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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.45 no.4 São Paulo out./dez. 2011

 

ARTIGOS

 

Sobre o olhar do psicanalista e outras ferramentas de trabalho: novas recomendações

 

On the psychoanalyst’s look and other work tools: New recommendations

 

Sobre la mirada del psicoanalista y otras herramientas de trabajo: nuevas recomendaciones

 

 

Leda Beolchi Spessoto

Membro efetivo da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo SBPSP

Correspondência

 

 


RESUMO

A partir de recomendações técnicas realizadas por Freud aos psicanalistas, a autora examina novas possibilidades de ajustes do setting e novas ferramentas a serem consideradas em virtude de uma observação mais ampla do funcionamento mental que se desenvolveu neste século que nos separa do texto original. O olhar do analista é reconsiderado em sua importância em certas condições do trabalho psicanalítico. Inicialmente é considerado o olhar como recurso em busca de coesão para situações de desintegração. Depois a autora examina o olhar quando o paciente realiza transformações em alucinose e passa a ver o analista de modo tal que este não se reconhece. Nestas circunstâncias surge o desafio de encontrar interlocutor para o exame das diferenças, onde o modelo do analista acompanhante é proposto como alternativa ao olhar e à associação livre.

Palavras-chave: transformações em alucinose; analista acompanhante; a visão do analista; recomendações técnicas; definição.


ABSTRACT

Basing herself on the technical recommendations made by Freud to the psychoanalysts, the author examines new possibilities for adjustment of the setting and new tools to be considered, due to a wider observation of mental functioning that has developed in this century that separates us from the original text. The analyst’s perspective is reconsidered in its importance under certain conditions of the psychoanalytical work. Initially, to look at a patient is considered a resource in the search for cohesion in situations of disintegration. The author then examines the action of looking at a patient when he or she holds transformations in hallucinosis and sees the analyst in such a way that this one cannot recognize him or herself. In these circumstances, the challenge is to find an interlocutor for the examination of the differences. As such, the model of the accompanying analyst is proposed as an alternative to the eyes and to free association.

Keywords: transformations in hallucinosis; accompanying analyst; analyst’s eyes; technical recommendations; setting.


RESUMEN

A partir de las recomendaciones técnicas hechas por Freud a los psicoanalistas, el autor examina las nuevas posibilidades de ajuste de setting y nuevas herramientas para ser consideradas en virtud de una observación más amplia del funcionamiento mental que se desarrolló en este siglo que nos separa del texto original. La visión del analista es considerada importancia en determinadas condiciones del trabajo psicoanalítico. Inicialmente es considerado como recurso en busca de cohesión para situaciones de desintegración. Después la autora examina la visión cuando el paciente tiene transformaciones en alucinosis y pasa a ver al analista de tal modo que este no se reconoce. En estas circunstancias, el desafío es encontrar interlocutor para el examen de las diferencias, donde el modelo del analista acompañante es propuesto como alternativa a la visión y a la libre asociación.

Palabras clave: transformaciones en alucinosis; analista acompañante; la visión del analista; las recomendaciones técnicas; setting.


 

 

Introdução

Neste trabalho pretendo reexaminar algumas recomendações de Freud aos que exercem a psicanálise com o intuito de considerar variáveis que na época de suas postulações não foram incluídas. Tomo como modelo a própria liberdade que Freud expressou ao considerar suas experiências clínicas e as reflexões sobre elas.

As regras técnicas que estou apresentando aqui alcancei-as por minha própria experiência, no decurso de muitos anos, após resultados pouco afortunados me haverem levado a abandonar outros métodos ... . Devo, contudo, tornar claro que o que estou asseverando é que esta técnica é a única apropriada à minha individualidade; não me arrisco a negar que um médico constituído de modo inteiramente diferente possa ver-se levado a adotar atitude diferente em relação a seus pacientes e à tarefa que se lhe apresenta. (Freud, 1912/1969a, p. 149)

Proponho aqui tecer algumas considerações sobre o papel do olhar do analista. Retomo palavras do próprio Freud quando ele explicita suas razões para sugerir o uso do divã e consequentemente o afastamento do olhar direto entre analista e paciente.

Tenho de dizer uma palavra sobre um certo cerimonial que concerne à posição na qual o tratamento é realizado. Atenho-me ao plano de fazer com que o paciente se deite num divã, enquanto me sento atrás dele, fora de sua vista. Esta disposição possui uma base histórica: é o remanescente do método hipnótico, a partir do qual a psicanálise se desenvolveu. Mas ele merece ser mantido por muitas razões. A primeira é um motivo pessoal, mas que outros podem partilhar comigo. Não posso suportar ser encarado fixamente por outras pessoas durante oito horas (ou mais) por dia. Visto que, enquanto estou escutando o paciente, também me entrego à corrente de meus pensamentos inconscientes, não desejo que minhas expressões faciais dêem ao paciente material para interpretação ou influenciem-no no que me conta. ... Insisto neste procedimento, pois seu propósito e resultado são impedir que a transferência se misture imperceptivelmente às associações do paciente, isolar a transferência e permitir-lhe que apareça, no devido tempo, nitidamente definida como resistência. (Freud, 1913/1969, p. 178)

Freud concebe essas orientações para os cuidados de pacientes que possam associar livremente, estabelecer e examinar oportunamente sua transferência. Nesse contexto cabem suas colocações de o analista ser como um espelho neutro que apenas reflete o que o paciente lhe mostra. "O médico deve ser opaco aos seus pacientes e, como um espelho, não mostrar-lhes nada, exceto o que lhe é mostrado." (Freud, S. 1912/1969a, p. 157).

Considerando a expansão da técnica psicanalítica diante de uma gama mais ampla do funcionamento mental que se observou na clínica, proponho examinar situações em que o olhar do analista se revela uma ferramenta importante para o seu trabalho assim como outros recursos de sua mente.

 

Considerações

Vou procurar apresentar situações vividas com alguns pacientes que de diferentes formas apontam para necessidade de intensa interação com o analista, da disponibilidade emocional do mesmo e de seu olhar atento e interativo para que consigam alguma coesão. Podem também precisar evacuar emoções de grande intensidade ou sofrimentos que, ao serem enviados e acolhidos pela sintonia emocional do olhar, têm uma oportunidade de sofrerem transformações e também receber e registrar nesse gesto uma mensagem de interesse e compreensão consoladores. Apenas a palavra, nessas circunstâncias, ainda não tem força suficiente para operar mudanças no estado emocional. Parece ser previamente importante a proximidade e disponibilidade do analista inteiro, pois operações ainda não simbolizadas estão intensamente presentes. A busca é menos pela associação livre que muitas vezes mostra-se inviável e mais por conter uma "dissociação livre". A seguir proponho o exame de outras condições emocionais em que é o analista quem busca a possibilidade de encontrar um olhar integrador diante da desconexão alucinatória do paciente.

Faço a seguir citações de autores que trabalhando com observação de bebês passaram a dar importância aos gestos e trocas não verbais como recurso para intenso contato emocional.

Esther Bick dizia: "Os olhos, a boca, as orelhas, o nariz e as mãos, todos servem para ligar o bebê à sua mãe, em sua tentativa de manter sua coesão". Precisamos compreender o diálogo que emana de cada parte do bebê. (Magagna, 1997, p. 48)

Vários pensadores nos advertiram do perigo de nosso olhar e como ele pode alterar o objeto de nosso estudo . . Esther Bick inverte a ideia e revaloriza o olhar para a observação. (Ela) descobre o olhar emocional, o olhar que toca, que valoriza, que desperta a consciência ... . O olhar do observador é, em muitos momentos, braços que acolhem, uma boca que sorri, pernas que acompanham, uma criatura que estende a mão. (Perez-Sanchez, 1997, pp. 57-58)

Somos confrontados com um paradoxo. O psicanalista tem por ideal estar mergulhado em um mundo intrapsíquico liberado de todo ônus objetivante, mas sua atividade pressupõe a presença efetiva de um paciente em carne e osso e não possui outros meios de se comunicar com ele a não ser os baseados em sua sensorialidade, nem que seja a auditiva. (Houzel, 1997, p. 88)

 

Janela da alma: o olhar emite e recebe informações ao mesmo tempo

A paciente a quem chamarei de Rita saiu do divã porque "precisava que eu a olhasse dentro dos olhos e precisava sentir que a acompanhava" (sic): seus olhos me vendo recolhiam uma referência de sustentação e me enviavam também uma mensagem de muita dor. Após algum tempo percebi que eu me sentia engolida e que segurava fortemente com uma das mãos a borda da mesa próxima a mim. Quando notei que estava me agarrando em algo me pareceu que era para não me afogar diante da sua fala, seu olhar intenso e sua proximidade corporal ao falar. Sua história era de intensa dramaticidade: sua viuvez recente, a doença de seu jovem marido que também era seu colega de trabalho, o câncer cerebral que ele desenvolveu, momentos em que ele passou cocô pela casa e pela geladeira quando percebeu sua morte como inevitável e próxima. Aos poucos vai relembrando de experiência anterior trágica: a morte do seu pai por assassinato durante sua adolescência. Nesse ponto ela gritava, chorava e pedia algo que lhe tirasse a dor que sentia, dizia que não conseguia dormir, pedia por um remédio, ainda que não quisesse tomar nenhum. Suas palavras misturavam um sentido de dor física e mental de forma amalgamada, indistinguível. O registro mais forte que me ficou deste atendimento foi sua saída do divã, muito angustiada, chorando, falando, quase gritando e se aproximando de mim sem desgrudar seu olhar do meu um instante sequer, contando cenas de sua tragédia pessoal. Não era momento de falar sobre seus sentimentos, mas de compartilhar intensamente e de forma muito próxima seu sofrimento buscando uma maneira de sobreviver emocionalmente a todo impacto que havia em suas colocações. Qualquer afastamento parecia intolerável, sugerindo a possibilidade de desmoronamento, implosão ou explosão se isso ocorresse. A permanência de uma interação através do olhar era o elemento de sustentação para tanto sofrimento que jorrava ainda na sua forma bruta, dilacerante. Era pela janela do olhar que recebíamos e enviávamos uma à outra nossas mensagens de desespero e também esperança de alívio na compreensão. Aquém e além das palavras, o olhar foi uma importante ferramenta da nossa comunicação. Somente muito tempo depois o divã foi retomado e o olhar dispensado.

Aqui pressuponho um analista não neutro, mas participante envolvido na cena, que em certos momentos consegue refletir sobre o que estaria se passando, ainda que outras vezes possa estar vivendo a cena sem conseguir formar qualquer ideia sobre ela.

A possibilidade de construir hipóteses, reflexões ou sonhos na sessão depende do estado mental da dupla. Tanto paciente quanto analista podem conseguir operar em um universo simbólico e sonhante onde esta tarefa é facilitada. Outras combinações possíveis se dão quando ambos apresentam simultaneamente dificuldade para criar um plano de observação e representação descolado das informações e descargas emocionais, ou quando alternam um descompasso entre esses dois planos.

No primeiro caso, em que ambos podem sonhar a sessão, creio que o olhar pode ser plenamente dispensado e o uso do divã se torna interessante e até um instrumento facilitador das associações livres do paciente e da atenção flutuante do analista. Entretanto, quanto mais nos distanciamos desta condição emocional, mais outras ferramentas se mostram úteis na comunicação do par analítico. As trocas se fazem por gestos, recursos sensoriais e pouco por palavras, que muitas vezes ocupam mais a função de descarga do que de elaboração e informam mais pela prosódia do que pelo conteúdo da fala. Nestas condições o olhar pode ganhar destaque na sua importância para comunicação: o olhar que registra impressões a serem posteriormente desdobradas e o olhar que emite impressões que poderão ou não ser decodificadas em emoções e representações ou então permanecer como recurso evacuatório sem qualquer outra transformação.

A disponibilidade de um olhar atento e interessado do analista, ainda que ignorante, assevera contato, parceria emocional, compaixão (no sentido de compartilhamento das paixões) que são componentes importantes para possível mudança no sofrimento e na dispersão.

A experiência clínica nos mostra ... como em determinados momentos onde se propicia na sessão analítica a emergência de estados primitivos de mente o paciente bruscamente procura o olhar do analista, virando-se no divã em direção a ele ou mesmo se levantando e buscando o vis-à-vis em uma cadeira. O olhar está buscando um espelho e um frame que contenha seu self fragmentado. (Outeiral, 2001, pp. 85-86).

Se até agora considerei a oferta do olhar do psicanalista como importante em certas circunstâncias para a contenção e organização do paciente, pretendo examinar também outras condições em que é o psicanalista quem procura o olhar do paciente e um olhar em que ele (analista) possa se sentir reconhecido. Poderia dizer que de certa forma a ideia de Winnicott do espelhamento do bebê no olhar da mãe nos ajuda a entender o sofrimento de quando isto não ocorre e as dificuldades para desenvolvimento que este desencontro gera, ainda que sejamos adultos e analistas em uma sessão com nosso paciente.

O que o bebê vê ao olhar para o rosto da mãe? Sugiro que normalmente, o que o bebê vê é a si próprio. Em outras palavras, a mãe olha para o bebê e aquilo que ela parece relaciona-se com aquilo que ela vê ali. (Winnicott, 1975, p. 154)

Bion nos fala sobre situações alucinatórias em que os órgãos sensoriais expulsam assim como recebem.

Se um paciente diz que vê um objeto isto pode significar que percebeu um objeto externo ou que está expelindo um objeto através de seus olhos ... . A consciência do duplo significado que podem ter os verbos relativos aos sentidos para o psicótico pode permitir-nos às vezes perceber um processo alucinatório antes que se manifeste por sinais mais familiares. (Bion, 1985, p. 95, tradução livre da autora)

Na alucinação se vê o que os olhos projetam e não há possibilidade de indagar sobre a mensagem do olhar do outro porque existe uma certeza absoluta do que se vê e a alteridade não aparece. É possível ver muita esperança ou terror, mas a atitude do outro parece não fazer diferença, pois a visão sai pronta pelos olhos. Supondo que seja o paciente quem esteja alucinando, o analista terá que tentar se aproximar e compreender estes parâmetros alucinados e ver o que consegue fazer com eles, se é possível marcar ao menos o registro das impressões que isto lhe provoca ou sequer isto poderá ser recebido por quem está continuamente funcionando em alucinose.

O quadro geral apresentado por estes pacientes "é o de uma pessoa ansiosa por demonstrar sua independência de qualquer coisa que não sejam suas próprias criações" (Bion, 1970, p. 137), as quais são um produto de suas supostas habilidades para usar seus sentidos como órgãos evacuatórios para construir recursos que os envolvam. (López-Corvo, 2003, p. 293, tradução livre da autora)

Aqui o olhar do psicanalista como ferramenta de trabalho que acolhe e integra está, temporariamente ao menos, suspenso, sem compartilhamento. Poderá permanecer, contudo, ativo na mente e nos registros do analista, como uma função de compreensão à espera de oportunidade para se disponibilizar. Esta situação pressupõe que o analista não fique ele próprio aprisionado em transformações em alucinose, o que reverberaria as transformações do paciente estabelecendo um círculo vicioso de difícil manejo. Em situações muito intensas e duradouras de funcionamento em alucinose, o olhar como ferramenta deixa de ter valia, para ser mais bem substituído não pelo retorno ao divã das associações livres em comunhão com atenção flutuante do analista, mas por uma disponibilidade de acolhimento e acompanhamento do que emerge ainda que sem comunhão, sempre à espera de uma brecha por onde o contato possa se restabelecer em outros moldes, onde comece a ser possível haver dúvidas, questionamentos, curiosidades, alteridade. Proponho a ideia do analista acompanhante (se isso também não for impedido por desligamento do paciente). Todas as percepções e também a intuição do analista precisam ser aguçadas para tentar manter viva a proposta psicanalítica de desenvolver possibilidade de pensar, de identificar forças operantes na mente e não apenas submergir a elas. Externar ou descrever a apreensão que temos do estado emocional do paciente pode ser uma forma de tentar encontrar um ponto de contato. Outras vezes acompanhá-lo em sua fala ou ação, também pode ajudar a encontrar alguma oportunidade de sermos olhados, ouvidos e nossas colocações minimamente consideradas, muitas vezes começando esta abordagem de forma indireta, falando genericamente de situações similares, até que alguma aproximação mais direta se faça (ou não) possível.

A seguir apresento material clínico de dois pacientes buscando assim ilustrar minhas ideias até então expostas.

 

O olhar do analista como um perturbador intolerável

Passo a discorrer sobre um garoto de sete anos a quem chamarei de Pedro, cujo funcionamento em alucinose era predominante nas sessões (e pelas informações que recebia da escola e da família na vida de modo geral não era de outra forma). Após ser remanejado de escola pela terceira vez não fazia qualquer comentário sobre tais mudanças, mas insistia em brincadeiras onde todos os ex-colegas apareciam como personagens que o visitavam e brincavam com ele (aliás, ele próprio era nomeado como algum destes membros do grupo). As brincadeiras mostravam todos muito unidos e interessados uns nos outros. A linha de ação era bastante tênue e continuamente interrompida, dificultando muito qualquer conclusão nos seus propósitos. Havia também uma marca de diferenciação entre um brincar convencional e o seu brincar, que não pressupunha um faz de conta nem uma combinação de papéis: à analista eram atribuídas funções e o paciente era determinado personagem (humano ou animal), mas sem qualquer chance para alteração ou questionamento de suas atribuições e ações. Como analista não tinha muita possibilidade além de acompanhá-lo em sua entrecortada trajetória. Aos poucos procurava falar do que observava e sentia nas cenas, mas se meus comentários fossem muito diretos ele se irritava e se desorganizava ainda mais. Aos poucos percebia que era mais duradouro e alentador o acompanhamento das situações como se fossem em um país muito distante, assim como se faz nos contos de fada, que ao nomear emoções desta forma elas podiam ser ouvidas ao menos. Até certa dramaticidade emocional começou a ser aceita desde que falasse de um mundo distante ou da própria analista, que ela se declarasse sofrendo quando ficava sem saber dos amigos com quem estudara e que começasse a se indagar do que poderia fazer para encontrá-los novamente, até que a situação ficasse muito próxima e uma irritação e dispersão se reinstalavam. Este movimento eu tomava como sinalização para retomar o meu acompanhamento em silêncio ou com falas cautelosas, como se estivéssemos "em um país muito distante". Em determinados momentos a única chance que eu via de estar junto era participando ativamente das suas ações, ainda que dentro do que autoritariamente estabelecia: abra a porta, tocou a campainha, chegou Fulano (nome de algum dos ex-colegas). Minhas falas eram rejeitadas, meu olhar mais direto era difícil para ele que pedia que eu saísse ou ficasse longe, sem olhar o que fazia. Parecia que qualquer possibilidade de ser tocado pelo contato com algo diferente do seu próprio funcionamento era insuportável e sua organização alucinatória precisava ser mantida como única via que restringia, mas continha de alguma forma uma desorganização maior diante de emoções que não tolerava e não sabia como lidar de outra maneira. Claro que um círculo vicioso se estabelecia e realimentava, pois cada vez ficava mais forte este caminho e menos se desenvolvia tolerância e possibilidade de encontrar alternativas para seus sofrimentos. Aqui não há um sonhar as situações de forma compartilhada, nem tampouco uma busca esperançosa de contenção e integração no olhar do outro, mas uma construção solitária que precariamente sustenta o paciente e evita qualquer aproximação que confronte este modelo. O que sustentava a permanência da analista em sua busca de pequenas brechas para propor outro modelo eram sua crença e esperança no poder do funcionamento mental não alucinado como forma de amenizar sofrimento e gerar outro perfil de organização, o que posso de certa forma considerar o sonho solitário do analista, realimentado por pequenas aceitações e mudanças de postura como quando Pedro voltava a tolerar, ainda que aos poucos, eu dizer quando ia abrir a porta para seus visitantes: "Fulano! Você que estudava na escola Y? Acho que o Pedro deve estar com saudades, faz tempo que vocês não se telefonam e não combinam para brincar"! Ao menos por instantes podiam ser toleradas certas explicitações de sentimentos de incompletude e de proposta não alucinatória como alternativa para buscar o contato desejado.

Creio que a própria caracterização de transformação em alucinose traz em seu bojo a explicitação das dificuldades aqui referidas e nos ajuda a avaliar a dimensão dos desafios ao analista.

Transformações em alucinose: alguns pacientes psicóticos (ou a parte psicótica da personalidade em pacientes borderline) experienciam a onipotência implícita na alucinose - eles são capazes de alucinar qualquer coisa que possam desejar - como um método para alcançar independência, um sistema que eles consideram superior à psicanálise. Em estados de alucinose, circularidade e per-petuidade são estabelecidas como uma necessidade para compensar frustrações, mas desde que alucinações são destinadas a falhar, a voracidade aumenta, assim como a necessidade por mais alucinações. (López-Corvo, 2003, p. 292, tradução livre da autora)

 

O analista acompanhante buscando ser visto na sua alteridade pode ter na sustentação do olhar do paciente um indicador desta possibilidade

Apresento aqui outra situação clínica para considerações. Ainda que não se tratem de sessões convencionalmente estabelecidas, a abordagem descrita se dá pela consideração de parâmetros psicanalíticos estabelecendo um setting mesmo extramuros por meio da busca da analista para manter sua condição de pensamento apesar da grande turbulência emocional da situação. Encontrando respaldo em outros autores, registro a seguir uma citação em particular:

Não penso em obediência a um setting para que se dê análise, mas sim de um setting no analista que lhe dê condições de participar daquela análise. É neste ambiente que se dá o atendimento psicanalítico de um analisando particular, singular, no qual ele transparece como ser humano em relação com o outro. (Froschtengarten, 2010, p. 51)

Sigo agora minha narrativa de outra experiência clínica. Atuando como assistente em hospital psiquiátrico, fui surpreendida certo dia pela entrada em meu consultório de um paciente jovem que bradava em alto e bom som uma série de afirmações sobre o mundo e dialogava com figuras alucinadas que eu não podia compartilhar. Ele veio seguido pela enfermagem que me pedia para medicá-lo e encaminhá-lo ao quarto-forte até que acalmasse, pois ninguém conseguia contê-lo. O paciente permanecia andando de um lado para outro da sala e sequer me olhava. Quando me dirigi a ele dizendo que gostaria de conversar e saber o que estava acontecendo ele me disse que não podia ficar ali parado conversando comigo e que precisava andar e checar todos os perigos que existiam ali na clínica, nos canteiros do jardim, no lago com os peixes, nas torneiras etc. Disse-lhe então que poderia acompanhá-lo e assim saímos ele, eu e o enfermeiro, inicialmente um pouco perplexo com a minha ideia. O paciente andava rápido e falava também de forma acelerada, indo um pouco à minha frente algumas vezes. Aos poucos notei que ele começava a desacelerar para me aguardar em certos trechos do caminho em que eu tinha mais dificuldade em acompanhá-lo. Andamos muito até que surgiu uma torneira sobre a qual ele tinha muitas ideias e parou para falar da água que dali jorrava. Foi minha primeira oportunidade de lhe fazer algumas perguntas sobre a tal água e na minha cabeça algumas conexões começaram a surgir, pois do pouco que sabia da sua história, esta parecia guardar relação com alguns aspectos do que dizia naquele instante. Sentia, contudo, que deveria guardar comigo estas conjecturas, pois naquele momento não via como ter interlocutor para tais considerações. Seguimos andando por mais um bom tempo e ao final de uns quarenta minutos, percebendo que o ritmo da caminhada e da fala haviam desacelerado bastante, propus-lhe que retornássemos ao consultório, pois eu não podia mais me ausentar de lá, tinha outros atendimentos aguardando por mim. Ele aceitou meu pedido e deixei-lhe uma oferta de que poderia me procurar para conversar ou caminhar novamente se tivesse vontade, no outro dia em que eu estaria lá. Ele mal me olhara até então e eu não tinha muita certeza de que isso pudesse ser registrado, pois foi embora sem dar qualquer resposta, mas no dia em que retornei à clínica fui procurada por ele no consultório, de forma semelhante à primeira vez, embora um pouco menos agitado e sem o pedido da enfermagem para contê-lo no quarto-forte (o que soube que antes era frequentemente necessário para ele). Novamente caminhamos, mas desta vez mais paradas ocorreram e mais trocas de comentários foram possíveis à beira de um pequeno lago com carpas, onde a cor, o movimento e a trajetória delas eram motivo para várias afirmações do paciente.

Aos poucos ele passou a ouvir comentários que eu fazia, alguns dos quais integrava rapidamente às suas próprias ideias, enquanto outros ele deixava de lado sem maiores considerações. Dessa forma estabelecemos espontaneamente uma proposta de trabalho que se estendeu por um mês aproximadamente, onde eu o recebia ao redor de certo horário, se não estivesse atendendo nenhuma emergência ou caso isto acontecesse, após me disponibilizar para tal, o que implicou várias vezes que me aguardasse por bom tempo (o que fazia geralmente andando pela clínica). Obviamente durante sua internação vários fatores influíam nas modificações que se davam com o paciente, entretanto, considerando as nuances de mudanças que podia notar nas nossas caminhadas e conversas, gostaria de destacar alguns pontos aqui. Gradativamente as caminhadas passaram a incluir algumas paradas, depois certa possibilidade de permanecermos sentados; o olhar que não se cruzava passou a ter alguns momentos de reconhecimento mútuo; minhas indagações começaram a receber algumas respostas não categoricamente afirmativas e independentes de todo sistema previamente articulado do seu discurso; as visões não compartilhadas não se apresentavam mais; algumas ocorrências com pessoas no ambiente passaram a ser integradas à conversa, aumentando o raio do seu olhar, ainda que para fazer observações inquestionáveis inicialmente até poder tolerar ouvir que eu não pensava da mesma forma e o que mais marcou para mim todas estas conversas, foi a procura espontânea do paciente durante todo período que permaneceu internado. Parece que a continência que lhe ofereci com minha atenção foi suficiente para eliminar o quarto-forte como única alternativa para sua agitação intensa. Soube pela enfermagem que ele recebeu alta em um fim de semana que eu não estava lá e ele disse que não queria ir embora porque precisava falar comigo. Diante da não aceitação deste argumento pela família, ele então deixou um recado com a enfermagem para que me avisassem que tinha ido embora e que estava melhor. Senti que havia sido realmente incluída em seu universo que tantas vezes rejeitava qualquer aproximação das pessoas, das ideias que não fossem as suas próprias e que acompanhá-lo tinha feito alguma diferença na nossa trajetória. Apesar dos benefícios que nossas conversas pareciam lhe trazer, não foi da mesma forma que seu psiquiatra e sua família entenderam este trabalho, julgando-o dispensável e irrelevante. Contrariando essa ideia, soube posteriormente que o paciente foi novamente internado em ocasião que eu já não me encontrava mais atuando na clínica e que voltou a frequentar o quarto-forte em suas agitações.

Essa experiência de acompanhamento deixou profundas marcas em mim, algumas das quais retomo aqui nestas reflexões. Sublinho a valorização nas sessões de psicanálise de um acompanhamento flexível, não intrusivo, paciente e expectante por oportunidades que se apresentem, ainda que de forma rarefeita, para aproximação do sistema de funcionamento mental do paciente buscando expansões e reversão de perspectivas de explosões ou confinamentos. Essa mobilidade do analista me parece permitir manter como invariantes as propostas do método psicanalítico, mais do que o apego a ferramentas e regras que em certas situações podem se mostrar inapropriadas. Nestas circunstâncias o olhar do paciente que pode encontrar o do analista serve muitas vezes de sinalizador para a tolerância da percepção do outro em sua alteridade. É interessante estar atento para estes lampejos quando nos encontramos em contatos de predomínio alucinatório, pois podem permitir conjecturas dos elementos que favoreceram seu surgimento ou expansão. A sintonia do olhar também implica na disposição do analista para registrar suas emoções diante do paciente. Quando as identificações projetivas são muito intensas o analista sofre o impacto das mesmas continuamente e não conta com um olhar que permite trocas recíprocas, mas sim um olhar que expele imagens já prontas e o que recolhe é apenas o retorno das mesmas. Não há registros do analista que incluam sua percepção de ter seus pensamentos ou suas emoções acolhidas. A procura por parte do analista deste olhar receptivo permeia todo trabalho da análise nessas circunstâncias e pode necessitar de outros canais de comunicação assim como da capacidade mental de sobrevivência e busca de sentido nas condições adversas. É a mente do analista que luta por coesão e sentido em um universo que expulsa fragmentos estilhaçados. Longos caminhos a serem percorridos pedem um analista acompanhante, que possa transitar entre as referências do paciente e as suas próprias, mantendo-se ao lado e evitando colisões desastrosas.

 

Novas recomendações aos que exercem a psicanálise: uma ferramenta é boa nas situações que seu uso é possível e útil aos objetivos do analista

O experimento que é a psicanálise está fundado sobre um paradoxo: psicanálise é a evolução de um conjunto de ideias e princípios de técnica que se desenvolveram no curso do século passado e, ao mesmo tempo, é responsabilidade do analista reinventar a psicanálise para cada paciente e continuar a reinventá-la por meio do curso da análise ... . Embora eu veja psicanálise como um experimento, eu não estou sugerindo que paciente e analista sejam livres para fazer qualquer coisa que eles gostem, preferivelmente, eles estão livres para fazer trabalho psicanalítico de um modo que reflita quem eles são individualmente e juntos como analista e analisando ... eles estão inventando uma relação analítica a qual tem seus objetivos psicoterapêuticos, definições de papéis, responsabilidades, sistema de valores etc. (Ogden, 2004, p. 862, tradução livre da autora)

Tanto o divã como o olhar podem ter uma indicação valiosa dentro de organizações mentais que possam usufruir o que propiciam, da mesma forma que se tornam inoperantes ou pouco operantes em situações que demandam outros recursos para serem abordadas. Se em certas situações a oferta do olhar atento e interessado do analista tem papel de destaque no trabalho, outras vezes é o analista quem precisa buscar um ponto de referência para contato com seu paciente que o vê de forma alucinada, não dando brechas para que se sinta reconhecido. Enfatizo assim a liberdade do analista, característica tão bem ilustrada pela postura do próprio Freud, para buscar a ferramenta que mais lhe parecer útil na tentativa de manter os objetivos da psicanálise, procurando se aparelhar para o perfil de trabalho que precisa empreender a cada sessão e a cada situação emocional com a qual é confrontado. Isto requer do analista uma atenção se não flutuante, ao menos contínua, que rastreie suas próprias emoções e o que capta do paciente para buscar uma condição favorável dentro da instabilidade e da turbulência emocional de cada encontro e profunda sintonia com as emoções suscitadas durante as sessões. Ações livres do analista em busca de manter condições de pensabilidade dentro de universo não simbólico, cindido e com estilhaços projetados com violência podem ajudá-lo a recompor em sua mente conexões, atribuir sentidos, conjecturar imaginativamente, sonhar e rearranjar elementos sensoriais e psíquicos que consegue captar. Assim volto às considerações de Freud que ao defender o uso do divã, entre outras razões apontou suas necessidades pessoais de se sentir confortável para manter sua mente disponível para trabalhar em atenção flutuante. Ao psicanalista atual talvez fique o desafio de descobrir em um universo instável qual o recurso, externo ou interno, que o ajuda em sua proposta de trabalho a cada instante.

 

Referências

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Correspondência:
Leda Beolchi Spessoto
[Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo SBPSP]
Av. Dr. Cardoso de Melo, 1470/411 | Vila Olímpia
04548-005 São Paulo, SP
Tel: 11 3849-3630
ledabspe@hotmail.com

Recebido em 6.6.2011
Aceito em 24.10.2011