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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.46 no.1 São Paulo jan./mar. 2012

 

ARTIGOS TEMÁTICOS: ÉTICA E PSICANÁLISE

 

Sobre as falhas do analista

 

On the analyst's failures

 

Sobre los fracasos del analista

 

 

Edna Vilete

Membro efetivo da Sociedade Psicanalítica do Rio de Janeiro

Correspondência

 

 


RESUMO

A autora apresenta um novo aspecto da técnica psicanalítica, dirigida aos pacientes psicóticos e borderlines. Ela desenvolve o conceito de Winnicott sobre as falhas do analista, no campo da transferência-contratransferência, e revela suas próprias falhas no tratamento de dois pacientes.

Palavras-chave: pacientes psicóticos e borderlines; falhas do analista.


ABSTRACT

The author approaches a new aspect of the psychoanalytic technique, aimed at borderline and psychotic patients. She develops Winnicott's concept on the analyst's failures, in the area of transference and countertransference and reveals her own failures in the treatment of two patients.

Keywords: borderlines and psychotic patients; analyst's failures.


RESUMEN

El autor analiza un nuevo aspecto de la técnica psicoanalitica dirigido a los pacientes psicóticos y borderlines. Recorre al concepto de Winnicott de los fracasos del analista y presenta, como ejemplo, sus próprios fracasos en el tratamiento de dos pacientes.

Palabras clave: pacientes psicóticos y borderlines; fracasos del analista.


 

 

Freud, em sua extensa obra, deixou-nos um legado que abrangia também o trabalho do psicanalista com o seu paciente. Entretanto ele se referia à análise das neuroses e, assim, o amplo território do narcisismo permaneceu isolado, até que os analistas interessados e estudiosos do desenvolvimento primitivo da criança ali ousaram penetrar. Dentre eles podemos citar Anna Freud, Melanie Klein, Margaret Mahler, Spitz, Erik Erikson e Winnicott. Os diversos elementos da prática psicanalítica, como a transferência e a contratransferência, continuaram presentes e sendo utilizados, mas com uma nova feição baseada nos trabalhos de observação da relação da mãe com o bebê. Winnicott, por exemplo, nos apresentou uma variedade de transferências, em que o analista é, tão somente, uma extensão do paciente (um objeto subjetivo seu). Mostrou o valor da comunicação direta, silenciosa e a necessidade do manejo em determinadas situações clínicas, entre outras descobertas e recomendações. Essa nova postura técnica possibilitou o tratamento de pacientes com uma patologia primitiva - os casos fronteiriços ou as fases e momentos psicóticos que ocorrem durante a análise de pacientes psicóticos ou de pessoas normais.

A partir da importância que se atribuiu ao ambiente no desenvolvimento do bebê, o setting analítico ganhou um novo significado, o conceito de contratransferência foi enriquecido e novas responsabilidades envolveram o analista, sobretudo ao tratar de um paciente que vive um período de regressão à dependência no curso de seu processo de análise. O analista é solicitado, então, a ocupar o lugar necessitado da mãe suficientemente boa dos primeiros tempos de vida, incluindo o seu estado especial de preocupação e devoção, pois, diz Winnicott, que nesse tipo de trabalho é mais correto dizermos que o presente volta ao passado, e é o passado. Esse retorno ao passado é, entretanto, um período doloroso, porque o paciente tem consciência dos riscos inerentes, o que não ocorria com o bebê na situação original, e as exigências feitas ao analista são muito grandes, pois como nos lembra Winnicott o analista não é, afinal de contas, a mãe natural do paciente.

Nenhum encargo, porém, é mais pesado ao analista do que sua responsabilidade na falha inevitável que comete durante o processo de uma análise, levando o paciente a reviver a situação de fracasso do ambiente original, causa de suas reações de defesa e das distorções do seu self. É preciso lembrar que na teoria da regressão de Winnicott, após o progresso, após o estabelecimento da confiança, os nossos equívocos, esquecimentos ou falta de empatia seriam os novos traumas que desencadeariam o colapso do paciente. Assim, aquilo que se chamaria de resistência no trabalho com pacientes neuróticos, aqui sempre significa que o analista cometeu um erro, ou comportou-se mal em relação a algum detalhe; de fato, a resistência persiste até que o analista descubra o erro e o utilize.

Esse lugar em que Winnicott coloca o analista - o analista que falha - é uma ideia original, de extrema importância clínica, e que tem sido pouco abordada e estudada. Ao longo dos textos em que trata do assunto, ele apresenta proposições instigantes dentro, sobretudo, do campo da transferência-contratransferência, muitas das quais retêm um mistério que continuo tentando desvendar e que se tornou o motivo para o meu trabalho. É com esse propósito que apresento um resumo do tratamento de dois pacientes meus.

Lucas me procurara ainda adolescente em virtude do fracasso de sua primeira relação sexual. Aos poucos, tornou-se evidente que esse sintoma representava o fragmento de uma dificuldade mais ampla, pois ele fugia de toda e qualquer relação afetiva em que pudesse existir uma intimidade maior. Por esse motivo foram necessários quatro anos para que a distância entre nós fosse progressivamente diminuindo.

Durante esse período, nosso trabalho cuidou do uso frequente que fazia das drogas, bem como da barreira intelectual com que ele se defendia, e Lucas nitidamente progrediu em meio à sua turbulência adolescente. Ultrapassa o vestibular, elege uma profissão, abandona as drogas, consegue estágio em uma importante instituição financeira e, antes mesmo de concluir seu curso, é admitido como profissional, recebendo um excelente salário. Uma das amigas, atraída por ele e muito persistente, acaba por levá-lo a uma situação de namoro. É esta a oportunidade para que Lucas viva as primeiras experiências adultas de contato sexual, constatando suas possibilidades de ereção e prazer. Não chega, entretanto, à relação genital, pois rompe com a namorada por sentir que ela o aprisionava, sem chegar a perceber que, no fundo, ele estava se tornando prisioneiro do seu próprio desejo por ela. Alguns meses depois isso se reedita na transferência. Havia sido um ano produtivo e proveitoso; as férias se aproximavam e em suas comunicações surgiam pequenos indícios de depressão e angústia provocados pela nossa separação. Ele, entretanto, falava de sua vontade de não se prender a compromisso algum, nem ao emprego, onde havia sido promovido, nem à faculdade, onde cursaria o último ano, ou à análise. Economizara durante todo o ano para fazer uma viagem à Europa e gostaria de, ao retornar, permanecer por seis meses a um ano nos Estados Unidos. Inicialmente tentei mostrar sua saída como resistência, mas logo percebi que esse tipo de interpretação a nada levaria, pois sua atitude era de fuga, seu desejo, o de liberdade diante de um medo acentuado de se ver dependente. Preferi, então, dizer-lhe que, de fato, ninguém o prendia e que a única razão válida para ele continuar seria o seu desejo de ficar e o valor que atribuísse ao seu tratamento. Ele se sentiu, então, como que libertado, e as providências para o seu embarque assumiram aspectos de uma reação maníaca. Enquanto isso, eu me dava conta da minha tristeza em vê-lo partir, nada podendo fazer para evitar a sua saída. Só me restava aceitar a sua decisão e esperar, acreditando que o desejo de prosseguir o nosso trabalho existisse também dentro dele, e que apareceria no devido tempo. Também pensei que, naquele momento, eu era depositária dos sentimentos que ele viveria se não se evadisse de uma relação afetiva, e talvez fosse necessário que ele visse acontecendo comigo exatamente aquilo que temia passar. Teve também importância, e numa extensão que só mais adiante pude alcançar, o fato de que eu estava, desde há alguns meses, recolhendo material de nossas sessões para desenvolver um trabalho que começara a escrever. Eu perdia assim, ao mesmo tempo, o meu paciente e o trabalho que idealizava. Ele, entretanto, partiu deprimido, pois quase às vésperas do embarque mostrou a preocupação de não ser, um dia, capaz de viver um vínculo permanente com alguém.

Retornou, entretanto, dois meses depois, e me telefonou imediatamente após a sua chegada, desejando continuar seu tratamento. A volta de Lucas era o reconhecimento de sua ligação comigo e marca um período em que ele se dispõe a enfrentar suas dificuldades sexuais, passando a ter uma atitude ativa de colaboração, como um consentimento para uma situação prolongada de regressão à dependência.

Desde a sua volta Lucas se mostra assíduo e pontual, mas se queixa de tédio e solidão nos finais de semana, reconhecendo que esperava ansioso, pela segunda-feira quando retornaria às sessões. Passa a sentir, ao mesmo tempo, intensamente, a necessidade de uma companhia feminina e acaba por se apaixonar por uma colega de trabalho, moça descrita como bonita e sensual. Quando finalmente iniciam o namoro, ele teme revelar sua inexperiência, embora se surpreenda por ter facilmente o pênis em ereção, quando, até então, se julgava impotente. Com a namorada, que se revela terna, sensível e mais experiente, realiza timidamente seu aprendizado sexual, ficando, então, evidente seu temor à penetração. Descobre, porém, o prazer que sente em ser acariciado e beijado e recorda como perdera cedo o peito, o colo e o aconchego da mãe com o nascimento dos irmãos. Fora sempre estimulado a crescer depressa, precocemente, ganhando autonomia, caminhando e controlando, com rapidez, os esfíncteres. Apesar, entretanto, das carícias e beijos que troca com a namorada, teme uma intimidade maior. Aos poucos me revela seus medos, como o de não conseguir manter o pênis em ereção. Ele se envergonha de precisar das carícias que recebe para se excitar, pois no seu ideal de virilidade deveria estar sempre de "pau duro", diz ele, pronto para "trepar" e, por causa dessa exigência, sente-se cada vez mais angustiado.

Uma outra angústia específica, a preocupação com a situação econômica mundial gerada pela crise do petróleo - decorrente da escassez na produção do petróleo -, surge, agora, de maneira repetida e persistente, traduzindo e antecipando uma ameaça de aniquilamento, de falência pessoal, que acaba realmente por acontecer, perdurando por um longo período. Seus episódios mais intensos de angústia são provocados, principalmente, pelas separações vividas com a minha ausência e se manifestam através de sintomas corporais, transtornos psicossomáticos que revelam o fracasso da personalização no seu desenvolvimento e a falta da coesão do psique-soma. Em Lucas eles surgiram pela ruína do falso self intelectual que mantinha como defesa, e ele sente medo de se desintegrar. Nos braços da namorada, e no seu acolhimento carinhoso, ele consegue certo alívio e relaxamento, pois durante o resto do dia está tenso, enrijecido, formando com a contração dos músculos como que uma couraça protetora que o protegia da desintegração temida. Na ocasião ele se queixa, repetidamente, de uma empregada que estragara roupas valiosas que trouxera de sua viagem à Europa, e eu entendo que essa é a sua maneira de reclamar que, ao se entregar aos meus cuidados, eu o despojara da onipotência, das defesas que o tornavam, até então, invulnerável.

Apesar da relação terna que ele mantém com a namorada, Lucas não consegue, ainda, após vários meses, completar uma relação sexual - não chega à penetração vaginal - pois teme não manter o pênis em ereção. Continua, como me diz, tendo medo de "brochar". A persistência de seus sintomas leva-o, entretanto, a se desesperar, a se ver como um "caso sem jeito" e ele pensa, então, em encontrar a solução para o seu problema no tratamento cirúrgico preconizado por um urologista, em que, através da introdução de uma haste de silicone, ele teria a garantia de um pênis aumentado e sempre rígido, tal como ele desejava. Assim, ele tornaria concreto o falo que trazia encoberto em sua fantasia inconsciente, um ideal grandioso construído por ter sido o primeiro filho, o primeiro neto e o primeiro aluno durante anos escolares seguidos. Acreditava haver na família a expectativa de um destino brilhante para ele, mito alimentado pela mãe que sonhava ver o filho realizando tudo aquilo que o marido não fora capaz. Ele se sentia um instrumento para a satisfação narcísica da mãe, não tendo encontrado nela o espelho adequado que refletisse sua identidade básica. Pude entender, então, a falha em que incorri quando desejei utilizar os dados de nossas sessões para escrever um trabalho clínico, e não sei dizer qual código de comunicação transmitiu a Lucas o perigo a que ele estaria exposto com uma analista que, tal como a mãe, o utilizaria em seu próprio interesse, levando-o na ocasião a se afastar de mim, através da interrupção da análise, mas, ao mesmo tempo, aproveitando a minha falha para verificar a minha capacidade de respeitar a sua autonomia, de sofrer a sua perda e aguardar por ele. Só tempos depois de sua volta, ficou claro, para nós dois, o sentimento de Lucas de que a mulher desejada ou a analista ficariam "prosas", envaidecidas por seu desejo e pela necessidade que delas sentisse, ou gratificadas narcisicamente por sua potência e pelo progresso que alcançasse. Na ocasião, ele sonhava estar tendo uma relação sexual, sentiu-se com o pênis em ereção e fez movimentos enérgicos, sem conseguir, entretanto, gozar. Ocorrendo em um período de novas faltas e de repetições monótonas sobre suas dificuldades não resolvidas, esse sonho parecia expressar sua impossibilidade de gozar, ou seja, de aproveitar inteiramente o tratamento pelas razões que acabei de descrever. Foi a interpretação desse padrão de transferência que levou Lucas a compreender o seu medo de brochar como um receio de, ao contrário, se mostrar potente, e ele passou, desde então, a explorar, curioso e excitado, o corpo da namorada, ao mesmo tempo em que descobre, surpreso, que o que faço e lhe digo deve ser fruto de estudo, de um conhecimento que lhe parece misterioso e inacessível. Apesar de se sentir ainda bastante angustiado, mostra-se reconfortado com as sessões, pois passa a ver um sentido em seus sintomas, fazendo-me lembrar o que Winnicott nos diz sobre o fato da regressão alcançar e fornecer um ponto de partida, um lugar onde é possível o eu ser encontrado. O paciente, conclui Winnicott, entra em contato com os processos básicos do eu que fazem parte do desenvolvimento verdadeiro, e o que acontece daí por diante é sentido como real. Foi o que aconteceu com Lucas que, nos dois últimos anos de análise, adquiriu uma firme consciência de si mesmo, revelando uma sensibilidade até então encoberta: aprecia as flores do meu consultório, descobre enlevado a música, a poesia, conhece novos livros e autores e mostra-se afetuoso e espontâneo no contato com os outros.

Confirmando, assim, que o colapso não é tanto uma enfermidade, mas um primeiro passo no sentido da saúde, ele passa a sentir suas conquistas e o progresso alcançados, até então, como verdadeiros, ganhando uma confiança e uma segurança que nunca havia experimentado. Percebe sua coragem em viver, "pronto", como me disse, para o que der e vier.

Se a evolução de Lucas foi favorável, o mesmo não pode ser dito em relação a Marcos. Começara sua análise aos trinta anos, buscando ajuda por se encontrar em uma situação difícil. Executivo de uma importante empresa, ele ocupava um cargo de comando, agora ameaçado por manter uma relação secreta com a esposa do presidente que, desejosa de ficar com ele, ameaçava contar tudo ao marido. Com o tempo, porém, e à medida que me contava sua história, ficou evidente que não era o primeiro episódio dessa natureza em que se envolvia. Ao contrário, sua vida estava pontilhada de relações fugazes, com os mais variados tipos de mulher - uma vizinha de porta, a faxineira de um apartamento que mantinha no exterior, uma vendedora que o procurara na empresa, e assim por diante. Solteiro, bonito, sedutor e poderoso, ele se via conquistando toda mulher que o interessasse, e só através do nosso trabalho percebeu que, mais do que um conquistador, ele era alguém arrastado por uma excitação erótica que o punha, muitas vezes, em situações de perigo. Ele se expunha a contatos sexuais sôfregos, correndo o risco de ser surpreendido em desvãos de escadas, em um elevador, em um banheiro público ou no seu próprio escritório. Quase sempre eram ocorrências motivadas por um período infeliz no trabalho ou por fins de semana solitários.

A compreensão de que esses perigos correspondiam às suas experiências de menino de rua, filho temporão de uma família numerosa, de pais idosos que o deixavam entregue a si mesmo, levou-o a abrandar o impulso erótico e conseguir ter relações continuadas de namoro. Após quatro anos de análise, casa-se e tem duas filhas, voltando-se desde então para uma vida tranquila.

Marcos era uma personalidade esquizóide, retraído e frio, mas, nos seus últimos anos de tratamento, passou a mostrar um comportamento afetivo e carinhoso com a família, aproximou-se dos amigos e desenvolveu uma capacidade de empatia que se mostra evidente, sobretudo, com seus subordinados mais humildes. Para ajudá-los em suas necessidades ele cria, na empresa que dirige, um programa de bônus e incentivos. Conta-me suas histórias e relembra as dificuldades pelas quais passou para estudar e subir na vida. Faz referência, por exemplo, à moça da copa, jovem inteligente e esforçada que, apesar de dois filhos pequenos - um deles ainda bebê - segue à noite um cursinho vestibular.

Diante do seu progresso combina comigo o término de sua análise quando voltássemos das férias de três semanas que eu tiraria.

Ao retornar, porém, ele me surpreende com a reviravolta em sua vida, informando-me, sumariamente, que tinha se envolvido com a moça do café, e esta contara ao marido o que estava acontecendo; o marido, enfurecido, foi à empresa e tornou público o caso dos dois. Em consequência do escândalo, a mulher de Marcos também toma conhecimento da traição e pede que ele deixe a casa. Agora, o enfurecido é ele, interpelando-me, agressivamente, sobre a validade desse tratamento. Perplexa, acolho a sua raiva, constato a sua angústia e ensaio entender com ele o que teria desencadeado todos esses fatos. Ele se recusa a colaborar e, a uma tentativa minha de relacionar as suas queixas com o meu afastamento, protesta com veemência, acusando-me (com justiça) de que eu estaria me defendendo. Percebo, então, que estou às voltas com uma transferência delirante e que ele precisava descarregar toda a raiva que sentia. Ao cabo de uma semana, porém, decide ir embora, recusando a minha ajuda para tentar reorganizar o caos em que tinha se instalado.

Algumas semanas depois, durante um sábado em que eu escrevia um texto, repetidas vezes meu pensamento se voltou para a situação que vivemos; para minha surpresa, na segunda-feira, ao chegar ao consultório, encontro uma mensagem sua querendo marcar uma consulta, quando, então, me conta que decidira me procurar porque no sábado tinha sentido uma angústia tão insuportável que precisara de uma medicação psiquiátrica de urgência. Depois que se acalmou decidiu que seria importante falar comigo a respeito porque pensara: "Acho que essa angústia é aquilo que a Edna dizia que eu tinha medo de sentir".

Do meu lado, durante as semanas anteriores, eu tinha me dado conta de que toda essa história não poderia ter se construído em apenas vinte dias e, assim, eu só poderia supor que o caso de Marcos com a moça da copa já existia antes da minha saída e ele o ocultara. Embora eu tivesse levado em conta essa hipótese enquanto ele estava comigo, por alguma razão ainda desconhecida para mim, eu não fizera diretamente essa pergunta simples - "Desde quando vocês estão transando?". Ao voltar ele me deu oportunidade para isso e pudemos também começar a entender por que eu me calara. Durante a sua análise, algumas vezes falamos da atitude da mãe de Marcos para com ele; mulher já idosa quando ele nascera, cansada da vida trabalhosa que levara e que, quando informada de alguma transgressão em que ele estaria envolvido com sua turma de rua, tranquilizava-se dizendo - "Não, o Marquinhos, não! Ele nunca faria isso". Marcos acreditava que essa certeza era mais negligência do que confiança nele, e assim ele se tornara o menino sonso. Agora eu entendia o porquê da sua raiva, pois eu não adivinhara ou pressentira o que estaria se passando com ele e, dessa maneira, eu me transformara na mãe cansada, voltada para as minhas férias e que o deixou entregue à própria sorte. Durante algumas semanas nossas sessões trataram desses seus sentimentos e, afinal, Marcos encerrou sua análise. Nunca mais o vi ou tive notícias dele.

Winnicott reafirma a necessidade e a importância da regressão à dependência no tipo de paciente que descrevi, quando nos diz que não podemos curar o nosso paciente através da análise das defesas, pois a cura só acontece se o paciente puder chegar à ansiedade em torno da qual as defesas foram organizadas. A cura, assim, só acontece se o paciente atingir o estado original de colapso ocorrido na infância. Se o paciente estiver preparado para aceitar esse tipo esquisito de verdade irá abrir-se o caminho para que a agonia seja vivenciada na transferência, nas reações às falhas e equívocos do analista. De um jeito curioso e instigante, ele também nos ensina que o paciente nos fará falhar de uma forma determinada por sua própria história. Não é difícil verificar essa evidência nos dois casos clínicos que descrevi, mas, para mim, o que continua tendo uma característica de mistério é o processo pelo qual isso acontece, de que maneira eu me transformei na figura materna de cada um, cometendo o mesmo erro que ela.

Winnicott nos consola do processo doloroso que é, para o analista, acompanhar o sofrimento do paciente, duvidando de sua capacidade como profissional, e mesmo de sua própria saúde mental, ao nos pôr no lugar do analista "suficientemente bom". Tal como a mãe dos primeiros tempos que precisa ser saudável para viver o estado de preocupação, o analista que falha seria aquele que, paradoxalmente, tem experiência, equipamento técnico e capacidade de se identificar com o paciente. É preciso esclarecer que estamos no território do narcisismo patológico, e a identificação do analista com o paciente é um processo de identificação primária com todo o risco, para o analista, de perder a sua própria identidade. Ele sintetiza, em um trabalho sobre os doentes mentais na prática clínica, tudo o que esse analista estaria provendo quando trata as falhas da provisão ambiental originária e diz, assim, a esse analista:

"Você se dedica ao caso.

Você aprende a saber como é se sentir como o seu paciente.

Você se torna digno de confiança para o campo limitado de sua responsabilidade profissional.

Você se comporta profissionalmente.

Você se preocupa com o problema do seu paciente.

Você aceita ficar na posição de um objeto subjetivo na vida do paciente, ao mesmo tempo em que conserva seus pés na terra.

Você aceita amor, e mesmo o estado de enamoramento, sem recuar e sem exibir a sua resposta.

Você aceita ódio e o recebe com firmeza, ao invés de vingança.

Você tolera, em seu paciente, a falta de lógica, inconsistência, suspeita, confusão, debilidade, mesquinhez etc. e reconhece todas essas coisas desagradáveis como sintomas de sofrimento. (Na vida particular as mesmas coisas o fariam manter distância.)

Você não fica assustado ou sobrecarregado com sentimentos de culpa quando seu paciente fica louco, se desintegra, corre pela rua de camisola, tenta suicídio, talvez com êxito. Se você é ameaçado de assassinato, chama a polícia, não só para proteger a si mesmo, mas também ao paciente. Em todas essas emergências você reconhece o pedido de socorro do paciente, ou um grito de desespero por causa da perda de esperança nessa ajuda.

Em todos esses aspectos você é, em sua área profissional limitada, uma pessoa profundamente envolvida com sentimentos e, ainda assim, à distância, sabendo que não tem culpa da doença do seu paciente e sabendo os limites de suas possibilidades em alterar a situação de crise. E se você pode controlar a situação, há a possibilidade de que a crise se resolva sozinha e, então, será por sua causa que o resultado foi alcançado (Winnicott, 1963/1990, p. 205).

 

Referências

Winnicott, D. (1978a). Aspectos clínicos e metapsicológicos da regressão no setting analítico. In Da pediatria à psicanálise. (pp. 459-481). Rio de Janeiro: Francisco Alves Editora. (Trabalho original publicado em 1954)        [ Links ]

Winnicott, D. (1978b). Variedades clínicas da transferência. In Da Pediatria à psicanálise. (pp. 393-398). Rio de Janeiro: Francisco Alves Editora. (Trabalho original publicado em 1955)        [ Links ]

Winnicott, D. (1990). Os doentes mentais na prática clínica. In O ambiente e os processos de maturação. (pp. 196-206) Porto Alegre: Artes Médicas. (Trabalho original publicado em 1963)        [ Links ]

Winnicott, D. (1999). A importância do setting no encontro com a regressão na psicanálise. In Explorações psicanalíticas. (pp. 77-82) Porto Alegre: Artes Médicas. (Trabalho original publicado em 1964)        [ Links ]

 

 

Correspondência:
Edna Vilete
[Sociedade Psicanalítica do Rio de Janeiro]
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Tel.: 21 2539-4230
edvilete@uol.com.br

Recebido em 11/02/2012
Aceito em 7/03/2012

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