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Revista Brasileira de Psicanálise

Print version ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.46 no.1 São Paulo Jan./Mar. 2012

 

INTERFACE

 

Necessidade, liberdade e repetição: sobre a potência do paradoxo

 

Necessity, freedom and repetition: on the power of the paradox

 

Necesidad, libertad y repetición: sobre la potencia de la paradoja

 

 

Oswaldo Giacoia Junior

Professor livre docente do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas UNICAMP

Correspondência

 

 


RESUMO

Este trabalho elabora questões éticas centrais no pensamento de Friedrich Nietzsche, valendo-se de uma perspectiva zen-budista, para a qual experiência e vivência são mais relevantes que especulação e teoria. A mediação da filosofia zen-budista permite interpretar conceitos como repetição, lembrança, liberdade, ressentimento e sentimento de culpa com base nas dimensões viven-ciais da existência, e aproximar, no plano da ética, teoria filosófica e experiência psicanalítica pela via dos conceitos de compulsão à repetição, devir-sujeito e responsabilidade. Para essa tarefa contribuem tanto os insights do pensamento zen-budista quanto a ironia filosófica de Sõren Kierkegaard, fecundando o diálogo entre a metapsicologia de Freud e a ética de Nietzsche.

Palavras-chave: ética; retorno; repetição; compulsão; subjetividade; liberdade; responsabilidade; sentimento de culpa.


ABSTRACT

The work at hand focuses on central ethical matters of Friedrich Nietzsches ideas, taking on a Zen Buddhist interpretation, to which living and experience are more relevant than a speculative or theoretic comprehension of ethical problems. I intend to show that the mediation of the Zen Buddhist philosophy allows for a more productive understanding of concepts such as eternal recurrence, repetition, responsibility, freedom, resentment, feelings of guilt and moral conscience, taking as a basis the dimensions of personal and existentialist experience. As a consequence of this hypothesis, a horizon of meaning is unleashed which allows the consistent approach, on the level of ethics, of philosophical theory with psychoanalytic experience, resorting to the possibilities opened by the concepts of repetition compulsion, subject to be, and responsibility. Such an approach is a task to which the insights of the Zen Buddhist line of thought contribute, along with the philosophic irony of Soren Kierkegaard, in order to fertilize the dialogue between Freud's metapsychology and Nietzsche's philosophy.

Keywords: ethics; recurrence; repetition; compulsion; subjectivity; freedom; responsibility; guilt feeling.


RESUMEN

El presente trabajo aborda cuestiones éticas centrales del pensamiento de Friedrich Nietzsche apoyándose en una perspectiva zen budista de interpretación, para la cual la experiencia y la vivencia son más importantes que una comprensión especulativa o teórica de problemas éticos. Pretendo mostrar que la mediación de la filosofía zen budista permite comprender deforma más productiva conceptos tales como eterno retorno, repetición, responsabilidad, libertad, resentimiento, sentimiento de culpa y conciencia moral, basándose en las dimensiones de la vivencia personal y de la experiencia existencial. Como consecuencia de esa hipótesis, se abre un horizonte de sentido que permite aproximar consistentemente, en el plano de la ética, la teoría filosófica y la experiencia psicoanalítica, recurriendo a las posibilidades abiertas por los conceptos de compulsión por la repetición, devenir-sujeto y responsabilidad, tarea en la que contribuyen tanto los insightsdel pensamiento zen budista como la ironía filosófica de Soren Kierkegaard, para fecundar el diálogo entre la metapsicología de Freud y la filosofía de Nietzsche.

Palabras clave: ética; retorno; repetición; compulsión; subjetividad; libertad; responsabilidad; sentimiento de culpa.


 

 

Neste artigo, pretendo submeter conceitos como "vontade de poder", necessidade, destino, liberdade, responsabilidade e repetição a um esforço de reflexão que, ao invés de mover-se no âmbito normativo do dever, das obrigações e imperativos, reaproxima a ética de uma acepção já contida em seu étimo, a de forma de vida. Recorro, para tanto, a uma interseção entre temas nietzschianos e a concepção zen-budista de Samsara/Nirvana para interpretar a ética como um caminho para Si-Mesmo, não como doutrina prescritiva, abrindo assim o espaço para uma perspectiva existencial, voltada para um devir-sujeito e um novo entendimento de responsabilização. Nessa interseção, penso ser possível apresentar os line-amentos de uma reflexão ética pertinente também ao âmbito da experiência psicanalítica, tomando como fio condutor o conceito de repetição.

Para tanto, recorro ainda à filosofia de Kierkegaard, e nela a uma tematização da repetição como experiência, que atua como mediação fecunda em vista dos fins visados nesse texto. Meu ponto de partida são as noções de fado e fatum, colhidas em dois textos particularmente relevantes de Friedrich Nietzsche.

"Minha plena realização do fatalismo. 1) por meio do eterno retorno e da pré-exis-tência. 2). por meio da eliminação do conceito 'vontade'" (Nietzsche, 1980b, p. 70).

Atestar o caráter imensamente aleatório de todas as combinações: segue-se daí que toda ação de um homem tem uma grande e ilimitada influência sobre tudo o que advém. A mesma veneração que alguém, olhando para trás, consagra ao destino inteiro, esse alguém tem de consagrar a si próprio. Ego fatum (Nietzsche, 1980b, p. 55).

Nietzsche tematiza nesses termos uma experiência de subjetivação, que se realiza no modo do "Eu" como fado, o que implica também a superação da antítese entre acaso e necessidade; o experimento de Nietzsche tem em vista, pois, uma coincidência entre afirmação da inflexível necessidade inerente ao todo (o destino) e a inexorável contingência da singularidade pessoal. Isso constitui um dos aspectos mais intensamente vivenciais da filosofia de Nietzsche, seu experimentum crucis. Uma filosofia experimental, como Nietzsche a pratica, abre-se

para um dionisíaco dizer-sim ao mundo, como ele é, sem subtração, exceção, escolha - ela quer o ciclo eterno -, as mesmas coisas, a mesma lógica e não lógica dos elos. Estado supremo que um filósofo pode alcançar; postar-se dionisiacamente em face da existência -: minha fórmula para isso é amorfati... (Nietzsche, 1980c, p. 492).

A afirmação da necessidade vigente em tudo o que foi, é e será - nela incluída essa fatalidade de mim mesmo como ego fatum - apresenta-se, pois, à primeira vista, como uma cosmovisão paralisante, conduzindo ao desespero ou à resignação, sobretudo se associada a uma concepção circular do tempo, de acordo com a qual todas as coisas repetem-se eternamente em ciclos sucessivos. Mas pode também transformar-se em acolhimento, no avesso de uma negação reativa e impotente. Então, ao invés de ser o exodus de um tránsfuga, um motivo para negar e depreciar a vida, a repetição promove um transitus para uma incondicional bendição (Ja-Sagen) da existência em sua totalidade.

Dizer sim à necessidade configura-se, no entanto, como um paradoxo: de um ponto de vista lógico, necessário é o que, de outro modo, não poderia existir nem ser pensado; querer o necessário e não meramente resignar-se a aceitá-lo; desejar tê-lo da cappo, com a mesma lógica de todas as suas conexões, é uma experiência intensiva e singular de um Si-Próprio, que imprime uma inflexão na necessidade, tornando-se com isso, a um só tempo, ego fatum e amor fati.

Essa vontade afirmativa não se confunde com livre-arbítrio. A conjugação de ego fatum e amor fati é antes a práxis, a forma de vida que corresponde à teoria do eterno retorno do mesmo, como (auto) supressão da vontade ressentida, realizando-se na e pela repetição -Wiederholung (uma retomada, um reapropriar-se daquilo que sempre foi). Não a reprodução mecánica do mesmo, mas uma conversão da necessidade em experiência de vida e destino:

Oh du mein Wille! Du Wende aller Noth

Du meineNothwendigkeit! Bewahre mich vor allen kleinen Siegen!

Du SchickungmeinerSeele, die ichSchicksalheisse!

Du-In-mir!

(Oh tu, minha vontade! Tu inflexão de toda constringência,

Tu minha Necessidade! Guarda-me de todas as pequenas vitórias!

Tu destinamento de minha alma, que eu chamo de destino!

Tu - em mim!)

Oh Wille, WendeallerNoth, du meineNothwendigkeit!

Spare mich auf zuEinemgrossen Siege!

(Oh vontade, inflexão de toda constringência, tu minha necessidade!

Poupa-me para a única grande vitória!)

(Nietzsche, 1980a, p. 246).

Nessa vivência singular, a necessidade reflexiona-se e afirma-se em um acolhimento de si. Não é por acaso que Nietzsche exprimiu essa experiência crucial na alegoria do "fatalismo russo", colocando-o em relação com o budismo:

Estar doente é em si uma forma de ressentimento. - Contra isso o doente tem apenas um grande remédio - eu o chamo de fatalismo russo, aquele fatalismo sem revolta, com o qual o soldado russo, para quem a campanha torna-se muito dura, finalmente deita-se na neve. Não mais reagir absolutamente... "Não pela inimizade termina a inimizade, pela amizade termina a inimizade"; isto se acha no coração dos ensinamentos de Buda - assim não fala a moral, assim fala a fisiologia (Nietzsche, 1995, p. 30).

Trata-se aqui de um jogo entre o despertar do verdadeiro Eu e a ilusão onírica de uma subjetividade fantasmaticamente onipotente, que tem em Nietzsche, como contrapartida, a oposição entre inocência e culpa. Em sentido moral, o autodespertamento zen-budista implicaria na coincidência entre a absoluta autodeterminação e mais irrestrita responsabilidade por si, mas em completa (auto)supressão de toda perspectiva de responsabilidade como culpa. Pois, toda ação concreta e singular, realizada em mim e por mim - à qual está ligada minha singularidade - é também a expressão do todo em mim e por meu intermédio.

No zen-budismo, a conversão de Samsara em Nirvana, e novamente de Nirvana em Samsara, depende de uma relação visceral com o tempo, que libera a vontade de seu delírio infantil. Trata-se de um processo cuja precondição é uma terapia prévia do ressentimento, feita a partir de esquecimento e perdão, formulada com base no conceito de Karma. Se considerarmos o Karma cometido e passado como predestinação, então ele seria apenas uma variante do fatalismo. No entanto, isso só é verdade para quem considera tal pensamento teoricamente, como doutrina especulativa sobre o universo e a existência humana. Não, porém, para quem realiza esse pensamento em um registro sensível-corporal - e o faz como vivência própria de autoiluminação. Este não o experimenta como rancor impotente, menos ainda como amarga resignação, mas como acolhimento voluntário do fado, de uma vivência de Si como destino.

Esse autodespertamento não pode acontecer por meio de força humana. Assim como a escuridão só é conhecida como escura por meio da luz, assim também o fundamento e a origem do homem só podem ser iluminados por meio daquilo que vai além do humano, que está abaixo dele. A compreensão de que a vida no Samsara é pura simplesmente sofrimento só é possibilitada por algo que se encontra além do Samsara. Esse algo desprovido de nome, inominável, chama-se no Budismo "Dharma", "Tathagat"' ou "a outra força" (Ôkochi, 1995, 111).

Assim, entre o Eu e o Todo existe uma relação de dependência, mas não de determinação causal: não se pode aprovar uma vivência singular - portanto aquela que aqui e agora se processa em mim - sem com isso pressupor o todo. Portanto, aquilo que, em mim, se aprova (acolhe, bendiz, afirma) não é propriamente minha decisão, mas uma autoaprovação do todo, embora isso só possa acontecer a partir de mim, em mim - essa é a máxima reconciliação entre a parte e o todo, entre a singularidade e o universal.

Cada ente individual, cada mínima parcela do universo reflete, em sua própria singularidade, também o todo; esta é a ideia zen-budista da cooriginação dependente de todas as coisas. Nada é autossuficiente, todas as coisas condicionam-se reciprocamente, cada partícula depende do todo e este de cada partícula que o compõe. Não há Si-Próprio sem o reconhecimento de sua radical insubsistência, ou seja, sua dependência originária de tudo o que é, foi e será. Essa liberdade é, portanto, uma inflexão da necessidade, analogamente ao que acontece em Nietzsche, não como uma tese cosmológica, mas como "segurança instintiva na prática".

Somente Eu, em cada aqui e agora, sou responsável por tudo que, aqui e agora, penso, sinto e faço. É esse o significado nietzschiano da "finitude infinita" zen-budista. No outro extremo, a impotência da vontade consiste em sua aversão à transitividade do tempo - impotência que se atesta na experiência de não poder querer para trás. A ela podemos relacionar a prisão budista na repetição infinita do Karma-Samsara. Temos aqui a raiz existencial do sentimento de opressão, de condenação e necessidade de punição, derivada de uma interpretação da existência como culpa a ser expiada pelo castigo. Há em Nietzsche uma terapia de vida que coloca o ressentimento sob outra perspectiva - pois a raiz de todo sentimento de culpa e vingança está ancorada no inexorável passar do tempo, na dimensão do "foi", contra a qual nenhuma vontade pode mais nada. Ressentimento, em sua essência, é sentimento de vingança, nascido da impotência em relação ao tempo, à inexorabilidade do passado.

Todo sofredor busca instintivamente uma causa para seu sofrimento; mais precisamente, um agente; ainda mais especificamente um agente culpado suscetível de sofrimento - em suma, algo vivo, no qual possa sob algum pretexto descarregar seus afetos, em ato ou in effigie [simbolicamente]: pois a descarga de afeto é para o sofredor a maior tentativa de alívio, de entorpecimento, seu involuntariamente ansiado narcótico para tormentos de qualquer espécie. Unicamente nisto, segundo minha suposição, se há de encontrar a verdadeira causação fisiológica do ressentimento, da vingança e quejandos, ou seja, em um desejo de entorpecimento da dor através do afeto (Nietzsche, 1998, p. 116).

Na psicologia de Nietzsche, o ressentimento é, ao mesmo tempo, estimulante e entorpecente; é narcose mais ou menos duradoura para sofrimentos crônicos, que assediam a consciência ou permanecem latentes em estado de infraconsciência; é anestesia do sofrimento abissal, brotado da aversão contra o inexorável fluxo do tempo, mas também é um meio de alívio contra essa depressão, conseguida por meio da descarga imaginária de afetos tônicos. Como experiência, o eterno retorno é o ensinamento de um caminho que se bifurca em duas direções ou atitudes fundamentalmente opostas: em uma delas a repetição é vivenciada como um fardo, um círculo vicioso que se perfaz pelo inflexível retorno de todos os elos da mesma corrente, na mesma ordem de sucessão - e, nesse caso, a circularidade da repetição é uma prisão; na chave oposta, faz-se possível uma experiência redentora e libertária, que Nietzsche chama de "instante formidável", pois revoluciona a totalidade do existir para o resgate da inocência não conspurcada pelo veneno da vingança; a repetição é, aqui, um querer positivo, por ser a felicidade suprema que coroa e chancela todos os instantes de uma vida, um poder desejar que essa plenitude se repita por toda a eternidade. É possível, para um sujeito determinado, querer o que foi, desejar que o que passou retorne? Em geral, todo "foi" tornou-se irrecuperável, mesmo a vontade mais forte é impotente face ao "foi", que exprime o passar do tempo. Vingança é a reação humana ao sofrimento gerado pela frustração e impotência.

Ao voluntário acolhimento da iluminação budista, corresponderia, em Nietzsche, a doutrina sensível-corporalmente vivida da inocência do vir-a-ser.

Ninguém é responsável pelo fato de existir, por ser assim ou assado, por se achar nessas circunstâncias, nesse ambiente. A fatalidade do seu ser não pode ser destrinchada da fatalidade de tudo o que foi e será... Cada um é necessário, é um pedaço de destino, pertence ao todo, está no todo - não há nada que possa julgar, medir, comparar, condenar nosso ser, pois isto significaria julgar, medir, comparar, condenar o todo... Mas não existe nada fora do todo! - O fato de que ninguém é mais feito responsável de que o modo do ser não pode ser remontado a uma causa prima, de que o mundo não é uma unidade nem como sensorium nem como "espírito", apenas isto é a grande libertação - somente com isso é novamente estabelecida a inocência do vir-a-ser (Nietzsche, 2006, p. 46).

Para Heidegger (1994), essa experiência é pauperismo do riquíssimo, um despoja-mento essencial:

A essência da pobreza repousa, todavia, num Ser. Ser verdadeiramente pobre quer dizer: ser de tal modo que de nada carecemos, a não ser do desnecessário (das Unnotige). O desnecessário é aquilo que não provém da necessidade constringente, não provém da coação, mas daquilo que é livre (ausdemFreien). Todavia, o que é o livre? De acordo com a saga de nossa mais antiga linguagem, o livre é frî, o ileso, o poupado, aquilo que não foi tomado num uso. "Libertar" significa originaria e propriamente: poupar, ao proteger, deixar algo repousar em sua própria essência. Proteger, porém, é: conservar a essência no abrigo, no qual ela só permanece se é admitida a repousar no retorno para a própria essência. Proteger é: auxiliar continuamente nesse repousar, acalentá-lo. Só essa é primeiramente a essência do poupar que se apropria de si mesma, que não se esgota de modo algum na negatividade do não-tocar e do mero não-utilizar (p. 8).

Também para o pensamento budista, não há nenhum Karma cometido que não advenha do Karma passado - seja ele tão ínfimo como um grãozinho de pó sobre o pelo de um coelho ou de uma ovelha. Nos dois casos, temos, pois, a negação da autarquia e independência do Ego em uma relação fundamental com o fluxo temporal, com o passado, com a transitividade. De um lado, com o elemento místico do purva Karma, de outro, com a não menos enigmática dimensão do "foi".

O nome da repugnância da vontade contra o tempo é vingança. Nisso consiste também o essencial da impotência vontade - na impossibilidade de confrontar-se não só com uma dimensão do tempo, com um período ao lado dos outros, mas de suportar aquilo o que o tempo essencialmente confere, dispensa e lega - o passar e o que passou; e, ao legá-lo, ele também já o congela na dimensão de um "já era" inamovível. O tempo só doa e concede o que ele tem, e ele tem o que ele é - a saber, o decurso, o transcurso, a travessia.

A vingança é a repugnância da vontade contra o decorrer e seu decorrido, contra o tempo e o seu "era". A repugnância da vingança permanece acorrentada a esse "era"; assim como em todo ódio também se oculta na mais abissal dependência daquilo de que o ódio, no fundo, constantemente deseja tornar-se independente, o que, porém, nunca pode fazer, e, enquanto odeia, pode cada vez menos (Heidegger, 2005, p. 182).

A vontade vinga-se então naquilo contra o que quebra sua força, contra o inamovível e definitivo, permanecendo mais acorrentada a cada ato de vingança. Nisso consiste a essência do ressentimento, na autocondenação à repetição do mesmo, da qual medra o desejo de um Além-do-Mundo, a necessidade de um consolo metafísico. Ressentimento é sentir sempre de novo o mesmo - uma reação contra o sofrimento, um retorno compulsivo da mesma indisposição crônica, sempre reposta pela irreversibilidade do tempo. Essa é uma forma de vida culpada, ascética e biliosa, que adoece e destrói, pois que o único vivido repete-se como a maldição eterna, atando o ressentido à roda de Ixion do Karma-Samsara. O ressentimento é definitivamente, a impossibilidade de acesso ao verdadeiro Self, seja pela via budista da autoiluminação, seja pela vivência sensível-corpórea da aceitação voluntária do destino, na modalidade nietzschiana do amor fati. Superar o ódio contra o passar do tempo é o caminho para a libertação do ressentimento. Para tanto, Nietzsche faz uso de uma "terapia budista" para restaurar a potência do esquecimento e recuperar a força que metaboliza vivências negativas. Simulacro de medicação, o desejo de vingança só aprofunda a doença, envenena a ferida que finge curar. Saúde significa, em Nietzsche, uma autoterapia capaz de livrar alguém do ressentido sentimento de culpa, de revigorar a força plástica de esquecimento.

A vontade alcança sua culminância precisamente ao despojar-se da ilusão de onipotência, afirmando a fatalidade inexorável de todas as coisas. Assim, a necessidade se transforma numa Wende der Not - em um processo de subjetivação feito à partir da experiência corporal e concreta da existência própria, aqui e agora, para além de qualquer doutrina ou especulação. A pobreza (Armut) espiritual é também autêntica libertação. A vontade suprema não é mais realização autárquica de desígnios arbitrários, e a liberdade tornou-se autoafirmação da necessidade cósmica.

Em Nietzsche, tornar-se Si-Próprio é fazer-se responsável para além de toda acepção moralista de responsabilidade. Não há outra modalidade de faze-lo senão erodindo toda pretensão a juízos de imputação moralmente legitimados - tomando-se o termo "moral" em sua acepção mais comum. Responsabilidade não é um dado da natureza, mas uma conquista existencial: só podemos nos tornar inteiramente responsáveis se pudermos prescindir do subterfúgio moral, que consiste em rolar esse fardo sobre qualquer substituto da singularidade pessoal: Deus, a ordenação ética do universo, a história social ou mesmo a herança do romance familiar.

Quando a voz da culpa não forma mais o âmago da consciência moral, então o sentimento de responsabilidade sublimou-se no conceito de autonomia: a consciência ética do indivíduo soberano, que só obedece a lei de seu proprium et ipssissimum, não uma "lei moral universal acima de nós", senão a um senso de responsabilidade tornado "extra-moral", cuja "lei" realiza sua elevação a uma natureza de segunda potência, liberada dos grilhões da culpa, do ressentimento, da má consciência e suas formações reativas aparentadas. Nesse sentido, só pode haver responsabilidade autêntica depois da autossupressão da culpabilidade, da cauterização de todo resíduo moralista em nós. Uma tal consciência sublimada é, ao mesmo tempo, supra e extra moral, situa-se para além de bem e do mal, tal como definidos pelas morais de rebanho.

A mediação zen-budista facilita uma aproximação entre Friedrich Nietzsche e Soren Kierkegaard que, a despeito das inegáveis diferenças da aposta filosófica, permite aproximá-los da experiência psicanalítica. Repetir, tanto para Nietzsche quanto para Kierkegaard, pode ser também uma liberação, um retorno a Si de alguém a quem a própria vida tornou sujeito, ensejando, a própria vida, uma repetição como uma retomada de Si-Próprio. Em Kierkegaard, a repetição não pode ser pensada como reprodução automática do mesmo, muito menos como um problema teórico.1 No livro dedicado a esse tema - A repetição (1843), cujo autor pseudonímico, Constantin Constantius, tem um nome que ironicamente perfaz uma repetição - um dos questionamentos cardinais é desenvolvido precisamente a propósito da desesperança em relação à possibilidade de repetição em acepção cosmológica. Constantin Constantius descobre que uma verdadeira repetição não pode acontecer levando-se em conta apenas a realidade exterior, com abstração das circunstâncias fortuitas, inclusive as modificações da própria personalidade. Esse fracasso indica que uma verdadeira Wiederholung pressupõe uma súbita e catastrófica perda pessoal e singular, seguida de uma restauração milagrosa, portanto racionalmente absurda, de um mundo individual restaurado.

A repetição delineia-se em um conflito entre a dimensão estética e ética da existência, para resolver-se, definitivamente, em um âmbito religioso - no qual a repetição é entendida como reintegratio in statum pristinum (reintegração em um estado pretérito)2 A repetição, em Kierkegaard, é um movimento de natureza religiosa, em relação com Deus, e não com a autarquia humana. Todavia, para os propósitos deste texto, destaco em Kierkegaard uma concepção de repetição que, em aspectos decisivos, pode ser remetido tanto a Nietzsche quanto à doutrina zen-budista do Karma-Samsara, como renascimento, um despertamento e um devir-sujeito.

A primeira ambientação do experimentum figurado em A repetição é estética, e nela os dois protagonistas encontram-se colocados em planos simétricos. No entanto, a autêntica experiência da repetição realiza-se para o "jovem poeta" como uma dádiva, que o libera do conflito entre a fidelidade à arte e o compromisso ético do casamento. O dilema do esteta consistia em não poder reconciliar esse antagonismo entre manter-se fiel à noiva e consumar o casamento (renunciado inteiramente à poesia e à arte) ou faltar ao dever moral e dedicarle à inclinação de sua vida. Nessa oposição entre o plano estético e ético da existência - um deles referido ao singular, ao pessoal, o outro reportando-se ao universal (à lei moral) -, ambos são vividos abstratamente, de modo que o jovem poeta mergulha no desespero, até que um fato inteiramente alheio a seu controle decide o impasse: o esteta lê em um diário o anúncio do casamento de sua antiga noiva. Para Kierkegaard, o drama só poderia ser resolvido em um movimento que independesse do "jovem poeta", embora não pudesse ser-lhe totalmente alheio; incapaz de ultrapassar o limiar da exigência universal, do aguilhão do dever, ele só pode vivenciar o acaso como "libertação" e dádiva, como uma graça devida à generosidade da amada, e, no limite, a Deus e ao destino.

De todo modo, esse movimento é também, ironicamente, a kinesis do Si-Próprio, pois que remete a uma possibilidade de vir-a-ser do próprio sujeito, na medida em que restituida e restaurada, pela dádiva, é a própria existência singular e pessoal daquele que faz a experiência da repetição. Esta é, assim, trânsito, kinesis para uma nova vida, uma experiência de retomada do mundo, um renascimento, que se dá na inexplicável confluência entre instante e eternidade, como ingresso da eternidade transcendente na temporalidade de uma vida humana.

A kinesis que acontece no instante (Augenblick) e aquela que acontece no renascimento são idênticas: o renascimento perfaz-se no instante. O renascimento traz o homem de sua inverdade para a verdade de sua existência. Essa inverdade consiste no "mal-entendido" de considerar o próprio passado como necessário. Pois justamente a partir desse "mal-entendido" o homem irrompe e emerge no "instante" no qual a repetição, o renascimento acontece (Reimer, 1979, p. 329).

Abraão, Jó e o jovem apaixonado do livro A repetição vivenciam, no instante formidável, o tempo da intempestiva nocte. Abalados, até os fundamentos, pelo drama da perda e da profundidade do infortúnio, entregam-se à esperança de uma reconquista do mundo perdido, de um renascimento redentor, um retorno tanto a Si por intermédio do que se foi.

Kierkegaard pensa esse estado como um paradoxo, uma repetição com vetor para o futuro, no sentido da esperança judaica e da graça cristã - não de uma reprodução inexorável do mesmo, em um ciclo desprovido de significação, inflexivel como a necessidade bruta do mito. Repetição é, para Kierkegaard, regeneração, vivificação redentora, uma restauração do sentido do mundo e da vida.

Com isso, tornei a ser eu mesmo, outra vez. Eis aqui a repetição. Compreendo agora todas as coisas e a vida parece-me mais bela do que nunca. Sim, sou outra vez eu mesmo. Possuo novamente meu próprio eu, como se acabasse de nascer, esse pobre 'eu' que até bem pouco tempo jazia abandonado à beira do caminho e ninguém se dignava a recolher (Kierkegaard, 1997, p. 63).

A repetição não se perfaz em asserções teóricas, nem se apresenta como uma tarefa intelectual a ser resolvida. Ela é, antes, vivência concreta, experiência existencial e singular, que se realiza como o absurdo de uma reconquista de si pelo despojamento de todas as pretensões egocêntricas de autossuficiência. Condição única é uma abertura para o acolhimento, para receber de novo e de graça aquilo que só a vida pode oferecer.

Não é agarrando-se a uma teoria, nem mesmo agarrando-se a ela na máxima paixão. Abraão retoma Isaac de volta - ele não tem necessidade de preocupar-se com o "duplo movimento" de Johannes de Silentio. Jó recebe de volta seu mundo transformado - ele não tem necessidade de preocupar-se com o "problema do mal" dos filósofos (Mooney, 1998, p. 301).

Só depois de ter lido casualmente em um jornal o anúncio do casamento da antiga noiva, e depois de ter aceitado o que assim lhe fora graciosamente doado pela fortuna, o jovem esteta compreende que esse casamento integra seu próprio destino, e, ao invés de negá-lo, ajuda a consumar sua libertação; não porque o libera do sentimento de culpa, mas porque o eleva à compreensão da futilidade de suas ilusórias tentativas de superar o conflito entre dois amores, graças apenas aos seus esforços, desejos e méritos. A gratuidade do dom devolve-lhe o mundo - resgata, para quem a julgava totalmente perdida, a vida cumulada de beleza e felicidade. Segundo o próprio Kierkegaard (1997):

Não é isso uma repetição? Não recebi em dobro tudo o que antes possuía? Não tornei a ser eu mesmo, de tal modo que hoje posso conhecer duplamente o significado e o valor imensos de minha própria personalidade? E o que vale uma repetição de todos os bens materiais e terrenos, indiferentes para o espírito, comparada com uma repetição dos bens espirituais? (p. 63).

Para Kierkegaard, a repetição não é um eterno retorno do mesmo, uma "repetição de bens materiais e terrenos, indiferentes ao espírito", mas um retomar, como reapropriar-se de si mesmo. No mesmo sentido, aliás, que a narrativa bíblica de Jó.

Na língua portuguesa, traduz-se Wiederholung por "repetição". No alemão, o termo alude à retomada; em português, no entanto, a palavra correspondente evoca uma re-petitio (de peto, petere, petitum, pedir, demandar novamente (repetitivo), portanto, um desejo, uma expressão de vontade não solipsista, que se abre para...), buscando a reapropriação de si: devir-sujeito (em Kierkegaard e Nietzsche) é um tornar-se o que se é, e pode significar também pedir e receber de volta aquilo que sempre se foi, adquirir de novo aquilo que já fora dado como natureza.

A mediação proporcionada pela breve incursão no pensamento zen-budista do verdadeiro Self e da iluminação desdobra-se agora em uma abordagem da repetição elaborada a partir de sua refração na psicanálise de Freud, tanto no registro metapsicológico como também em referência à situação vivida no setting analítico enquanto espaço de tratamento e "cura" (tomado esse termo na acepção etimológica de cuidado, desvelo, preocupação).

Pensando em termos da metapsicologia freudiana, à vista das restrições já presentes na transição do processo primário ao secundário, com a correspondente modificação do princípio do prazer em princípio de realidade, a hipótese de uma vigência irrestrita do princípio do prazer para a inteligibilidade dos fenômenos psíquicos não pode ser sustentada; além disso, o esclarecimento exaustivo dos fenômenos observados na clínica psicanalítica não podem ser explicados com base na hipótese de uma supremacia do princípio do prazer - dando ensejo à suspeita acerca da atuação, no aparelho psíquico, de princípios, processos e tendências mais originárias e primitivas que aquelas do prazer. Razão pela qual impõe-se, para Freud, a tarefa de uma investigação além das fronteiras do princípio do prazer.

Dentre os fenômenos clínicos que colocam em cheque a hegemonia do princípio do prazer destacam-se, além daquela restrição anteriormente aludida, as ocorrências verificadas nas neuroses traumáticas, surgidas em consequência de uma súbita experiência dolorosa, de grande magnitude e intensidade, que produz distúrbios funcionais no sistema psíquico (os grandes acidentes, ou os traumas de guerra). O traço característico nessas neuroses consiste na fixação da vivência traumática e na repetição involuntária do mesmo episódio em sonhos. Trata-se, assim, de uma repetição de vivências dolorosas, cuja ligação com a meta do prazer é dificilmente compreensível. Fenômeno análogo ocorre em brincadeiras infantis, nas quais a criança também reproduz vivências de desprazer (nos consultórios médicos, mimetizadas em papéis de médico e paciente, ou então em outros jogos nos quais são reproduzidas vivências aflitivas).

Além disso, há pessoas cuja vida parece ser constituída por uma série de eventos que reatualizam o mesmo padrão de experiências fracassadas, um eterno retorno do mesmo (a repetição aparentemente involuntária dos mesmos erros, de análogas ou idênticas situações adversas: a escolha do mesmo tipo de parceiros, com os quais repetidamente vive-se infortúnios semelhantes, frustrações e decepções) como se essa repetição fosse um destino ou fatalidade inexorável. Há que se considerar também a repetição compulsiva, na prática clínica, de experiências dolorosas, vivenciadas na primeira infância, invariavelmente de conteúdo sexual, em um processo de origem inconsciente, que transpõe de novo o sujeito no papel ativo de situações aflitivas coercivamente reproduzidas. Os afetos penosos ligados a essas representações, assim como elas mesmas, foram recalcadas para o inconsciente em virtude da censura psíquica e da repressão, permanecendo, contudo, atuantes em estado de latência e bloqueadas em sua descarga, em razão da impossibilidade de acesso à consciência. No decorrer da análise, tais experiências, ao invés de serem evocadas como lembranças ou reminiscências, são compulsivamente repetidas no processo de transferência, mobilizando a figura do próprio analista, entravando, assim, o andamento da análise e impedindo a cura por meio da lembrança. Nesse caso, a repetição incontrolável, ao invés da lembrança, atua como resistência e defesa, e impede o acesso analítico a uma significação intolerável para o ego do paciente.

Nesse caso, a repetição ocorre em manifesto antagonista com o princípio do prazer, pois aqui vigora uma repetição pura e simples da dor, irreconciliável com o princípio do prazer ou mesmo com a precondição de seu funcionamento, a ligação de energias com vistas à descarga eficaz. No texto intitulado "Recordar, repetir e elaborar", Freud (1914/1990) se refere a vivências pretéritas inacessíveis à rememoração. O correspondente delas seriam experiências vividas e não assimiladas, provenientes da infância remota. Isso indica, portanto, que só poderiam sê-lo na vida adulta, por um modo privilegiado de repetição, já que, sendo decisivo o trauma irrecuperável pela lembrança, sua assimilação posterior não pode ser efetuada senão pela via da repetição.

Apesar das diferenças etiológicas, o traço comum entre todos esses casos é a repetição, que se apresenta, em todos eles, como um mecanismo e exibe um caráter compulsório. A neurose traumática e os jogos infantis atestam uma analogia etiológica mais pronunciada. Neles o sujeito foi colhido subitamente pelo evento traumático, em condição de impossibilidade de preparar-se para a defesa. Sendo assim, o aporte de quantidade de energia psíquica advindo do trauma e vivido como desprazer inunda o aparelho psíquico, transbordando por todos os seus canais, analogamente ao que ocorre em uma inundação, sem que barreiras de contenção tenham podido ser previamente dispostas, de modo a conter o afluxo de moções psíquicas dolorosas, cujo aumento de quantidade e intensidade é vivido durante o evento traumático.

O mesmo ocorre com o desamparo da primeira infância, quando a criança é forçada às mais antigas experiências de renúncia pulsional. Nesses casos, a repetição tinha por base um Bemüchtigungstrieb (impulso de dominação), pelo qual a tendência a repetir o trauma estaria em consonância com o princípio do prazer, pois consistiria em reproduzir as condições para uma descarga de energia acumulada no interior do aparelho, preparando o mesmo para o controle da situação e restaurando os canais ou vias adequadas de escoamento, perturbadas e avariadas pelo afluxo inesperado e transbordante de energia. No jogo infantil, inverte-se, portanto, a posição do sujeito, que de paciente do processo, passa a ser seu controlador e agente ativo. Repetir é procurar ganhar o controle da situação e também preparar o indivíduo para resistir melhor aos traumas futuros, dotando-o da capacidade de desenvolver angústia e, dessa forma, estar prevenido para quando tais eventos traumáticos ocorrerem.

Em todos os casos, a estratégia consistira, então, em um esforço para, por meio da repetição da mesma vivência traumática, reverter a posição passiva do sujeito em postura de expectativa, em uma tentativa de despotencializar o efeito surpresa e armar-se, como que retrospectivamente, para a defesa eficaz. Todo o processo, cuja lógica consistiria na tentativa de defesa retroativa contra uma inesperada e anárquica inundação de energia livre, estaria, assim, a serviço do princípio do prazer. Contudo, uma análise mais profunda dos elementos em jogo evidencia que as dificuldades inerentes à explicação desses fenômenos abrem espaço para uma constatação: a repetição, sobretudo em função de seu caráter compulsivo, é reprodução de uma experiência de sofrimento - portanto sua finalidade ou meta não pode ser diretamente remetida ao princípio do prazer. Essa constatação confirmaria a suspeita de que, ao invés de princípio regulador único do aparelho psíquico, o princípio do prazer seria mais bem caracterizado como uma tendência, contrarrestada por fatores e preparada por condições anteriores - ou levaria à suspeita acerca da existência de processos ainda mais originários, eventualmente opostos, à vigência do daquele princípio.

A analogia constatável entre os fenômenos relevantes para a observação psicanalítica e a compulsão à repetição demonstrada pelos pacientes em análise indicam que, em ambos os fenômenos - mas também no caso do sonho dos neuróticos traumáticos - a repetição tem o caráter coercitivo do pulsional. Se perguntamos sobre a relação entre o pulsional e a coerção a repetir, então estaremos seguindo a pista de algo desconhecido e ominoso, do elemento demoníaco nas pulsões, e talvez de um traço comum a toda vida orgânica: o pulsional seria, pois, uma tendência inerente à vida orgânica, cuja energia atua para restaurar um estado anterior de coisas que o organismo foi obrigado a abandonar sob a pressão de perturbações externas - a pulsão seria uma força de elasticidade orgânica, a expressão da inércia inerente ao organismo.

Além desses aspectos, é necessário distinguir ainda pelo menos duas outras modalidades na abordagem psicanalítica da relação entre a resistência e a repetição. Para examiná-los, é necessário transitar para o registro da prática clínica, onde uma das modalidades de repetição compulsiva é detectada pelo analista logo no início da relação terapêutica, como uma tendência a reviver - com protagonismo do analista e sob a forma da repetição coer-civa - as vivências traumáticas infantis inconscientes de que o paciente não consegue se lembrar. Essa modalidade é outro obstáculo aos esforços, subsequentes à cura, para uma completa separação do paciente em relação ao terapeuta. Porém, a repetição se apresenta também segundo outra modalidade, constituída por seu próprio resgate clínico, a ser obtido com auxílio de um exitoso manejo da situação transferencial. Nesse caso, sendo favoráveis as circunstâncias do tratamento, a repetição pode ser colocada a serviço de uma transferência bem-sucedida e tornar-se um caminho para a rememoração, um elemento produtivamente mobilizado no cuidado e no tratamento:

Antes de mais nada, o paciente começará seu tratamento por uma repetição deste tipo. Quando anunciamos a regra fundamental da psicanálise a um paciente com uma vida cheia de acontecimentos e uma longa história de doença, e então lhe pedimos para dizer-nos o que lhe vem à mente, esperamos que ele despeje um dilúvio de informações; mas, com frequência, a primeira coisa que acontece é ele nada ter a dizer. Fica silencioso e declara que nada lhe ocorre. Isto, naturalmente, é simplesmente a repetição de uma atitude homossexual que se evidencia como uma resistência contra recordar alguma coisa. Enquanto o paciente se acha em tratamento, não pode fugir a esta compulsão à repetição; e, no final, compreendemos que esta é a sua maneira de recordar (Freud, 1914/1990, p. 166).

A especificidade da situação analítica permite certo jogo, mais ou menos controlado, entre transferência e compulsão à repetição, no qual pode descerrar-se um caminho para a simbolização dos traços patológicos do caráter do paciente, sob o pressuposto da transformação da neurose comum em neurose de transferência - e da exigência de que o sujeito repita os sintomas patológicos nessa atmosfera clinicamente gerada e mantida, sob o abrigo da qual a repetição pode ser elaborada justamente na atuação transferencial. Por isso, não é o bastante que o sujeito apenas represente o estado traumático reprimido e seus afetos correspondentes; é essencial também revivê-lo.

É no plano da transferência que a compulsão à repetição pode encontrar o caminho para a re-memoração e a simbolização do sujeito. Portanto, a oposição entre transferência e repetição se coloca em toda a sua radicalidade, e o segredo para o sucesso do processo analítico está na habilidade do analista, o que, antes de mais nada, supõe uma capacidade subjetiva para manejar a transferência (Birman, 1991, p. 201).

No caso da sessão analítica, como espaço terapêutico, a experiência com a repetição é revivida com auxílio do equipamento conceitual e tecnológico da psicanálise para manter algum controle sobre relação entre repetição compulsiva, resistência e transferência. Nesse contexto, a palavra ética significa, sobretudo, um gesto impalpável, uma postura - um ethos -, e não um imperativo ou preceito, não uma regra técnica ou norma codificada em regulamentos profissionais. Antes de tudo, um gesto, um acolhimento, um colocarle à disposição, na abertura que sustenta um espaço imaterial para a emergência e o afloramento de uma frágil potencialidade, ainda inarticulada, soterrada pelos escombros de tragédias pessoais.

O domínio competente e cuidadoso desse repertório clínico, conjugado ao aludido ethos eminentemente individual do analista (antes de tudo devotado à preocupação e cuidado, ao respeito pelo outro, em sua alteridade radical), torna possível uma passagem da compulsão demoníaca, em cujo círculo vicioso a repetição aprisiona a possibilidade de tornar-se sujeito para uma experiência de libertação, como convalescença e "cura". Nessa tarefa, a missão do analista é, fundamentalmente, vocacional, porque tem de contar, antes de tudo, com um despojamento de suas próprias reivindicações pessoais.

O instrumento principal para reprimir a compulsão do paciente à repetição e transformá-la num motivo para recordar reside no manejo da transferência. Tornamos a compulsão inócua, e na verdade útil, concedendo-lhe o direito de afirmar-se num campo definido. Admitimo-la à transferência como um playgroud no qual lhe é permitido expandir-se em liberdade quase completa e no qual se espera que nos apresente tudo no tocante a instintos patogênicos, que se acha oculto na mente do paciente. Contanto que o paciente apresente complacência bastante para respeitar as condições necessárias da análise, alcançamos normalmente sucesso em fornecer a todos os sintomas da moléstia um novo significado transferencial e em substituir sua neurose comum por uma "neurose de transferência", da qual pode ser curado pelo trabalho terapêutico. A transferência cria, assim, uma região intermediária entre a doença e a vida real, através da qual a transição de uma para a outra é afetada. A nova condição assumiu todas as características da doença, mas representa uma doença artificial, que é, em todos os pontos, acessível à nossa intervenção. Trata-se de um fragmento de experiência real, mas um fragmento que foi tornado possível por condições especialmente favoráveis, e que é de natureza provisória. A partir das reações repetitivas exibidas na transferência, somos levados ao longo dos caminhos familiares até o despertar das lembranças, que aparecem sem dificuldade, por assim dizer, após a resistência ter sido superada (Freud, 1914/1990, p. 169).

A situação assim (re)produzida é artificial, no sentido de que é induzida teórica e clinicamente; mas nem por isso deixa de ser um caminho de recuperação de uma vida até aqui danificada pelo recalque, inibida quanto às suas livres possibilidades de ser. Para que alguém se torne o que é, sem ser obstado por traumatismos e recalques inconscientes, que o compelem à repetição infernal de um "mesmo" estático, é necessário liberar o caminho que conduz a um autêntico Si-Próprio - essa é, por certo, uma das mais importantes contribuições éticas da psicanálise, tanto para o indivíduo quanto para a humanidade. Freud e Nietzsche, em contextos em que evocam esse mesmo problema, recorrem aos versos de Goethe para expressar o seu pensamento mais íntimo: "Was Du von deinen Vatern hast, erwirb es, um es zu besitzen. Was man nicht nützt, ist eine schwere Last" (Aquilo que tens de teus pais, adquire-o, para apropriar-se dele. Aquilo que não utilizamos é uma carga pesada) (Faust 1, Nacht). Em outras palavras, tornar-se o que somos é, para cada um de nós, tanto uma tarefa quanto uma livre destinação.

A isso corresponde, em Nietzsche, a expressão Wende der Not, ou amor fati, como retomada de si, com tudo o que a existência individual arrasta consigo de passado, na âncora do presente, e na aventura do futuro, uma transfiguração da gravidade em leveza e graça. O mesmo jogo que encontramos em Kierkegaard. No início de A repetição, o protagonista Constantin Constantius considera a repetição como a realidade e a gravidade (Ernst) da existência. Em O conceito de angústia (1960), o pseudônimo Vigilius Haufniensis reflete nos termos seguintes sobre a essência da repetição: "Só a seriedade (Ernst) pode retornar com a mesma originalidade sobre o mesmo. Mas esse mesmo só pode ser a própria seriedade. [...] Nesse sentido, a seriedade significa a própria personalidade e só a personalidade séria é uma personalidade efetiva" (p. 624).

Essa seriedade, ou gravidade, culmina, porém, no mesmo Kierkegaard, como libertação do sujeito em relação ao lastro do universal, que caracteriza o estágio ético da existência. "Esta ética, porém, não é um poder que aprisiona (keine bindende Macht), pois a repetição, como desprendimento (Losung) da ética, tornou-se apenas redenção (Er-losung) da ética, que apenas exige, sem garantir as condições para o cumprimento da exigência" (Remier, 1979, p. 339).

Convém lembrar que redenção (Erlosung) resguarda a acepção originária de solver, dissolver, resolver, desatar laços, e evoca o étimo lusos, pelo qual é também conhecido o deus Dionisio, aquele que, ao desfazer os laços artificiais com que as convenções aprisionam a espontaneidade humana, faz-se, ele também, redentor.3

 

Referências

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Correspondência:
Oswaldo Giacoia Junior
[Departamento de Filosofia, ifgh unicamp]
Rua das Glicinias, 66
04048-050 São Paulo, SP
Tel.: 11 2578-8965
ogiacoia@hotmail.com

Recebido em 21/02/2012
Aceito em 13/03/2012

 

1 "Kierkegaard não entende a repetição como um problema abstrato. Antes, a pergunta por uma repetição resulta de uma situação concreta. Desse modo, tentou-se investigar 'o lugar (den Sitz) na vida' de Kierkegaard para esse questionamento. No primeiro dia de Páscoa de 1843, Kierkegaard encontrou-se com sua antiga noiva, que cumprimentou-o com uma inclinação de cabeça. Isso foi para Kierkegaard um sinal de que Regina Olsen, apesar da dissolução do noivado, não o considerava um enganador. Assim pôde surgir para Kierkegaard a pergunta a respeito de se um novo começo seria pensável, se o relacionamento de outrora com Regine seria 'repetível'." (Reimer, 1979, p. 303). Embora o texto ora citado divirja radicalmente, em muitas de suas passagens importantes, da interpretação proposta neste artigo, há também relevantes elementos convergentes que podem ser explorados produtivamente e com independência teórica, de modo que, nesse espírito, minha interpretação assumirá com independência hermenêutica aspectos que considero fecundos desse notável trabalho de Louis Reimer.
2 Não é de interesse para os propósitos deste trabalho a distinção entre os níveis estético e religioso da existência, tal como esta se impõe na filosofia de Kierkegaard. De todo modo, cabe observar que o sentido de repetição nessas duas esferas da vida é diferente para o pensador dinamarquês: "A repetição 'na força do elemento religioso' não é obtida pelo poeta. Em verdade, ele recebe novamente a si mesmo, porém como existência poética, 'o elemento religioso vai a pique'. O objeto da repetição entendida religiosamente seria, portanto, uma liberdade imediatamente pressuposta, que cumpriria repetir como uma liberdade interior na realidade da existência" (Reimer, 1979, p. 313).
3 "Cabe lembrar aqui que os termos Erlosung, erlosen, Erloser, remetem ao radical los (no grego antigo luein, livrar ou desatar como o faz Dionisio, o lusos, que desata os laços na ordem sexual ou familiar), que indica a dissolução, o desfecho, a resolução ou a solução de um problema, por exemplo, por seu desaparecimento bem-vindo" (Gagnebin, 1999, p. 198).

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