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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.45 no.4 São Paulo out./dez. 2011

 

RESENHAS

 

Doze lições sobre Freud & Lacan

 

 

Ronis Magdaleno Júnior

Psiquiatra, Psicanalista, Membro Associado da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo SBPSP. Membro do Núcleo de Psicanálise de Campinas e Região e Doutor em Ciências Médicas pela Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Estadual de Campinas

Correspondência

 

 

Autor: Geraldino Alves Ferreira Netto
Editora:
Pontes, Campinas, 2010, 272 p.
Resenhado por: Ronis Magdaleno Júnior

Conhecer Freud para ler Lacan, e conhecer Lacan para reler Freud. É dentro desse espírito que Geraldino Alves Ferreira Netto nos convida a um percurso consistente pela obra freudiana, sempre com os ensinamentos lacanianos no horizonte. Esse expediente, ao instigar a curiosidade do leitor por aquilo que Lacan desenvolveu, permite uma volta aos conceitos e teorias desenvolvidas por Freud, desde a invenção da psicanálise até suas últimas tratativas com Max Schur sobre o momento em que esse, seu médico, deveria interromper sua vida, quando ela se tornasse insustentável.

Numa linguagem acessível - e bem articulada com a teoria de Freud e seus desenvolvimentos - o autor nos apresenta um Lacan quase cristalino, muito diferente daquele Lacan quase impenetrável que tanto desestimula os iniciantes na carreira psicanalítica - e mesmo os não tão iniciantes - na tarefa de entendê-lo e incorporá-lo ao seu arsenal teórico e à sua práxis. Encontramo-nos com um Lacan que, mediado pelo autor, dialoga com Freud - e com o leitor - de forma consistente e agradável, o que estimula a sequência da leitura, capítulo após capítulo, ou, como preferiu o autor, Lição após Lição, sempre encontrando ao final ideias e articulações instigantes e esclarecedoras ao colocar esses dois grandes pensadores do século XX para dialogarem entre si. Nesse diálogo os conceitos lacanianos, obscuros para aqueles que não estão familiarizados com sua obra, vão se tornando claros, límpidos, causando até mesmo um mal-estar no leitor: "como que não percebi isso antes, sozinho?" Durante toda a leitura da obra podemos apreender a dedicação prévia do autor ao estudo aprofundado e cuidadoso das obras de Freud e Lacan, condição necessária para poder apresentar de forma simples questões complexas, e, sobretudo, fazer conversar duas teorias hipercomplexas de forma a parecerem simples.

O autor opta, até porque o livro se baseia em seminários ministrados, por dividi-lo em "Lições" - inspirado, por certo, na estratégia metodológica de Freud - o que confere a ele um caráter didático, focado e que permite uma progressiva elaboração dos temas, digamos, em espiral crescente, o que aprofunda a discussão de forma compreensível e consistente para o leitor, mesmo para aqueles menos afeitos às obras de Freud e Lacan.

É dentro desse cenário que vemos descortinarem-se diante de nossos olhos, desvelarem-se por assim dizer, conceitos como Gozo, Significante, o Real, o Imaginário e o Simbólico, o Sujeito Suposto Saber, o Objeto a, o Nome-do-Pai, o esquema Lambda que sempre estiveram obscurecidos e quase inacessíveis para a maioria dos psicanalistas, tanto pela rejeição visceral que houve à própria pessoa de Lacan nas instituições psicanalíticas oficiais desde sua saída, como pela maneira nada simples do próprio Lacan expressar suas ideias nos Seminários e nos Escritos.

Para citar alguns tópicos retomados pelo autor acompanhamos, por exemplo, como Lacan expande a compreensão do fenômeno da transferência ao propor uma distinção entre aquilo que chamou de transferência imaginária e a transferência simbólica. O que é comumente chamado de transferência (apaixonar-se, odiar, hostilizar, seduzir o analista) seria, para Lacan, a transferência imaginária, apenas o trampolim para se alcançar a transferência simbólica, esta sim a essência do trabalho psicanalítico e que teria um efeito transformador, por levar o paciente a fazer associações livres. Esclarece, contudo, que associação livre, neste contexto, não é o fato de se proferirem palavras, umas depois das outras, mas de se proferirem palavras, umas por causa das outras. É neste lugar que deve ser pensada a transferência para o analista, no como o paciente articula seu discurso e faz ligações entre seus elementos, o que está absolutamente de acordo com o proposto por Freud em "A dinâmica da transferência". Nesse sentido, Lacan desconsidera o fator afetivo na estrutura da transferência, e reforça o lugar da associação livre, do significante, da fala. O analista, no lugar do Sujeito Suposto Saber, ao não responder à demanda de completude (proposta da transferência imaginária), defronta o paciente com seu desejo, com a falta, com a função paterna, com o Nome-do-Pai, possibilitando a associação livre.

Acompanhamos como, para Lacan, o Simbólico desempenha uma função complexa ligada à função da linguagem e do significante, que condiciona e organiza os sintomas, os sonhos e a própria experiência analítica. Enquanto o simbolismo aponta para um objeto determinado, a ordem simbólica proposta por Lacan é uma estrutura inconsciente que designa aquilo que falta, sendo a função da palavra tornar presente, por representação, o que está ausente. Neste sentido, o conceito de simbólico seria inseparável dos conceitos de significante, que é a própria essência da função simbólica, de forclusão, que é o desaparecimento do simbólico no processo psicótico e de Nome-do-Pai, mediante o qual a função simbólica integra-se numa lei que significa a proibição do incesto. O autor esclarece que este último conceito comporta, na língua francesa, dois sentidos complementares. Por um lado Le nom du père, alude ao pai que transmite o nome à criança (em português, o sobrenome), mas ao mesmo tempo remete à expressão homofônica Le non du père, o não do pai, a interdição do incesto pela palavra. É neste sentido que o pai verdadeiro é o pai simbólico, que instaura a linguagem e a interdição, aquele que separa o filho da mãe e o assume dentro da estrutura social e cultural.

A forclusão seria o mecanismo específico da psicose, consistindo na rejeição primordial do significante Nome-do-Pai para fora do universo simbólico do sujeito. Seriam os significantes forcluídos do simbólico que retornariam no real, sem serem integrados no inconsciente do sujeito, criando os neologismos, alucinações e delírios como tentativa de recuperar o significante faltoso e a função paterna que não operou nele. A psicose para Lacan seria uma fixação na fase do espelho, do imaginário, não sendo aceita a intervenção do Nome-do-Pai. A lei não se imporia e o sujeito não acede ao simbólico, à linguagem socialmente codificada, à subjetivação, situando-se a lei na própria mãe, no imaginário, permanecendo o sujeito condenado ao gozo incestuoso.

Outro ponto interessante explorado pelo autor é a descrição sintética, nas Lições 1, 9 e 10, dos historiais de Freud, de alguns dos quais apresenta posteriormente reflexões de Lacan. Acompanhamos o surgimento de Anna O., Emmy von N., Miss Lucy R., Katharina, Elisabeth von R, Dora, o Homem dos Lobos, o Homem dos Ratos, o pequeno Hans e outros, numa visão, ainda que sintética, que oferece ao leitor os pontos importantes do porquê do seu lugar na construção da teoria freudiana e o porquê de sua retomada e reavaliação por Lacan.

O objetivo do autor é claro: chegar a Lacan. Parte de Freud, passa várias vezes pela filosofia, pela mitologia, pela linguística, pela literatura, pelo cinema, e chega a Lacan, mas não um Lacan definitivo, como querem alguns lacanianos, mas um Lacan que convida a pensar o mundo psíquico, ou a alma (Seele) como queria Freud, e a repensar Freud de um outro ponto dentro de uma espiral ascendente. Um Lacan que, através de sua conversa com o autor, proporciona uma conversa estimulante com o leitor.

Nota-se que o objetivo do autor não é produzir uma escrita profunda sobre a obra de Freud, mesmo porque isso seria impraticável num volume de duzentas e tantas páginas. Ele conta com o interesse do leitor em conhecer Freud a partir de sua fonte, ou seja, a partir da leitura direta de sua obra, o que, a nosso ver, é a postura mais adequada, posto que Freud só pode ser apreendido a partir dele mesmo. Temos já de nos conformar, pelo menos a maioria de nós que não tem acesso ao Freud no original em alemão, com estudos a partir de traduções. Esse é outro ponto retomado várias vezes pelo autor que nos alerta para a traição da tradução, que transforma os sentidos pretendidos por Freud, em outros imprecisos, quando não tendenciosos, como quando da tradução do Wo Es War, soll Ich werden por "Onde havia Id, haja Ego". Perde-se nessa tradução a essência da formulação freudiana que, ao utilizar os pronomes da primeira pessoa sem o artigo, aponta para uma outra direção: "Onde Isso estava, devo Eu advir". A primeira tradução faz uma forte alusão a uma tópica na qual o Ego deve encampar o Id, numa clara tendência psicologizante, tão em voga, na época e até os dias de hoje, na cultura e na psicanálise norte-americanas. A tradução apontada pelo autor aponta para o reposicionamento de Freud em sua segunda tópica, a partir do qual a análise teria como meta expandir o alcance do Eu sobre o Isso, sobre o próprio desejo, mais do que o Eu que ocuparia o lugar previamente ocupado pelo Isso.

O autor propõe também um mergulho em interessantes aspectos da história do movimento psicanalítico, a celeuma com Jung, o lugar ocupado por Jones, o lugar das mulheres psicanalistas, a relação com Anna Freud e como foi sendo construída a história do movimento psicanalítico, e, ao mesmo tempo, como estes fatos funcionaram como estímulo para novas expansões da psicanálise.

Em síntese, Doze lições sobre Freud & Lacan é uma obra que merece ser conhecida pelos interessados e por aqueles que praticam a psicanálise, posto que expõe, de modo consistente e acessível, os desenvolvimentos lacanianos e os conceitos criados por ele, sendo, portanto, essencial para aqueles que se interessam por entender e conhecer as valiosas contribuições desse controverso psicanalista - ao menos para as instituições psicanalíticas oficiais - que foi Jacques Lacan.

 

 

Correspondência:
Ronis Magdaleno Júnior
[Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo SBPSP]
Rua Padre Almeida, 515, sala 14
13025-251 Campinas, SP
Tel: 19 3254-2103
ronism@uol.com.br

Recebido em 17.10.2010
Aceito em 10.11.2011