SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.46 issue1Ethics and psychoanalysisToday's ethics and morals author indexsubject indexarticles search
Home Pagealphabetic serial listing  

Revista Brasileira de Psicanálise

Print version ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.46 no.1 São Paulo Jan./Mar. 2012

 

ARTIGOS TEMÁTICOS: ÉTICA E PSICANÁLISE

 

Em defesa de uma certa ética imprescindível

 

In defense of indispensable ethics

 

En defensa de cierta ética imprescindible

 

 

Viviane Sprinz Mondrzak

Membro efetivo da Sociedade Psicanalítica de Porto Alegre SPPA

Correspondência

 

 


RESUMO

A autora busca neste artigo refletir sobre qual seria seu modelo de analista ético ideal, procurando localizar os "invariantes em ética psicanalítica", aquilo que seria imprescindível para caracterizar uma conduta ética em qualquer época e cultura. Entre outros aspectos, ela destaca a capacidade de ter consideração pelo outro, o amor à verdade e a capacidade de ser neutro. Detém-se na discussão de neutralidade como um qualitativo essencial da identidade psicanalítica e da função de um analista, no compromisso (ético) de usar a sugestão de uma maneira específica, renunciando a qualquer forma de poder autoritário sobre o paciente e utilizando o poder que sua posição lhe confere, para tornar possível ao paciente tomar contato com sua realidade psíquica, garantindo que as várias vozes internas possam se manifestar com suas versões, seus medos, seus argumentos e levantando a possibilidade de melhores acertos e negociações. São também discutidas algumas questões referentes ao tema da transgressão para um analista.

Palavras-chave: ética; neutralidade; verdade; transgressão; alteridade.


ABSTRACT

The author reflects upon what her picture of an ideal ethical analyst would be, searching for "invariants in psychoanalytic ethics", the ones which inevitably characterize an ethical conduct in any time and culture. Among others, she emphasizes the capacity to care about the other and about the truth, and to maintain neutrality. A few aspects of neutrality are discussed in some detail, such as its essential characteristic as a qualifier of the psychoanalytic identity and the function of the analyst, mainly the (ethical) commitment to use suggestion in a specific way, abdicating from any form of authoritative power over the patient and using his position to help the patient make contact with his psychic reality, guaranteeing the possibility of the manifestation of the many internal voices in their versions, their fears and their arguments, leading to the possibility of better outcomes and negotiations. Some problems regarding the analyst's transgression are also discussed.

Keywords: ethics, neutrality, truth, transgression; otherness.


RESUMEN

En este artículo, la autora se propone hacer una reflexión sobre cuál sería su modelo de analista ético ideal, buscando localizar las "invariantes en ética psicoanalítica", aquello que sería imprescindible para caracterizar una conducta ética en cualquier época y cultura. Entre otros aspectos, se destacan la capacidad de tener consideración por el otro, el amor a la verdad, y la capacidad de ser neutro. Se centra en el debate de la neutralidad como una cualidad esencial de la identidad psicoanalítica y de la función de un analista, en el compromiso (ético) de usar la sugestión de manera específica, renunciando a cualquier forma de poder autoritario sobre el paciente y utilizando el poder que su posición le confiere para hacer posible que el paciente entre en contacto con su realidad psíquica, garantizando que las variadas voces internas puedan manifestarse con sus versiones, sus miedos, sus argumentos, trayendo la posibilidad de mejores aciertos y negociaciones. Se discuten también algunas cuestiones relacionadas al tema de la transgresión para un analista.

Palabras clave: ética; neutralidad; verdad; transgresión; alteridad.


 

 

É da percepção da necessidade de princípios que possibilitem a convivência entre os homens que surgem a moral e a ética.

Moral: do latim, mores = costume. Parte da filosofia que estuda o comportamento humano à luz dos valores e prescrições que regulam a vida das sociedades. Ocupa-se dos costumes e deveres. Tem a ver com os diversos modos de agir, que podem ser bons ou maus em um determinado contexto, em uma determinada cultura ou meio. A pergunta que procura responder seria: como devo agir?

Ética: do grego, ethos = morada habitual, caráter. Parte da filosofia que estuda os princípios que motivam, disciplinam ou orientam o comportamento humano, refletindo a respeito da essência das normas, valores, prescrições e exortações presentes em qualquer realidade social. A pergunta essencial da ética é: por que eu devo viver ou agir desta forma? (Valls, 1998).

A moral é mais normativa, procura estabelecer os códigos de conduta em cada época e em cada cultura. A ética procuraria encontrar os nexos que embasam os costumes; corresponde a um pensamento reflexivo sobre os valores e normas que regem a conduta humana e que decidimos seguir não apenas porque são normas, mas porque passam a ser exigências internas para nos sentirmos bem conosco mesmos.

A moral diz o que fazer, não ensina a ser feliz. A ética é um exercício individual, são leis ditadas pela consciência e não por qualquer instância alheia ao eu.

Nesse sentido, não há qualquer ética que advenha do conhecimento. Toda ética diz respeito a um projeto, a um querer, muito mais do que a um conhecimento. E exprime-se nesse conjunto de desejos, de necessidades, de representações conscientes e inconscientes, que tem lugar em uma sociedade complexa, de forma não dirigida, configurando o que Castoriadis (1993) designa por imaginário social. É só depois que a ética pode ser objeto de uma reflexão, de um conhecimento, depois de se ter imposto como um conjunto de regras e de comportamentos vividos.

Mas tudo isso faz parte do conjunto de conhecimentos teóricos que nos acompanham, que são importantes, mas não constituem o foco proposto pelo editorial da Revista Brasileira de Psicanálise neste momento. Sua presença aqui é apenas como introdução, um pouco como representante da necessidade de estabelecer um ponto seguro de partida.

A partir de agora, procuro seguir o que me foi solicitado: um depoimento pessoal sobre ética psicanalítica. Portanto, após a introdução formal acima, deixo de lado qualquer elaboração teórica sobre o tema, se bem que é inevitável que a teoria percorra implicitamente o relato de minha experiência como psicanalista e minha tentativa de sintetizar o que penso quando imagino uma ética psicanalítica. Uso ética sem vinculação com qualquer sistema filosófico específico, de forma livre, para condensar e sistematizar reflexões que circulam no meu dia a dia, na maior parte do tempo, de forma pré-consciente.

Nós, psicanalistas, temos uma linha de tempo própria, que segue a evolução da teoria e da técnica, com mudanças bem evidentes nos códigos de conduta. Além da evolução temporal, diversas culturas psicanalíticas pressupõem comportamentos diferentes. No entanto, o que vou buscar são invariantes em ética psicanalítica, se é que isto existe: princípios que possam ser atemporais, que deveríamos manter em qualquer tempo e qualquer cultura.

 

Meu modelo de analista ético

Um analista precisa ser uma boa pessoa

Apesar de a resposta parecer óbvia, a questão é muito mais complexa do que possa parecer à primeira vista. Pressupõe definir o que é ser uma boa pessoa e o risco de envolver julgamentos morais que sempre são acompanhados de arrogância/onipotência. De qualquer maneira, vou correr o risco de explicitar à qual noção de boa pessoa eu estou me referindo, condição que me parece pré-requisito para a construção de uma ética psicanalítica que não seja postiça, que não seja apenas seguir um código de conduta estipulado de fora. Por esse motivo não estou me referindo a nenhuma lista de mandamentos de boa conduta, por mais organizadores e indispensáveis que eles possam ser. O que considero central poderia ser enunciado nos seguintes termos: consideração pelo outro. Aliás, as próprias noções de ética e moral nascem relacionadas com a inevitabilidade do registro da existência do outro e da dependência que temos dele para nos constituirmos como sujeito. Inclusive, em algumas línguas, como no hebraico, os termos "outro" e "responsabilidade" têm exatamente a mesma raiz.

A própria evolução do pensamento psicanalítico reflete o lugar central do outro, incorporando de forma crescente a visão de um psiquismo não somente em uma perspectiva individual, intrapsíquica, mas como algo que se forma, desde o início, como parte de uma rede emocional e cognitiva de inter-relações. O outro, cada vez de forma mais clara, se torna constitutivo, não apenas importante, mudando o qualificativo da necessidade. Esse reconhecimento expõe um paradoxo: precisamos admitir nossa dependência dos outros para nos tornarmos seres autônomos. Tornar-se adulto no mundo social envolve um golpe no narcisismo, significa aceitar em algum grau que o outro não é um incômodo, que atrapalha nossos desejos e com o qual temos que nos conformar.

Klein nos situou como seres morais desde o início, e a reparação depressiva pressupõe consideração com o objeto, responsabilidade pelo que nossos atos podem causar, não apenas culpa persecutória. A responsabilidade pelo outro não é apenas um dever, mas precondição básica para a felicidade, e a reparação depressiva não é o desejo maníaco de criar um mundo de justiça para todos, mas o reconhecimento de nossa dependência mútua.

Assim, a solidariedade passa a ser um elemento ético básico. Apenas com o cuidado de se evitar a associação desse termo com mandamentos religiosos ou como uma exortação a que nos transformemos em uma formação reativa em ação. O sentido é bem diverso. Procura sublinhar que a consideração pelo outro requer que um árduo caminho na elaboração das demandas narcísicas tenha sido percorrido com algum sucesso, o que envolve a consciência clara de que essa tarefa nunca se conclui completamente. É um desafio permanente.

Portanto o meu modelo de analista ético ideal é uma boa pessoa, que tem consideração pelo outro em todos os âmbitos de sua vida, como um princípio interno, não estabelecido como uma lei apenas externa. E mais, tem esse princípio como precondição para ser feliz. Como se não bastasse, precisa ainda ter a humildade de admitir que isto não é dado, é uma conquista diária.

 

Um analista precisa ter um respeito visceral pela verdade

Lembro Freud (1937/1974), em "Análise terminável e interminável", quando diz que o trabalho analítico está fundado sobre o amor e o reconhecimento da verdade. Mas invocar Freud não tem a intenção de buscar respaldo para uma afirmativa. É para destacar a presença desse fator, como marcando a psicanálise desde seu início, como uma daquelas invariantes que precisam sobreviver a qualquer mudança na teoria e na técnica. E constatar que com os anos de envolvimento com a psicanálise essa afirmativa foi ganhando para mim uma dimensão diferente, mais essencial, inegociável.

Volto a destacar, com a chance de me tornar repetitiva, mas sem poder evitar porque a questão é séria demais: não me refiro a qualquer discurso moralista contra a mentira, mas à convicção de que ter acesso à verdade psíquica é essencial para o funcionamento da mente e para a diminuição da dor psíquica. Portanto, não me refiro a busca de uma "verdade" metafísica ou às várias discussões sobre o conceito de verdade. Bion (1962/1991) levou essa questão muito além: no seu modelo digestivo de mente, a verdade é o alimento do aparelho para pensar que, sem ela, sofre de inanição. Assim, essa convicção acaba por se transformar em um imperativo ético que vale para nosso relacionamento com o paciente e conosco mesmos. Faz parte dessa visão a consciência de que é necessário que haja condições para que a verdade seja recebida e contida. Senão, a imposição da verdade passa a ser um ato de violência. Portanto, o amor à verdade precisa estar associado à consideração pelo outro, para que seu uso não se transforme em uma arbitrariedade e tenha seu sentido deturpado.

 

Um analista precisa crer na existência dos processos inconscientes

Outra afirmativa óbvia. Mas vale a pena insistir, porque crer na existência do inconsciente pressupõe que saibamos (não apenas intelectualmente) que esses processos nunca estão sob controle, nem nos pacientes nem em nós mesmos. O fato de termos nos analisado apenas nos auxilia a respeitar e conviver melhor com eles, talvez encontrar melhores alternativas para os conflitos, principalmente buscar o reservatório de riqueza simbólica que representam. Novamente é preciso ser humilde, não nos deixarmos seduzir pelo apelo nar-císico de nosso poder e saber que a crença na força do inconsciente precisa ser renovada a cada dia. Se teoricamente não temos sombra de dúvida, sobram exemplos das várias formas que podem assumir a negação do inconsciente.

Freud revolucionou toda noção ética ao destacar o papel do inconsciente na determinação dos atos humanos, colocando automaticamente em questão qual a responsabilidade por nossas ações, se somos ou não responsáveis pelo que fazemos sem estarmos conscientes. Se isso pode dar margem a um sem-número de especulações filosóficas, não pode deixar qualquer margem de questionamento para nós, analistas, que ancoramos nosso trabalho na importância da dimensão inconsciente. E, principalmente, que esse princípio se aplica, em primeiro lugar a nós mesmos, ao compromisso com o contato permanente com nossa vida inconsciente, à possibilidade de termos acesso à verdade de nossa realidade psíquica.

Partindo-se do princípio de que temos uma boa pessoa, com respeito pelo outro e pela verdade, podemos pensar no que seria uma ética específica da posição de psicanalista.

 

Um analista precisa ser neutro

Condenso nesta palavra o que me parece ser a síntese da função psicanalítica e adianto uma posição: a ética psicanalítica nessa perspectiva fundamenta-se em uma visão (não teórica, mas visceral, constitutiva) da função de um psicanalista, da forma como percebe sua posição, com seu alcance, objetivos e limitações.

Mas qual neutralidade?

Apesar do sentido de "neutralidade" parecer claro à primeira vista e ser usado nos escritos psicanalíticos muitas vezes como se fosse de entendimento uniforme, caberia a pergunta: a qual neutralidade estamos nos referindo quando falamos da neutralidade do analista? Todos conhecem a evolução do pensamento psicanalítico a esse respeito. Preocupado em distanciar a psicanálise do efeito sugestivo, que ameaçava sua credibilidade científica, Freud coloca abstinência e neutralidade entre os requisitos técnicos essenciais, apresentando o modelo do analista-espelho que, diga-se de passagem, não era seguido por ele. No entanto, fenômeno onipresente nas relações humanas, a sugestão não poderia estar ausente entre analista e paciente, e os fenômenos transferenciais evidenciam claramente essa influência. Mais do que simples influência, constitui componente fundamental do efeito terapêutico da psicanálise, colocando o analista na posição das figuras parentais e estabelecendo, de saída, uma assimetria intrínseca nessa relação.

Com o tempo e a experiência, a postura de tentar manter afastada a óbvia participação dos processos inconscientes do analista como algo que prejudicaria o processo psicanalítico mudou. A mente do analista em todas as suas dimensões passou a ser mais estudada, e os fenômenos contratransferenciais foram resgatados da posição exclusiva de pontos cegos para serem analisados e incluídos oficialmente no arsenal de recursos da psicanálise. Seguiram-se as noções de campo intersubjetivo e outros desdobramentos, cada vez mais incluindo o analista no processo. O funcionamento psíquico do analista, em suas dimensões consciente e inconsciente, estabelece-se, assim, como seu principal instrumento de trabalho, determinando sua maneira de perceber e interpretar. Mas é, ao mesmo tempo, uma das principais fontes de problemas éticos, já que analistas também estão permanentemente sujeitos à pressão de sentimentos inconscientes, inerentes à natureza humana. Não temos controle absoluto sobre nossos processos inconscientes e não estamos imunes à emergência de pontos cegos, atuações etc. Assim, o que nos confere um poder a ser usado a favor do paciente e a possibilidade de compreendê-lo são também nossa maior vulnerabilidade, e acaba por afetar o paciente na mesma medida. Temos, portanto, a responsabilidade de, a partir de nossas análises pessoais, buscar mais condições de refletir, não atuar, transitar mais livremente no mundo das emoções e usar essa capacidade como nosso principal instrumento de trabalho.

Na perspectiva que destaco aqui, neutralidade refere-se a um qualitativo essencial, um dos elementos que definiriam a identidade psicanalítica, já que se originaria na compreensão de sua função, no compromisso (ético) de usar a sugestão de uma maneira específica, renunciando a qualquer forma de poder autoritário sobre o paciente. Mas, sim, utilizando o poder que sua posição lhe confere para tornar possível ao paciente tomar contacto com sua realidade psíquica, garantindo que as várias vozes internas possam se manifestar com suas versões, seus medos, seus argumentos, levando à possibilidade de melhores acertos e negociações. Se seguirmos nessa linha de pensamento, fica patente que uma ética psicanalítica remete às relações de poder na interação analítica. A necessidade de manter a assimetria é fundamental. Sem ela, nos eximimos da responsabilidade na condução do processo e deixamos o paciente desamparado. O compromisso ético é o de usar a posição assimétrica com neutralidade, restringindo seu poder ao de auxiliar o paciente a encontrar seus próprios recursos e alternativas. Conspiram contra o desejo do paciente de encontrar uma figura onipotente, protetora, que o libere de sofrimentos e frustrações e o desejo do analista de livrar-se de seus próprios sentimentos de insegurança e acreditar ser onipotente, perdendo a noção do paradoxo que a transferência revela, o ser/não ser implícito da sua posição. Como analistas não estamos livres do desejo de manter a onipotência infantil, e a posição de psicanalista pode ser usada para nos sentirmos aquele que interpreta desde uma posição de superioridade benevolente. Assimetria não pressupõe uma relação superior/inferior.

Assim, como já foi destacado, a assimetria deve ser mantida, ou recusamos ao paciente a ajuda que ele pede, mas sem significar dominação. Manter as regras do setting é um compromisso ético para proporcionar ao paciente um contexto de trabalho neutro, com o estabelecimento de limites aos quais todos nós precisamos nos sujeitar. Vale lembrar que o setting a que me refiro comporta muito mais do que as combinações objetivas, mas, principalmente, uma atitude mental do analista, continente das angústias, não moralista, neutro na acepção destacada aqui.

Colocar "neutralidade" nessa posição de destaque é uma opção que não dá conta da riqueza de elementos que compõem a identidade de um psicanalista nem de seu papel, mas me parece destacar parte essencial da postura ética imprescindível, que diferencia a psicanálise de outras psicoterapias. Acreditar que as escolhas são sempre do paciente é a premissa que nos dá convicção de que não sabemos o que é melhor para ele, e somente nosso narcisismo pode nos levar a pensar de outra forma. Vamos ter sempre uma opinião, consciente ou não, a respeito do que ele nos traz e, se não a expressamos, não é por uma simples regra técnica, é por sabermos que ela é apenas isto, nossa opinião, mas não a certa ou a melhor. E mesmo que hipoteticamente pudéssemos supor alguma situação na qual soubéssemos o melhor para o paciente, nossa função não seria a de comunicar esse "saber". Mais do que um conhecimento de conteúdos, o principal é que ele possa ir "aprendendo" a utilizar seus instrumentos de pensar, como apontado com maestria por Bion (1991). Senão, estamos fazendo outra coisa que não psicanálise.

Uma pequena situação para exemplificar o que foi falado acima: trata-se de um paciente ao redor dos trinta anos, cuja angústia maior, em um determinado momento de sua análise, está centrada no dilema entre continuar trabalhando com o pai ou abrir seu próprio negócio. Vários vértices desse conflito foram sendo discutidos, inclusive o papel da dúvida na manutenção do status quo, pelo medo de se responsabilizar por uma decisão. Em um dado momento, queixa-se de que eu não digo o que penso. Na verdade, esta é uma leitura equivocada, já que digo o que penso: colocando de forma esquemática, penso que ele não se define porque quer as vantagens de continuar com o pai (com todas as fantasias envolvidas), sem as desvantagens que acompanham essa escolha, o mesmo valendo para a outra opção (abrir seu próprio negócio). Mas, de certa forma, o paciente tem razão, não digo parte do que penso, aquela parte que inevitavelmente forma opiniões e teria palpites sobre a melhor decisão. É isto que o paciente reivindica, ao menos nesse momento, que eu me responsabilize por alguma decisão, o que significaria vê-lo como incapaz de decidir e arcar com as consequências da decisão. Mesmo que, nesse momento, ele ainda não se sinta capaz de conter a angústia de uma decisão que envolve renúncia e riscos, não é minha função conduzi-lo em alguma direção. Passa a ser uma questão central no processo psicanalítico; aumentar sua capacidade de tolerar incertezas e de enfrentar esses dilemas. Qual a melhor decisão para o paciente? Não sei, e é preciso estar convicta de que sei o que eu escolheria, não o melhor para ele.

A pergunta que se segue é automática: o que eu penso e sinto não é transmitido de alguma maneira? Possivelmente sim, através das várias formas de comunicação pré-verbal que se dão sem a mediação da consciência. Mas penso que não é invasivo se há da parte do analista a convicção de que os julgamentos que forma são uma reação inevitável da mente aos estímulos provocados pelo paciente e a nossa necessidade de nos assegurarmos de que sabe-ríamos tomar a decisão e poderíamos evitar angústia. Faz diferença desde qual posição nos comunicamos com o paciente e se acreditamos ou não que somos portadores da verdade.

 

O paradoxo da neutralidade

Ser neutro é, ao mesmo tempo, um estado impossível de ser atingido e uma necessidade absoluta para sermos éticos em nosso método de tratamento. Encontramos-nos diante de mais de um paradoxo: impossível/imprescindível, revelação/ocultamento (já que revelamos muito mais de nós mesmos se nos aferramos à ideia de nada revelar).

A neutralidade deve ser absoluta, referindo-se não à preocupação obsessiva com uma postura de distanciamento, mas a uma atitude mental que busca abrir caminhos para a expansão da capacidade do paciente de tomar contato com a sua realidade psíquica, o que traz também uma melhor percepção do mundo externo. A necessidade de resistirmos à tentação de conduzirmos nossos pacientes para as nossas verdades e escolhas deve ser constante; assim como de refletirmos sobre a origem de nossos atos quando tendemos a agir na direção oposta.

Meltzer (1992) descreve de forma simples e clara o que procurei destacar acima quando define os traços principais de uma postura ética compatível com os princípios psi-canalíticos. Assim, o papel do psicoterapeuta seria:

[...] seguir, não conduzir, na busca da (inalcançável) verdade; construir e preservar um enquadre no qual isto possa ocorrer; possibilitar a evolução do paciente sem [impor-lhe] metas; buscar o significado e não o exercício do juízo moral sobre a conduta; estar preparado para o sacrifício pessoal próprio da busca dessas aspirações, sem impor aos outros esses sacrifícios; restringir a influência de si mesmo sobre o paciente à clareza que a comunicação irradia e não à ação; falar verazmente (p. 160).

Como podemos ver, nessa perspectiva, neutralidade entrelaça-se intimamente com uma postura ética a ponto de não se poder delimitar onde começa uma e termina a outra. Um analista precisa ser neutro para ser ético, e ser neutro relaciona-se com a ética implícita na sua função.

 

Um analista ético precisa/não pode transgredir

Mais um paradoxo inevitável: aceitar um código básico de normas que nos incluem no discurso da psicanálise e, ao mesmo tempo, manter a possibilidade criativa da transgressão.

A chamada pós-modernidade tem se caracterizado por uma crise ética de proporções ainda não bem dimensionadas. O niilismo que caracteriza nossos tempos faz com que cada interpretação, cada ponto de vista seja considerado relativo, com o risco de tudo ser possível em determinado espaço e tempo, sem que seja possível estabelecer parâmetros éticos (por exemplo, o holocausto seria explicado e justificado dentro das condições socioeconómicas da Europa pós-Primeira Guerra). A importância de aceitar um mundo suprapessoal de normas fica diminuída, e perde-se de vista a função implícita contida nessa aceitação: não sou onipotente e preciso reconhecer o outro como sujeito autónomo igual a mim (Steuerman, 2003).

É claro que nós, psicanalistas (e nossas instituições), estamos imersos nesse caldo de cultura. A questão é como diferenciar as modificações nas condutas dos psicanalistas que representariam um questionamento importante de regras estabelecidas (número de sessões, uso do divã, análises condensadas etc.) de um afrouxamento de padrões éticos que buscariam caminhos mais curtos, evitando confrontos, apenas buscando interesses próprios.

O dilema da transgressão acompanha o homem desde o início, o que claramente fica estabelecido na bíblia. No Gênesis, a imortalidade e a felicidade eterna eram garantidas no paraíso, com a condição de que a lei que proibia o conhecimento não fosse transgredida. A transgressão, neste caso, foi decisiva. Transgredir a lei que impede o crescimento, oferecendo a ilusão de manutenção da onipotência, é salvador e constitutivo do humano. Não podemos deixar de questionar regras técnicas psicanalíticas apenas para nos sentirmos seguros de que assim estamos praticando a verdadeira psicanálise. Mas não basta transgredir, é necessário articular a transgressão como linguagem organizada que possa ser contrastada com o já existente, ou estamos confundindo transgressão criativa com perversão. Não basta conhecer o que impulsionou a transgressão, é necessário captar a inteligibilidade do sistema contra o qual a transgressão torna-se necessária.

O compromisso com o método psicanalítico, com a busca da verdade, torna-se, novamente, um imperativo ético, não apenas para entender o material do paciente, mas para pensar sobre os vários fenômenos que influenciam nossos códigos de conduta. É como se o fundamental do método de Freud, com sua liberdade de questionamento e possibilidade de rever conceitos, precisasse ser resgatado para pensar também nossa atividade como psicanalistas e nossas instituições. Não me refiro, portanto, a um conjunto de regras técnicas, mas ao compromisso com a verdade e a clara noção de que não temos o controle absoluto sobre nossa conduta, porque, em qualquer experiência da vida, funcionamos em um duplo registro, consciente e inconsciente.

Sem essa possibilidade de reflexão, ficamos sem parâmetros honestos para avaliar as motivações das condutas que assumimos e um caminho para enfrentar o dilema da transgressão.

Quando a psicanálise busca a segurança do paraíso, o ato psicanalítico perde seu caráter transgressor criativo essencial. Mas quando a transgressão é valorizada por si só, como se fosse sinônimo de criatividade e inovação, sem ser questionada, o ato psicanalítico aproxima-se da perversão e os limites éticos ficam borrados.

Não esquecer: toda e qualquer ética psicanalítica não pode abarcar apenas a dimensão do sujeito analista e sua consciência moral com seu paciente. A extensão para uma ética que abarque as relações com as instituições psicanalíticas é parte indissociável da discussão. Na verdade, seguem os mesmos princípios que organizariam uma ética privada, mas com os fenômenos grupais interferindo diretamente. Há a mesma necessidade de reconhecer a importância do outro e escutá-lo de fato, não só como formalidade. Há a mesma necessidade de que triunfe o respeito pela verdade e não nossa necessidade de nos sentirmos seguros em grupos determinados e detentores da verdade. Como sempre, é indispensável que as demandas narcísicas possam ser admitidas, monitoradas, acalmadas. E, se falamos de instituições, o compromisso ético com a formação de analistas éticos forma toda uma outra área de estudo que, no entanto, escapa ao alcance deste artigo.

Meu modelo de analista ético é, como não poderia deixar de ser (e, se pudesse, estaríamos falando de qualquer outra coisa, mas não psicanálise), humano.

Em poucas palavras, sofre todas as vicissitudes das condições de desamparo em que nasce, da dependência intrínseca do outro, não só para que sobreviva fisiologicamente, mas para que se constitua como um ser pensante, com consciência da sua existência. Precisa ser narcisicamente investido para que possa enfrentar as desilusões dessa mesma ilusão que precisou para sobreviver. Como qualquer humano, segue toda a vida na busca da ilusão perdida e de uma maturidade que pressupõe um equilíbrio nunca alcançado completamente entre desejo e realidade, satisfação e frustração. E só é autônomo quando consegue distinguir entre o mundo dos seus desejos e a realidade do mundo no qual existem outros.

Mas, por alguma razão que nunca pode ser determinada em sua extensão, decide ser psicanalista e trabalhar com o psiquismo humano e, com isso, querendo ou não, assume um compromisso de, para poder exercer sua função, cuidar de seu instrumento de trabalho, seu próprio psiquismo. O cuidado com sua formação passa, portanto, a não ser opcional, mas permanente. E ao falarmos em formação, o eixo central se situa no cuidado com seu funcionamento psíquico e a capacidade de se auto-observar; ser sincero consigo mesmo e enfrentar suas limitações são um imperativo ético.

Na solidão dos consultórios só contamos conosco mesmos e com nossa constelação de objetos internos para nos avaliar e conduzir. Os códigos de ética formais não têm alcance direto, apesar de serem importantes como um alerta para os riscos de transgressões sempre presentes. Uma conduta ética precisa ser um imperativo interno, sentido como aceito pelo indivíduo, com toda carga de privação que possa trazer, mesmo que sua origem seja uma imposição externa: a necessidade de aceitarmos a alteridade e nos desiludirmos acerca de nossa onipotência.

 

Uma certa autocrítica

Relendo o que escrevi, dou-me conta de que há repetições, que as ideias nem sempre se encadeiam em uma sequência lógica bem clara e que há afirmativas que não estão suficientemente discutidas. Além disso, o tom poderia sugerir uma visão idealizada, um modelo ingênuo de analista ético. Mas, revendo o objetivo proposto, opto por deixar o texto nesse formato e confio que o leitor irá compreendê-lo como uma utopia, um "não-lugar" que se deve seguir buscando, mesmo sabendo que nunca será alcançado.

 

Referências

Bion, W. (1991). O aprender com a experiência. Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1962)        [ Links ]

Bion, W. (1991). A atenção e interpretação. Rio de Janeiro: Imago.         [ Links ]

Castoriadis, C. (1993). La institucón imaginaria de la sociedad. Argentina: Tusquets Editores.         [ Links ]

Freud, S. (1974). Análise terminável e interminável. In. S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. (Vol. 23, pp. 241-287). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1937)        [ Links ]

Meltzer, D. (1992) Claustrum - una investigación sobre los fenómenos claustrofóbicos (1ª ed.) Buenos Aires: Spatia Editorial.         [ Links ]

Steuerman, E. (2003). Limites da razão: Habermas, Lyotard, Melanie Klein e a racionalidade. Rio de Janeiro: Imago.         [ Links ]

Valls, A. L. M. (1998). O que é ética. São Paulo: Brasiliense.         [ Links ]

 

 

Correspondência:
Viviane Sprinz Mondrzak
[Sociedade Psicanalítica de Porto Alegre SPPA]
Rua Carvalho Monteiro, 234/804
90470-100 Porto Alegre, RS
Tel.: 51 3330-6513
mondrzak@terra.com.br

Recebido em 18/01/2012
Aceito em 21/2/2012

Creative Commons License