do desejo, das contradições e das interdições. Desse modo, ganha lugar de destaque também o evitamento do pensamento reflexivo, denunciando a dificuldade de contato com a subjetividade e a tendência a investir as sensações e a exterioridade do corpo.

Esse declínio da interioridade e o concomitante privilégio da exterioridade, conferindo à imagem um papel central na atualidade, vem sendo amplamente assinalado. O que parece interessar agora, salienta Joel Birman (2001) "é a estetização da existência e a inflação do eu, que promovem uma ética oposta à do sofrimento" (pp. 248-249). Essa cultura do evitamento da dor indica uma espécie de precariedade da atividade psíquica, na qual o espaço para a reflexão sobre o sofrimento encontrava abrigo e possibilidade de elaboração. No lugar dessa reflexão, observa-se atualmente um imperativo constante de superação imediata de todo sofrimento, como se as marcas das dores da vida não pudessem mais encontrar uma inscrição psíquica, ficando destinadas a uma inscrição corporal.

Essas considerações teórico-clínicas servem aqui à minha intenção de demonstrar que a clínica da anorexia e da bulimia coloca em evidência a prevalência atual de certos modos de funcionamento psíquico que, não só se encontram presentes também em outras patologias, como parecem amplamente habitar a cultura contemporânea.

Se o objetivo deste artigo, conforme enfatizei no início, é uma tentativa de reflexão sobre a participação da função alimentar na sua relação com o corpo e com os ideais nas vicissitudes do mal-estar contemporâneo, certamente não é com o intuito equivocado de interpretar os movimentos sociais a partir de características psíquicas dos agentes desses movimentos. Muito pelo contrário, a intenção aqui é tentar refletir sobre os modos como a ordem simbólica e política do social torna-se a condição de possibilidade para a emergência de subjetividades que privilegiam certos funcionamentos psíquicos e não outros, também possíveis.

Assim como nos ensina a clínica da anorexia e da bulimia, mais do que o modelo da neurose, parece ser o modelo da perversão aquele que pode nos ajudar a compreender melhor os desdobramentos psíquicos desse privilégio do corpo na cultura e na clínica contemporânea. É justamente no texto de Freud (1927/1991) sobre o fetichismo, que o mecanismo da recusa da castração ganha o centro da cena, juntamente com a clivagem do ego.2 Ora, na clínica contemporânea esses mecanismos têm ocupado lugar de destaque nas estratégias empregadas para se lidar com a angústia - o afeto dominante de nossa época.

Essa constatação me permite supor que o corpo idealizado, elevado à categoria de fetiche, parece servir de forma privilegiada como alvo do ideal de completude e perfeição veiculado na contemporaneidade. Abrigando o fantasma de indestrutibilidade do corpo, é o terror do envelhecimento e da morte o negativo que sustenta a lógica perversa do culto ao corpo e à imagem, em que aquilo que se recusa parece ser justamente a vulnerabilidade inerente à existência humana (Fernandes, 2009).

A clínica psicanalítica da anorexia e da bulimia, ao colocar em evidência a fetichização do corpo, o apego ao ideal e a amplitude do mecanismo da recusa e da clivagem, revela sua potencialidade para engendrar uma contribuição propriamente psicanalítica a respeito das vicissitudes do mal-estar contemporâneo. Não se pode deixar de notar que a imagem da anorexia e da bulimia vem sendo amplamente evocada como modelo do mal-estar atual.

A qualificação de modelo convém aqui à medida que Freud emprega igualmente a palavra Model e a palavra Vorbild para designar tudo aquilo que tem o valor de protótipo (bild = imagem e forma). Sendo assim, o protótipo da anorexia e da bulimia, ou melhor, a imagem da anorexia e da bulimia nos será útil ainda a fim de trazer para a discussão alguns questionamentos a respeito da participação da alimentação nas formas de expressão do sofrimento atual.

 

O corpo sob controle

Para as jovens anoréxicas, possuir um corpo magro é uma espécie de exaltação e de satisfação que possibilita sentimentos de onipotência e de invulnerabilidade. O controle exercido sobre o corpo parece indicar que ele é vivido permanentemente como lugar de risco e precisa estar submetido ao discurso higienizador da medicina e às regras de bem-estar apregoadas, insistentemente, pela mídia.

A variedade dos problemas alimentares sugere ainda que uma verdadeira psicopatologia da alimentação cotidiana vem ocupando o cenário contemporâneo. A preocupação com a alimentação, componente importante do culto ao corpo na atualidade, vem assumindo novas facetas psicopatológicas. Recentemente tem sido enfatizado que a busca exagerada por uma dieta correta e saudável pode se transformar em um distúrbio alimentar de contornos nitidamente obsessivos, batizado pelo médico americano Steven Bratman de "ortorexia nervosa".

Particularmente a imagem clínica da anorexia é aquela que subverte, negativando a ordem da linguagem alimentar que se tornou dominante em nossa sociedade da abundância. Nunca se falou e se pensou tanto em alimentação como nos últimos tempos. Um novo clichê surge no cenário contemporâneo: comer ou não comer, eis a questão! As anoréxicas e bulímicas ocupam aí lugar de destaque ao lado das outras formas de expressão psicopatológicas que também envolvem a alimentação.

Entretanto, as jovens anoréxicas e bulímicas do cenário atual não buscam legitimar seu sofrimento por meio do reconhecimento e inscrição no discurso médico (como faziam as histéricas de outrora), mas, ao contrário, buscam afirmar suas patologias como um "estilo de vida".3 Nesse sentido, não se pode deixar de ver aí uma semelhança com as jovens jejuadoras da Idade Média que reagiam ao mundo patriarcal dominante. Trata-se hoje de uma forma de resistência e comunicação? Resistência a quê? O que querem comunicar? Por que a alimentação vem adquirindo lugar de destaque no cenário contemporâneo?

A meu ver, a preocupação com a alimentação tem se convertido no fetiche privilegiado do controle do corpo na atualidade. É o corpo fetichizado que parece servir de estandarte ao projeto higienizador e totalitário de controle da existência humana na contemporaneidade. Conforme ressaltou Hannah Arendt (2000), uma das formas do totalitarismo é a tentativa de automatizar e padronizar a existência humana. Ora, atualmente, tudo precisa ser cuidadosamente controlado, inclusive o afeto e o tempo. A lógica da exterioridade responde à exigência de eficácia mercadológica; o sujeito eficiente é aquele que não se deixa perturbar pelos seus afetos e aproveita produtivamente seu tempo. Talvez não seja um mero acaso se na psicopatologia contemporânea é justamente o eixo controle-descontrole que caracteriza a prevalência da lógica perversa, e também da lógica aditiva nas formas de apresentação do sofrimento atual. Isso é evidente na anorexia e na bulimia, nas toxicomanias, na síndrome do pânico, nos transtornos obsessivo-compulsivos e ainda na variedade das condutas impulsivas.

Se não se trata aqui de atribuir à anorexia e à bulimia uma causalidade cultural, uma vez que parece estar claro a multifatorialidade etiológica dessas patologias, trata-se, no entanto de tentar entender de que modo a cultura contemporânea atua como favorecedora e mantenedora de certos modos de funcionamento psíquico, privilegiando a emergência de determinadas patologias e não de outras.

Ora, a clínica psicanalítica reflete de forma exemplar que as mudanças recentes em nossa sociedade parecem impor novos destinos pulsionais, interferindo diretamente em nossa economia libidinal. Assim, parecem favorecer a emergência de patologias que colocam em evidência a lógica do além do princípio do prazer, que ultrapassa em muito o modelo da neurose. Sem dúvida, a clínica psicanalítica da anorexia e da bulimia salienta de forma exemplar a amplitude dessa lógica. As astuciosas manobras empregadas por nossas jovens anoréxicas e bulímicas para manter o corpo sob controle parecem indicar justamente que a vida pulsional acaba se constituindo como uma ameaça para o ego.

Assim, para finalizar diria apenas que para a teoria freudiana o registro do pulsional aponta para a imprevisibilidade do psíquico, regido pela trama da linguagem, simbolicamente construída e reconstruída a partir da alteridade. É justamente nesse sentido que a psicanálise, ao conceder à transferência um funcionamento propriamente epistemológico, assinala ainda à clínica psicanalítica sua função especular. Isto é, sua fecunda potencialidade para funcionar como espelho da cultura, refletindo o que emerge na atualidade à procura de uma formulação por meio da qual o mal-estar possa, enfim, habitar a linguagem e ser partilhado.

 

Referências

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Correspondência:
Maria Helena Fernandes
[Instituto Sedes Sapientiae]
Rua Dr. Diogo de Faria, 1087, cj. 208
04037-030 São Paulo, SP
Tel: 11 5083-3892
fernandes. mh@terra.com.br

Recebido em 19.9.2011
Aceito em 17.10.2011

 

 

1 Texto elaborado no contexto do Programa de Pesquisa - Marcas corporais auto-infligidas (tatuagens, piercings e escarificações) à luz do laço social contemporâneo - Acordo Internacional capes/cofecub (Projeto 609/08).
2 Sobre a recusa e a clivagem remeto o leitor ainda aos textos de "Freud: Esboço de psicanálise" (1940/1992) e "A clivagem do ego nos processos de defesa" (1938/1995a).
3 Existem ainda hoje sites, blogs e grupos de discussão na Internet dedicados a estimular a anorexia e a bulimia entre os jovens. Recusando o caráter psicopatológico desses quadros, veicula-se nesses sites a afirmação dessas patologias como um estilo de vida. São divulgadas "dicas" de dietas ultra-radicais e conselhos de como enganar os pais para que eles não percebam o problema. Estimula-se ainda a troca de experiências sobre jejuns prolongados (na linguagem dos blogs - no food) e o uso de diuréticos, laxantes, hormônios e medicamentos para emagrecer.