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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.45 no.4 São Paulo out./dez. 2011

 

ARTIGOS TEMÁTICOS: CORPO

 

Acontecimentos do corpo / notícias da alma

 

Events of the body / News of the soul

 

Eventos del cuerpo / Noticias del alma

 

 

Aida Ungier

Membro efetivo da Sociedade Brasileira de Psicanálise do Rio de Janeiro SBPRJ. Mestre em Teoria Psicanalítica pelo Instituto de Psicologia da UFRJ

Correspondência

 

 


RESUMO

A autora propõe uma reflexão teórica a respeito das vicissitudes da simbolização nas doenças psicossomáticas, usando dois casos de angioedema como questionamento diagnóstico e endereçamento da cura.

Palavras-chave: psicossomática; simbolização; espaço transicional; eu-pele; histeria; fronteiriço.


ABSTRACT

The author proposes a theoretic reflection on the fluctuations of symbolization in psychosomatic diseases, making use of two angioedema cases to present a diagnostic discussion and the choice of treatment.

Keywords: psychosomatic; symbolization; transitional space; skin ego; hysteria; borderline.


RESUMEN

La autora propone una reflexión teórica sobre las vicisitudes de la simbolización, en las enfermedades psicosomáticas, utilizando dos casos de angioedema como cuestionamiento diagnóstico y direccionamiento de la cura.

Palabras clave: psicosomática; simbolización; espacio transicional; yo-piel; histeria; fronterizos.


 

 

 

Para Áurea que me apresentou a Drummond, em sua versão poética, da cartografia do Corpo.

 

I. Introdução

Meu corpo não é meu corpo,
é ilusão de outro ser.
Sabe a arte de esconder-me
e é de tal modo sagaz que a mim de mim ele oculta.
(Carlos Drummond de Andrade, 2004, p. 13)

Desde seu nascimento, interessada na enigmática construção da subjetividade, a psicanálise contemplou o corpo para além do mero invólucro somático daquilo que conhecemos como eu. A decifração freudiana do enigma das histéricas, no final do século XIX, promoveu uma desconstrução do que se apresentava como sintoma. Ou seja, a resistência dessas perturbadas criaturas ao saber médico afirmava uma verdade, igualmente perturbadora para a medicina: o corpo ultrapassava o organismo. Nossos corpos teriam sido desnaturados pela fala, transformando o instinto em pulsão, como Freud demonstrou ao longo das décadas seguintes. Sendo assim, a palavra se apresenta como a via régia para dar conta da insistência pulsional que nos acossa sem cessar. Com determinação e coragem, ele foi provando essa hipótese desde os estudos sobre as afasias (1892/1981), passando pelo Projeto (1895/1974c), pelos sonhos (1900/1974b), pelos chistes (1905/1974a), atos falhos (1905/1974a) e, naturalmente, pelos sintomas. Fixar experiências, recordar, recalcar, são atividades que articulam corpo e linguagem. A partir desse enlace nos constituímos como sujeitos e podemos conferir sentido ao vivido, criando os laços sociais. Dito de outra maneira, quando faltam palavras, sobram sintomas. O corpo, quase sempre quieto, se torna eloquente. Logo, desde o alvorecer de nosso ofício corpo e linguagem se engendram, engendrando a subjetividade.

O engenho de Freud levou-o a tomar a histeria como um estranho dialeto feito de dores, paralisias, cegueira, impotência, frigidez, provas inequívocas da eloquência somática. Esses sinais revelavam o não-dito sobre o desejo. Se a pulsão insiste e não é metabolizada seja pela satisfação sexual ou agressiva, direta, seja pela palavra, o preço a pagar é caro. O que sai do corpo como demanda de trabalho psíquico retorna ao corpo como uma espantosa satisfação que causa estranheza aos menos avisados em virtude do sofrimento que a acompanha, pois o gozo que aí se manifesta é mortífero.

Desvendar esse segredo permitiu registrar o percurso que leva do "saco de órgãos" que emerge do útero até a complexa experiência de ter um corpo. Essa metamorfose é consequência da constante libidinização do corpo do bebê, desde os primeiros contatos com o outro, em geral a mãe que, por seu turno, o apresenta ao Outro, a Lei. Esse terceiro favorece a discriminação entre ambos, viabilizando a fala e o nascimento da subjetividade. Agora, aquele "projeto de sujeito" passa a ter um corpo que é falado, mas que fala, também, numa integração entre físico e psíquico que permite não só o reconhecimento do corpo próprio como ser aquele que o habita.

Essa jornada, aparentemente natural e simples, não se faz sem inúmeras vicissitudes. Aqueles que não conseguiram atravessá-la sem sequelas, nos procuram em busca de uma segunda chance, posto que, se alguns dentre nós são bem sucedidos, outros, nem tanto e, outros ainda, revelam em seus "acontecimentos de corpo" como que vestígios de hecatombes na alma. Esse arrazoado é apenas mais uma reflexão, dentre tantas, sobre a matéria. Meu propósito não é desfiar uma exegese sobre o assunto, porém aproximar autores selecionados por absoluta preferência pessoal que, todavia, guardam a peculiaridade de ter contribuído de forma original para contemplarmos a doença psicossomática, utilizando distintos referenciais teóricos. Tentarei não empobrecer suas valiosas contribuições, amalgamando-as. Ao contrário, pretendo valorizar a diferença como uma profícua estratégia para nos defender das emboscadas escondidas nos embates transferenciais-contratransferencias vividos na clínica.

 

II. ... não tenho palavras

a palavra é disfarce de uma coisa mais grave, surda-muda, foi inventada para ser calada. Em momentos de graça, infrequentíssimos, se poderá apanhá-la: um peixe vivo com a mão. Puro susto e terror.
(Adélia Prado, 1986, p. 30)

Joana e Maria procuraram-me, no intervalo de um mês, trazendo, para minha surpresa, a mesma queixa: angioedema.1 O sintoma que, teimosamente, não se submeteu aos esforços da medicina, revelava uma estranha recusa em acatar limites: os líquidos não se deixavam barrar pela parede do vaso. O corpo deformado demonstrava, a um só tempo, a força do conteúdo, que não podia ser contido, esparramando-se pelos interstícios; e a fragilidade do continente que, incapaz de utilizar sua trama como um rico espaço de troca, enlouquecidamente, permitia que escapasse aquilo que era de sua competência proteger.

Aqui, reside minha questão: refletir sobre os encontros e desencontros que levam o corpo a se rebelar contra a fisiologia, perturbando o espaço que lhe foi determinado pela anatomia.

Eis o dilema de Joana e Maria: manter o afeto fluindo entre as margens da palavra. Joana casou-se grávida aos 15 anos. Seu companheiro possuía uma característica que se mostrou essencial em dez anos de convivência: era maternal tanto com Joana quanto com o menino que nasceu. Ele encarregou-se dos cuidados domésticos e ela do sustento da família. Separaram-se quando Joana percebeu que tinha, no marido, um grande amigo, a única pessoa em quem confiava, sem reservas. Carecia apaixonar-se. Três anos após a separação o rapaz faleceu. Seu atual companheiro em nada lembra o primeiro. Trata-se de um homem de negócios, bem sucedido, autoritário, competidor voraz de sua atenção, criando enorme dificuldade para o relacionamento entre Joana e o filho, hoje com dezesseis anos. A primeira crise de angioedema ocorreu há um ano, após uma cena de ciúmes em relação ao rapaz. Joana deveria escolher um dos dois. Qualquer que fosse a escolha, ela estava perdida. Escolheu não escolher. Numa decisão salomônica às avessas, tornou-se o bebê dividido ao meio. A palavra-envelope que envolveria a dor desse abortamento, desgraçadamente não foi apanhada. Como um peixe vivo escapuliu, restando o susto e o sintoma: a impossibilidade em dar continência aos líquidos pelos vasos.

Maria apresenta episódios regulares de angioedema desde criança. Nunca duvidou de sua etiologia emocional, estando na terceira experiência de análise. Procurou-me porque nos últimos meses a doença que lhe trazia apenas transtornos estéticos, passou a atingir a mucosa da boca e da laringe. Ela, agora, estava às voltas com a ameaça de morte, fantasma que a acompanha ao longo de seus quarenta e cinco anos, na amargura da mãe melancólica, com a qual mantém uma relação de ódio e submissão, que procura dissimular por meio da resignada assunção: "ela é minha mãe".

Histeria ou fenômeno psicossomático? Eis a questão. Para Maria e Joana faltam palavras, como se diz diante do horror: "não tenho palavras".

 

III. A cura pela palavra

Meu corpo, não meu agente,
meu envelope selado,
meu revólver de assustar, tornou-se meu carcereiro,
me sabe mais do que eu sei.
(Carlos Drummond de Andrade, 2004, p. 13)

Sabidamente, os fenômenos psicossomáticos têm sido permanente objeto de preocupação da medicina. O avanço vigoroso do saber médico, a partir do século XIX, afirmando a doença como fenômeno anátomo-clínico, acentuou a divisão entre soma e psique. O somático tratado pela medicina e o psíquico deixado aos cuidados da literatura. A psicanálise retomou, para a ciência, o que tinha sido excluído pela medicina ao propor uma teoria que articula o inconsciente à subjetividade, demonstrando o sentido inconsciente de tudo aquilo que se refere ao humano.

Freud admitiu ser o eu, antes de tudo, um eu-corporal. O conceito de pulsão aponta para um limite entre o somático e o psíquico, uma exigência de trabalho imposta ao psíquico em virtude de sua ligação com o soma. Ele examinou essa delicada parceria ao tratar das neuroses atuais, da conversão histérica e ao descrever a influência da doença orgânica na distribuição da libido, no texto de 1914, "Sobre o narcisismo: uma introdução". Nesse caso, o investimento libidinal é retirado dos objetos retornando ao eu. No mesmo texto, aponta que, na hipocondria, haveria um represamento da libido no eu, modificando-o a partir de um determinado nível de acúmulo. Enfim, ele apresenta um conceito fundamental: uma nova ação psíquica deve ser efetuada para que ocorra a introdução do narcisismo no domínio do auto-erotismo, com o consequente surgimento do eu.

Lacan, relendo Freud, entende que essa "nova ação" se desdobra em um fenômeno no qual o bebê, diante do espelho, jubilosamente se reconhece na imagem refletida. Esse reconhecimento se concebe a partir de um batismo: um nome lhe é conferido. A imagem tem uma moldura: a palavra. Eis a nova ação psíquica: o simbólico enquadra o imaginário. O pai parteja o bebê das águas da mãe. Ele vai mais adiante, em sua defesa da importância fundadora da palavra, ao afirmar que o inconsciente se estrutura como uma linguagem. A lei do inconsciente é a lógica do significante. Dela, nenhuma ação humana está excluída: os significantes ocupam posição privilegiada sobre o significado e se articulam formando uma cadeia - um significante se remetendo a outro significante, surgindo nesse entremeio o sujeito. Dessa operação escapa sempre um resto que resiste à significantização, o objeto a. Segundo essa lógica o sintoma é uma formação do inconsciente, com uma estrutura de linguagem onde ocorre uma substituição (metáfora), passível de deslocamento e modificação, a partir de uma interpretação.

Na teoria lacaniana (1988/1964), o sujeito aparece primeiro no Outro, alienado ao Outro, porque o primeiro significante, o traço unário, surge no campo do Outro. Se, por definição, um significante apresenta o sujeito para outro significante, isso tem por efeito a afânise do sujeito. O primeiro significante se aproxima do que Freud descreveu como recalque originário, ponto de atração por onde serão possíveis todos os demais racalques posteriores. Sendo assim, no intervalo entre dois significantes vigora o desejo do sujeito, na experiência do discurso do Outro, do primeiro Outro com quem ele tem que lidar: a mãe. "É no que seu desejo está para além, ou para aquém do que ela diz, do que ela intima, do que ela faz surgir como sentido, é no que seu desejo é desconhecido, é nesse ponto de falta, que se constitui o desejo do sujeito" (Lacan, 1988/1964, p. 207).

O desejo aponta a liberdade, a separação, por outro lado, não há sujeito sem que, em algum lugar, ocorra a sua afânise. É nessa divisão fundamental, que se institui sua dialética: quando ele aparece em um lugar como interpretação, como sentido, em outro ele se manifesta como fading, como desaparecimento. Ao contrário da histeria, os fenômenos psicossomáticos apontam para uma dificuldade no caminho da simbolização, do sentido. A letra é o rastro do real sobre o corpo do sujeito, a marca da indiferenciação no campo do Outro. Logo, alienação e separação são operações fundamentais no processo de subje-tivação, responsáveis por suas vicissitudes, incluindo os sintomas psicossomáticos (Lacan, 1988/1964).

 

IV. As vicissitudes da simbolização

Meu corpo apaga a lembrança
que eu tinha de minha mente.
Inocula-me seus patos,
Me ataca, fere e condena por crimes não cometidos.
(Carlos Drummond de Andrade, 2004, p. 13)

Um novo interlocutor é convidado para este encontro. Ainda que "não falem a mesma língua", podemos supor um diálogo imaginário entre Lacan e Winnicott, por meio de suas contribuições para a teoria e a técnica psicanalíticas. Se Lacan nos apontou a importância do jogo entre alienação e separação na constituição da subjetividade, Winnicott, graças às suas reflexões sobre a relação psique-soma, também, favoreceu a compreensão dos pacientes psicossomáticos. Segundo ele, para que um bebê possa afirmar-se como "eu sou" - eu existo, minha pele me delineia, me dá continência e me coloca em comunicação com o universo que me cerca - é preciso que ele alcance um estado de personalização. Tal estado só é possível se, ao longo de seu desenvolvimento, o bebê se espelhou no olhar materno e aí se reconheceu (1967); se ao ser tocado, tratado e acariciado, descobriu, nesse manejo, a delicada cartografia de seu corpo. Diz Winnicott: "O corpo, com seus limites interno e externo, representa o cerne do sujeito" (1949/1978, p. 411) - propondo uma analogia ao conceito freudiano de eu corporal. Para ele, o olhar materno é o precursor do estádio do espelho descrito por Lacan (1949/1990).

Segundo Winnicott (1953/1975a), para que esse processo se desenrole com sucesso, é necessário que o meio se ofereça para satisfazer às necessidades do bebê com tal afinação, que ele imagine ter criado o objeto quando na verdade este lhe foi oferecido. Trata-se de um paradoxo que não deve ser questionado - criou ou encontrou o objeto? - porém, aceito. Em virtude da crescente atividade motora e cognitiva do bebê e do progressivo desvio do olhar materno para outros interesses, esta afinação sofre reveses, que são superados pela atenção cuidadosa do meio. No entanto, esses encontros e desencontros propiciam o reconhecimento, pelo bebê, de que as necessidades não são satisfeitas graças a sua onipotência, existe algo que responde por esta satisfação. Nesse momento cria-se, ao mesmo tempo, o eu e o objeto.

Winnicott (1953/1975a) afirma que, ao longo da aventura que vai da dependência absoluta do meio em direção à dependência relativa, quando já é possível discriminar o eu e o objeto, surge, progressivamente, entre mãe e bebê, inicialmente fusionados, um terceiro espaço, o espaço transicional, que marca a transição temporal entre essas duas etapas do desenvolvimento emocional. O bebê descobre/cria nesse espaço objetos que o ajudam a atravessar a perda da onipotência original, objetos estes que servem de símbolo do que foi perdido, mantendo no bebê a confiança de que aquilo que não está presente poderá ser recuperado. Portanto, a primeira tarefa da mãe suficientemente boa é manter a ilusão de que ela e o bebê constituem uma unidade; a segunda seria a desilusão, que permite a discriminação entre eu e não-eu. O espaço transicional, com o tempo, evolui, tornando-se o lugar da cultura, lugar onde eternamente serão engendrados os símbolos. Se o meio fracassar na tarefa de criar com o bebê esse espaço, essa criança ficará exposta a sérias dificuldades, pois a possibilidade de simbolizar o vivido estará impedida ou prejudicada.

Uma dessas consequências se evidencia na incapacidade para o desenvolvimento de um self integrado, onde uma psique habita um soma (Winnicott, 1949/1978). Neste caso, pode-se desenvolver uma sofisticada defesa: o pensar passa a suprir a falha ambiental. Essa estratégia para lidar com o sofrimento promove uma dissociação entre o pensar e o conjunto psique-soma, cujos indicadores podem se cristalizar nos sintomas orgânicos. A eficácia dessa defesa reside em "manter separadas a disfunção somática e o conflito na psique" (Winnicott, 1964/1994a, p. 84).

Para Winnicott (1964/1994a), qualquer perturbação psíquica pode envolver um transtorno somático. Por exemplo: uma ameaça grave de desintegração estaria oculta em uma cãibra do pescoço, uma irritação insignificante da pele esconderia uma despersonalização, delírios de perseguição se confinariam ao uso de óculos escuros ou ao apertar dos olhos. Nos casos das doenças psicossomáticas, a constelação formada por médicos, psicanalistas, fisioterapeutas testemunhariam o esfacelamento do sujeito.

 

V. Da personalização ao eu-pele

O seu ardil mais diabólico
está em fazer-se doente.
Joga-me o peso dos males
que ele tece a cada instante e me passa em revulsão.
(Carlos Drummond de Andrade, 2004, p. 13)

Outro convidado se apresenta: Didier Anzieu (1989) - psicanalista de língua francesa que, todavia, do ponto de vista da teoria psicanalítica, está mais próximo da linguagem de Winnicott do que de Lacan. Ele propõe que os limites da imagem do corpo são adquiridos durante o processo de desfusão e apresentam alguma analogia com as fronteiras do eu. A instauração do eu-pele, espaço de articulação entre a psique, o corpo e o mundo externo, responde à necessidade de um envelope narcísico que assegure ao aparelho psíquico a certeza e a constância de um bem-estar de base.

O eu-pele é uma estrutura intermediária do aparelho psíquico: intermediária cronologicamente entre a mãe e o bebê, intermediária estruturalmente entre a inclusão mútua dos psiquismos na organização fusional primitiva e a diferenciação das instâncias psíquicas que corresponde à segunda tópica freudiana. (Anzieu, 1989, p. 5)

Num primeiro momento, existe a ilusão de que uma mesma pele pertence ao bebê e à mãe, pele figurativa de uma união simbiótica. Segue-se a ele, o processo de des-fusão e de acesso da criança à autonomia que leva à ruptura e à fantasia de esfacelamento dessa pele comum. Todavia, quem rasgou o envelope comum pode, também, repará-lo, pela presença tranquilizadora, a maneira de um duplo narcísico, permanentemente à disposição do bebê. O "círculo maternante" (1989, p. 69) envolve-o como um envelope externo, feito de mensagens. Ele deve se ajustar de tal sorte, que possibilite um espaço confortável ao envelope interno, à superfície do corpo do bebê, que, por sua vez, também é lugar e instrumento de emissão de mensagens.

Poderíamos aproximar o "círculo maternante" do meio suficientemente bom descrito por Winnicott, cujas funções de ilusão e desilusão possibilitam o surgimento do sujeito, graças à criação do espaço transicional? Do mesmo modo, poderíamos nos aproximar da linguagem lacaniana dizendo que, no espaço transicional, o real, o simbólico e o imaginário se entrelaçam? Trata-se de questões que nos convidam a continuar pesquisando, a fim de não pasteurizar ou empobrecer contribuições tão generosas.

O fato é que para Anzieu (1989, p. 43), ser um eu é sentir a capacidade de emitir sinais passíveis de serem captados e decodificados pelo outro. Em termos econômicos, o pensar envolve acumulação, deslocamento, descarga de energia. Sendo assim, a estrutura facilitadora do eu-pele, entremeio das trocas precoces entre o bebê e o mundo, responderia pelo surgimento da atividade do pensar. Em circunstâncias adversas, a fantasia originária de uma pele comum se transforma em fantasia secundária de uma pele arrancada e ferida ou de uma pele invulnerável.

 

VI. A flor da pele...

Meu corpo inventou a dor
a fim de torná-la interna
integrante do meu Id,
ofuscadora da luz que aí tentava espalhar-se.
(Carlos Drummond de Andrade, 2004, pp. 13-14)

Como descrevi anteriormente, o dilema de Joana e Maria residia em manter o afeto fluindo entre as margens da palavra. Segundo esses autores, o sofrimento que ambas carregam evidencia alguma catástrofe precoce que transtornou o engenho de encaminhar para o discurso, para o gesto criativo, as emoções, que nelas, transbordam em angioedema. Mesmo a assunção de Maria "ela é minha mãe" era uma reflexão puramente intelectual e o afeto não metabolizado pelo aparelho psíquico escapava, então, pelos líquidos do corpo, sufocando-a.

Winnicott comenta que

os transtornos da pele dão ênfase à membrana limitadora do corpo e, portanto, da personalidade.
Além disso, por trás deles acha-se a ameaça da despersonalização e da perda das fronteiras corporais, bem como da impensável ansiedade frente à experiência de desintegração.
(1969/1994b, p. 91)

Podemos pensar que a pele arrancada, descrita por Anzieu, se evidencia na impossibilidade em dar continência aos líquidos pelos vasos. O pensar não pode mais ser o entremeio que articula psique e soma, torna-se, apenas, uma atividade funcional e racionalizadora.

Para dar consistência a essas conjecturas, convido mais um comentador, André Green (1988), leitor rigoroso e independente do texto winnicottiano, assim como assistente crítico dos seminários de Lacan. Ele afirma que o discurso dos pacientes somatizantes, que classifica entre os "estados limites", não é uma cadeia de palavras, representações ou afetos, porém "um colar de pérolas sem fio", palavras, representações, afetos contíguos no espaço e no tempo, mas não em significado. Cabe ao observador estabelecer o elo que falta com seu próprio aparelho psíquico. Esse sentimento de continuidade foi expresso por Maria, ao término de uma sessão, durante a qual desfiou um rosário de situações em que a tônica eram os excessos: as tentativas de suicídio da mãe, a obesidade do irmão, a incapacidade do pai para colocar ordem nesse caos. Continuou falando ininterruptamente, até a sala de espera, concluindo: "vou fazer xixi". Eu respondi: "é isso, o líquido dentro do vaso". Sendo médica, deu uma gargalhada de cumplicidade com o jogo de palavras que, hoje, eventualmente usa como bordão.

Green (1988) afirma, ainda, que nesses casos, devido à precariedade do espaço transicional, logo, da formação simbólica, a confusão entre afetos, pensamentos e representações no aparelho psíquico, dificulta a produção do pensamento racional. Os afetos podem atuar como representações e, estas, como afetos. Sendo assim, a atuação (em oposição à ação específica), quer dirigida para dentro, produzindo sintomas psicossomáticos, quer dirigida para fora por meio dos acting out, é o verdadeiro modelo da mente. Ele ressalta que a atuação não está reduzida às ações. As fantasias, os sonhos, as palavras tomam a função de ação, o atuar preenche o espaço e não tolera a suspensão da experiência. Para esses pacientes nenhum conhecimento pode advir sem a experiência. A suspensão é equiparada à inércia ou a uma dependência sem esperança. A confiança básica é fundamental para a aceitação da passividade, que, neste caso, é vivida como a ameaça suprema, o total desamparo diante do fracasso do meio ambiente.

 

VII. Conclusão

Meu prazer mais refinado,
não sou eu quem vai senti-lo.
É ele, por mim, rapace,
E dá mastigados restos à minha fome absoluta
(Carlos Drummond de Andrade, 2004, p. 14)

Para Winnicott, a racionalização é uma defesa tenaz e frequente na análise desses pacientes, favorecendo o spliting que mantém a doença. Percebo que sou especialmente silenciosa com essas moças. Eventualmente sublinho alguma comunicação, perdida na caudalosa torrente de associações, assinalando: "você ouviu o que disse?" Certa vez, Maria retrucou: "Sancho Pança fazia a mesma pergunta a D. Quixote". Emocionada lembrou o poema "Sonho Impossível", tema do musical O Homem de La Mancha. Do mesmo modo, Joana comentou sobre a importância de "se ouvir". Nada do que vem dizendo é novo, todavia, ao dizê-lo, sabendo-se ouvida, o dito ganha outra dimensão: "é como se eu falasse de mim, mesma". Eu pergunto: nesses casos, funcionaria o silêncio como entremeio capaz de sustentar a ilusão de continuidade da pele, como o olhar da mãe ou o espelho para o bebê, de sorte que, ouvir-se/ser ouvido devolveria ao paciente o sentimento de integração e identidade do eu, ao afirmar-se - "sou eu que fala, eu sou"?

Partindo do pressuposto de que estamos às voltas com patologias narcísicas, não era surpreendente a dificuldade para Joana e Maria de estar só confiando que estariam na presença de alguém. Os discursos podiam ser caudalosos, porém revelavam muito pouca intimidade. Na esteira do texto de Winnicott e Anzieu, posso admitir, então, que haveria uma continuidade entre o discurso delas e meu silêncio "suficientemente atencioso", que gerava uma tessitura capaz de investir suas palavras de valor tecidual, capaz de recuperar o "eu-pele esfolado". Trata-se do espaço transicional, do fio invisível da transferência, que mantém as pérolas encadeadas formando o colar, assim como as palavras produzem o sentido. O que poderia ser descarga tornava-se comunicação, discurso, que dá continente ao vivido.

Fusão, desfusão, discriminação, espaço transicional, alienação separação, são dialetos distintos para falar do mesmo fenômeno - tornar-se sujeito, bem como das vicissitudes que acompanham essa aventura. Todos reconhecem que este jogo ocorre desde o início. Lacan, por exemplo, afirma que o bebê não nasce todo, existem os restos placentários, o objeto a. Forcluir essa operação é uma tentativa de reverter o parto. Toda a ficção que o sujeito possa engendrar sobre o desejo da mãe não dará conta desse desejo. Se a metáfora paterna for eficiente, o sujeito poderá metaforizar as ficções sobre esse desejo. Caso contrário, esse enigma funcionará como um imperativo, uma letra, uma marca no corpo. Ele só poderá gozar de seu corpo a partir dessa marca que, por outro lado, promove um ponto de amarração. Graças a esse emblema, o sujeito não sucumbe na psicose.

Decidir quanto à impressão diagnóstica desses quadros, como propus logo no início, trata-se de uma tarefa difícil, que só poderá ser respondida ao longo do processo psicanalítico. Todavia, não custa arriscar uma aposta. A articulação entre vaso e líquido estabelecida por Maria, no jogo transferencial, fala mais a favor de um sintoma histérico do que de uma colusão de significantes. O angioedema, nesse caso, seria uma metáfora e não um neologismo. Joana, entretanto, sabe que "quando não fala, incha". Seu parceiro sintomático, o namorado, é sempre a causa desencadeante. Ela se mantém imobilizada inventando meios de evitar a barra, o enquadre, a escolha. Promove o revés do parto e se esparrama nas águas da mãe.

Em ambos os casos surgiu um quadro depressivo, com nuances particulares a cada uma delas, quando os episódios de angioedema escassearam. O afeto que explodia à flor da pele ensaiava engendrar traços no aparelho psíquico. Os "sonhos possíveis" são pesadelos, a experiência ameaçadora de se deixar atravessar pela emoção impensável. Quixote e Sancho Pança têm um longo caminho a percorrer, até que os corpos reflitam uma imagem e a imagem responda por um nome, testemunha inelutável da harmonia entre continente e conteúdo: "Eu sou Joana". "Eu sou Maria".

 

Referências

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Correspondência:
Aida Ungier
[Sociedade Brasileira de Psicanálise do Rio de Janeiro SBPRJ]
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Recebido em 30.8.2011
Aceito em 31.10.2011

 

 

1 Ambas foram encaminhadas pelos médicos clínicos que as acompanhava. Submetidas a testes cutâneos, a reação imunológica aos antígenos testados foi negativa. Apesar de terem sido afastadas substâncias potencialmente desencadeadoras do edema, ele reaparecia sem que qualquer causa orgânica pudesse ser associada.