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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.45 no.4 São Paulo out./dez. 2011

 

ARTIGOS TEMÁTICOS: CORPO

 

Estranho eu1

 

Strange self

 

Extraño yo

 

 

Miguel Calmon du Pin e Almeida2

Membro efetivo da Sociedade Brasileira de Psicanálise do Rio de Janeiro SBPRJ

Correspondência

 

 


RESUMO

Intrusão e estrangeiridade se articulam na vivência de estranhamento do eu. A partir da reflexão de Jean Luc Nancy no texto O intruso, em que examina e metaforiza sua vivência de estranhamento a partir de sua experiência como transplantado de coração, o autor propõe alguns desdobramentos e consequências sobre o preconceito.

Palavras-chave: intrusão; estrangeiridade; estranhamento do eu; preconceito.


ABSTRACT

Intrusion and foreignness intertwine in the experience of estrangement from the self. From the considerations of Jean Luc Nancy, in his text “The Intruder “, in which Nancy examines and reflects on his experience of estrangement by creating a metaphor concerning his being the subject of a heart transplant, the author proposes a few developments on prejudice and its consequences.

Keywords: intrusion; foreignness; estrangement from self; prejudice.


RESUMEN

La intrusión y la extrañeza se articulan en la experiencia del distanciamiento de sí mismo. De la reflexión de Jean Luc Nancy, en su texto “El Intruso”, en la cual examina y metaforiza su vivencia de distanciamiento a partir de su experiencia como trasplantado de corazón, el autor propone una serie de implicaciones y consecuencias sobre el prejuicio.

Palabras clave: intrusión; extrañeza; distanciamiento de si mismo; prejuicio


 

 

Que estranho eu!3

Todo e qualquer preconceito é eu!

Que forma feia e incorreta de dizer alguma coisa em português! "É eu?", perguntarão os que estranharem o uso da língua. E certamente, dentre todos aqueles que amam nosso idioma, alguns sugerirão formas mais cultas e menos estranhas de dizer o mesmo. Não doerão aos nossos ouvidos e nos parecerão mais familiares e corretas. Todo e qualquer preconceito tem a ver com um eu! Todo e qualquer preconceito diz respeito ao eu! Todo e qualquer preconceito envolve um eu!

Pronto! Assim fica melhor e todos estaremos satisfeitos e compreendendo o que se trata de tratar.

Mas, por outro lado, lhes advirto que, ao agirmos assim, deixaremos de fora o mais importante daquilo que nos é estranho, estrangeiro, e não trataremos do que viemos aqui tratar. Deixaremos de fora a estrangeiridade do estrangeiro: seu caráter de intrusão, como nos diz Jean Luc Nancy (2000) em O intruso. Aculturaremos o estrangeiro, ele nos parecerá familiar, sem sotaque, e não nos agredirá mais com aquilo que nos informa sobre algo para lá de nós mesmos e que não se esgota ou reduz a mim. Seguindo Nancy, estrangeiro e intrusão necessitam um do outro para verem realizada a sua potência de alterar. "É preciso que haja o intruso no estrangeiro, sem o que ele perde sua estrangereidade" (2000, p. 11).

O que vem de fora de mim, não sou eu e por isso me é estranho; não fala minha língua e fere meus ouvidos como um bárbaro com seus sons estranhos. Acolher o estrangeiro significa acolher também sua intrusão. Nesse sentido, o estrangeiro não cessa de chegar, insistentemente, inapropriadamente, inadequadamente, estrangeiramente, de dentro e de fora de mim. O mais frequente é não querer acolhê-lo, rejeitá-lo, corrigindo-o e apagando, no limiar, sua estrangereidade.

Dizer, portanto, "todo e qualquer preconceito é eu", é uma forma de manter a tensão de uma intrusão estranha ao eu, uma força do que exige estar constantemente sendo corrigido e, ao mesmo tempo, o coração do estranhamento onde eu me realizo e sou.

Todo e qualquer preconceito tem a ver com identidade e diferença; implica reconhecimento e recusa de identidade e diferença, uma vez que somente poderemos reconhecer a diferença se soubermos da identidade; somente poderemos reconhecer a identidade se soubermos da diferença. De outro modo é a pura diferença ou a pura igualdade que, como tal, não se reconhecem nem a si mesmas nem à outra. Não há estranho, não há estrangeiro, não há nem eu nem outro.

"Que estranho eu!" (p. 35), ao mesmo tempo, idêntico e diferente de si mesmo.

Mas, é necessário perguntar, esse "eu" sempre esteve aí? Sempre foi "eu"?

"Uma estrangereidade se revela ‘no coração’ do mais familiar" (p. 17), nos dirá Jean Luc Nancy. No lugar do coração do eu, um outro. O coração de um outro, outro de si mesmo e do outro, mas um outro, não um eu. Mas se um outro está no lugar do coração do eu, o que havia antes do outro? O que seria mais interior ao eu, seu fundamento, seu chão?

Há um intruso em mim, e eu me torno estrangeiro a mim mesmo. ...
Mas tornar-se estrangeiro a mim mesmo não me aproxima do intruso. Pareceria, ao contrário, mais uma lei geral da intrusão: jamais houve uma só intrusão: desde que uma é produzida, ela se multiplica, ela se identifica em suas diferenças internas renovadas. (Nancy, 2000, pp. 31-32)

Filósofo francês nascido em 1940, Jean Luc Nancy, no final dos anos 1980, é submetido a um transplante de coração. Do estranhamento de seu coração que falha ao viver com o coração de outro; da metaforização desta experiência do viver com o coração de um outro, em 2000, Nancy publica O intruso. A partir dessa experiência pessoal de transplantado, se interroga sobre as condições, as transformações e os avanços tecnológicos necessários a fim de que a vida se prolongue. Reflete acerca dos sentidos que se descolam da experiência de viver do coração de um outro (em seu caso, de uma mulher negra e dez anos mais jovem do que ele. Que repercussões teria isso sobre um homem francês, branco e dez anos mais velho do que aquele coração?); pergunta o que é coração, é nele que reside o mais pessoal de cada um de nós? Discute o "eu" e sua materialidade. Para evitar a rejeição de um órgão estranho ao seu e, consequentemente, para sobreviver ao transplante é necessário o desenvolvimento de uma técnica, a qual os médicos chamarão "antihumana", que trata de matar a própria resistência do sujeito, matar a sua própria identidade imunitária, de forma a que ele possa tolerar o órgão estranho. Identidade e imunidade se relacionam mutuamente: quanto mais diminui uma, mais diminui a outra.4

O texto de Nancy se inscreve na tradição dos textos que abalam uma das mais fortes crenças ocidentais acerca do sujeito: a de que ele é substância, uma coisa que possui uma essência própria, interna, interior, lhe define singularmente. O intruso nos afirma que seremos eternamente, por constituição, estrangeiros a nós mesmos. O eu é arranjo de muitos outros em mim, em meus muitos "mins". Eus múltiplos. Eus coletivos, à medida que no grupo social ao qual cada um de nós pertence, nascemos e somos nascidos de outros. Por isso pertence ao "eu" a possibilidade de se reconhecer e de se estranhar. Sem descanso.

A identidade esvaziada de um "eu" não pode mais descansar em sua simples adequação (em seu "eu = eu").
Há um intruso em mim, e eu me torno estrangeiro a mim mesmo.
(Nancy, 2000, p. 39)

Jean Luc Nancy conclui seu ensaio dizendo:

O intruso não é um outro senão eu mesmo e o homem ele mesmo. Não é um outro senão que o mesmo que nunca termina de alterar-se, ao mesmo tempo aguçado e esgotado, desnudado e superequipado, intruso no mundo assim como em si mesmo, inquietante ímpeto do estranho...
(Nancy, 2000, p. 45)

O preconceito diz respeito à recusa do reconhecimento da intensa e inequívoca presença do outro em mim, sempre outro de mim; à recusa de que me constituo na e pela presença de um outro. Recusa e violência diante de eu ser eu e o estrangeiro frente ao qual sou, e que por isso exige a destruição do outro. O desejo de destruição do outro, da incessante estrangeiridade do outro, seja em que nível for, é a marca do preconceito. No preconceito não há escolha. Há desejo de destruição e de anulação do outro.

Por exemplo, ao desejar se repetir para sobreviver, toda marca identificatória, se tomada como coisa, é possibilidade de preconceito. Aquilo que os etologistas chamam de imprinting, marcas identificatórias a partir das quais me reconheço e sou, visa um espelho onde o modelo se repete e se reafirma. O modo com que acolherão em si mesmas as transformações advindas do outro (seja o outro de si mesmo ou o outro do outro), é que diferenciará preconceito de escolha. Ao pretender que essas marcas sejam coisa e que para manter sua coesão e consistência não possam ser transformadas pelo contato com a realidade, o sujeito fica colado à miragem e vertigem de um eu que não se sustenta e tem que destruir o outro, o inimigo, para manter a ilusão de sua coesão. E o eu não se sustenta como coisa, não porque esteja sendo atacado ou aviltado pelo intruso, mas porque não é coisa. Somos seres de relação, de tensão e conflito, como as esculturas de vento e cor de Anish Kapoor.

Ao preconceito se opõe a responsabilidade, não no sentido da assunção das culpas pelo passado, pelo acontecido. Envolve isso, mas não se esgota aí. A responsabilidade é a atitude que tomo ao reconhecer como próprio a mim o problema que se coloca diante de mim, que algo do que se trata me diz respeito, mesmo quando a culpa não é minha. Responsabilidade e culpa não são a mesma coisa, nem descrevem o mesmo fenômeno. O fato de um homem matar um outro homem seja lá pela razão que for, por exemplo. Seria forte dizer que somos todos culpados. Lembro sempre Helena Besserman Vianna que dizia que essa atitude mais isenta a todos de envolvimento do que qualquer outra coisa. Não sou culpado por isso, ou, pelo menos, há que distinguir níveis de comprometimento diferenciados. Mas o problema que um assassinato propõe me diz respeito, me afeta e me altera. Ao homem, à espécie humana, pertence a possibilidade de matar, seja em nome da ganância, da vaidade, do poder ou do preconceito. Isso questiona a humanidade em mim, em uma espécie de silogismo ético. Eticamente falando, quando um homem mata, todos matamos.

Não por culpa, mas por responsabilidade. A responsabilidade é o processo que descreve o modo pelo qual acolho em mim a intrusão desse estrangeiro, com que aceito pertencer a mim, como homem, o problema que ele suscita.

Não existe a possibilidade de vida humana sem as nossas marcas identitárias. Elas são a evidência da intrusão do outro em mim, por mais que nós nos esqueçamos disso. Jean Luc Nancy dirá que nos esquecemos dessa intrusão até o coração ratear. Eles são fotografias, instantâneos que nos retratam em nossa provisoriedade, em nossa precariedade, na ilusão momentânea do que não cessa jamais de se constituir. Nada podemos fazer contra elas. Nossa discussão e nosso empenho tratam da responsabilidade de cada um de nós a esse respeito, a respeito disso.

E como todo e qualquer esforço de superação envolve arte e poesia, divido com vocês um poema de Carlos Drummond de Andrade (1984) onde a experiência do convívio com nossos eus múltiplos e coletivos se expressa:

VERDADE

A porta da verdade estava aberta,
mas só deixava passar
meia pessoa de cada vez.

Assim não era possível atingir toda a verdade,
porque a meia pessoa que entrava
só trazia o perfil de meia verdade.
E a segunda metade
voltava igualmente com meio perfil.
E os meios perfis não coincidiam.

Arrebentaram a porta. Derrubaram a porta.
Chegaram ao lugar luminoso
onde a verdade esplendia seus fogos.
Era dividida em metades
diferentes uma da outra.

Chegou-se a discutir qual metade era mais bela.
Nenhuma das duas era totalmente bela.
E carecia optar. Cada um optou conforme
seu capricho, sua ilusão, sua miopia.
(Andrade, 1984, p. 41)

 

Referências

Andrade, C. D. (1984). Corpo, Novos Poemas. Rio de Janeiro: Record.         [ Links ]

Nancy, J. -L. (2000). Llntrus. Paris: Galilée.         [ Links ]

 

 

Correspondência:
Miguel Calmon du Pin e Almeida
[Sociedade Brasileira de Psicanálise do Rio de Janeiro SBPRJ]
R. Carlos Gois, 375 /310 e 311 | Leblon
22440-040 Rio de Janeiro, RJ
Tel: 21 2511-1744
mcalmon.trp@terra.com.br

Recebido em 17.8.2011
Aceito em 15.9.2011

 

 

1 Trabalho apresentado na mesa sobre Preconceito, com a participação do Prof. Bóia Efraime (Moçambique), Joel Rufino, Silvio Guindane e Miguel Calmon du Pin e Almeida, no Encontro da Comunidade de Países de Língua Portuguesa, de 18 a 20 de novembro de 2010, na Sociedade Brasileira de Psicanálise do Rio de Janeiro.
2 A tradução utilizada nas citações de Jean Luc Nancy, em L’Intrus, é de Pricila C. Laignier, com a colaboração de Ricardo Parente e Susan Gugenheim, com a revisão técnica de Aluisio Pereira de Menezes, todos pertencentes à Formação Freudiana. As páginas citadas correspondem à edição original. (L’Intrus, Éditions Galilée, 2000)
3 Caso o sujeito mantivesse sua identidade rejeitaria o órgão estranho uma vez que seu sistema imunológico não aceitaria um corpo que lhe é estranho. Para aceitá-lo, há que se "matar sua identidade imunitária", para torná-lo capaz de aceitar o que lhe é estranho. Assim é necessário diminuir a identidade para que diminua a imunidade e assim aceitar um coração alheio.