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Revista Brasileira de Psicanálise

Print version ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.46 no.1 São Paulo Jan./Mar. 2012

 

INTERCÂMBIO

 

Entrevista: Bernard Chervet1

 

 

Equipe editorial

 

 

Cuidar é fazer psicanálise?

Por que escolher o tema ÉTICA para o coloquio ocorrido recentemente na Sociedade Psicanalítica de Paris (SPP)? A escolha teve como origem uma inquietação contemporânea ou foi uma consequência da história da psicanálise?

Certamente as duas coisas: uma convergência delas. Estamos falando de um fato, de uma questão, característicos de nossa época. Na nossa sociedade atual, a preocupação ética é muito importante. Chega-nos atualmente dos anglo-saxões o que se chama de care (em inglês), um movimento filosófico de pensamento em torno do cuidado, soin (em francês). Trata-se de uma noção fenomenológica, a precaução, a amabilidade, a atenção para com as necessidades dos outros; com todas as consequências sociais, os efeitos sobre a organização das instituições sociais encarregadas dessa dimensão; o que é diferente de assistência, mesmo que esses dois aspectos se justaponham e se misturem às vezes.

Trata-se de um registro fundamental da cura psicanalítica, implicado em todo tratamento, seja ele qual for, uma dimensão basal - a se ter em conta -, tradicionalmente relevante da função materna; o holding, o handling etc. Todo um ramo da psicanálise anglo-saxã privilegiou essa dimensão do cuidar, o que entra no quadro geral do care.

Não podíamos deixar de ser sensíveis a tão amplo movimento de reflexão global da sociedade, e não podíamos deixar de fazer a pergunta: no que isto concerne à psicanálise e no que isto diz respeito à psicanálise de maneira particular? Este é, portanto, o contexto geral, atual.

A isso se segue que há diferentes teorias psicanalíticas, denotando-se aquelas que poderíamos chamar de maternais no sentido de cuidar, e depois as outras que seriam paternais no sentido da elaboração. Estes são dois polos de nosso trabalho, mais do que duas teorias, são dois polos complementares; ao elaborar nós cuidamos, e contendo por vezes a elaboração, cuidamos. Por outro lado, uma questão se coloca desde há muito tempo: será que apenas cuidando fazemos psicanálise?

Não são, portanto, dois polos sistematicamente opostos. Saber esperar, ser paciente, releva também o cuidado, mas isso não pode ser suficiente; sustentar a elaboração é também cuidar. De fato, esses dois polos se relacionam com as funções de integração da psique, com os dois tempos do trabalho psíquico. Este se faz em dois tempos, com um entretempo de perlaboração que não deve ser impedido.

Nosso método terapêutico consiste em inscrever, em tornar possível o fato de que as pulsões possam se inscrever no psiquismo, tanto do ponto de vista econômico, como tópico, pela clássica dupla inscrição de conteúdo. Mas a inscrição diz respeito também aos processos psíquicos. Estes devem emergir e se tornar eficientes, inscreverem-se enquanto operações e processos psíquicos.

O fenômeno da inscrição é muito importante; trata-se não somente de inscrições de conteúdos, mas de tudo o que constitui a psique, tudo o que é eficiente no funcionamento psíquico, os conteúdos, funções, processos etc. É nisso que se constitui a teoria e a prática psicanalítica.

 

O mito do progresso

Voltemos um pouco no tempo. Um aspecto geral da preocupação ética se deve à deterioração do mito do progresso, tal como este se manifestou no final do século XIX e metade do século XX.

No século XX, o mito do progresso foi dificultado pela Segunda Guerra Mundial e pouco a pouco ele não cessou de se desfazer. Uma reflexão decorre disso; a noção de progresso se separou das noções de "melhor", de "bem" enquanto tais. Antes o progresso era um bem em si, em seguida se percebeu que isto não era um fato, mas um desejo, isto é, uma negação, uma ideologia. A noção de progresso exige uma reflexão sobre seu uso, sua contribuição e até mesmo sua definição; e como toda idealização, a de progresso inverte o valor do idealizado pelo lado do nefasto. Há um risco de ir em direção ao nefasto, ao incômodo, em direção a uma aspiração pulsional primitiva, aquelas do apagamento, do desaparecimento, em nome de uma idealização. Donde uma ética da ciência, não somente da medicina, mas de todas as ciências, se desenha aqui.

A psicanálise está, portanto, assim envolvida. Tivemos de abordar suas teorias, mas também sua prática, o exercício da psicanálise. Donde uma retomada sobre as transgressões - aquelas da cura, as atuais e as da história da psicanálise - mas, sobretudo, aquelas internas ao funcionamento mental, tal como a idealização que acabamos de invocar. Do ponto de vista do funcionamento psíquico, as idealizações provêm da transgressividade. Evidentemente, a tentação e o risco eram de fazer um colóquio sobre os escândalos (risos), os "negócios de alcova", de agir segundo o par exibicionismo-voyerismo. Alguns teriam desejado contar, era tentador. Encontramos outras vias de aproximação.

A transgressão em psicanálise não se resume aos diversos fatos, mesmo que estes devam ser considerados. E mais, é delicado fazer uma categorização por meio dos fatos. O contexto é essencial. Tomando-os isoladamente nos arriscamos a operar um retorno da moral. Trata-se de, com efeito, cada vez examinar como certas teorias, certas práticas põem em ação uma transgressão de modo dissimulado, do tipo daquela do Édipo; examinar seu valor de transgressão edipiana, com morte (assassinato) e incesto; e um olhar que leve em consideração a castração com respeito à vida psíquica, a castração punitiva a ser considerada de um duplo ponto de vista, da consequência e da interrupção do transgressivo; restabelecer as leis psíquicas, mas, às vezes, a que preço!

É interessante acompanhar a relação com a transgressão. Disso fazemos uma questão: A psicanálise deve incluir ou se submeter a um julgamento de transgressão, de condenação? Ou ainda, será que ela deve se abrir à parte de verdade que se transmite pelas transgressões, sem negar o fato de que são transgressões?

Pensamos, certamente, em Jung, depois em Ferenczi, Lacan, Winnicott etc. Os trabalhos de Ferenczi, em particular, com certeza contribuíram bastante para a psicanálise contemporânea, ao mesmo tempo em que estão apoiados numa prática que contém dimensões transgressivas inegáveis. A atitude de Freud, desse ponto de vista, é absolutamente exemplar. Ele soube guardar uma reserva, uma reserva pessoal. O que você faz? Mas não somente em termos de bem ou mal, como questionaria um pai resmungão; o que você faz psiquicamente quando exalta tal ou qual conduta técnica? Como nomear psicanaliticamente o que é feito num plano técnico, teórico? Ele (Freud) buscou encontrar uma valência positiva, quer dizer, elaborar o que a psicanálise poderia aprender daquilo que não poderia se reduzir a um mero reconhecimento de transgressão.

 

Metapsicologia da transgressão

Por que fazemos essas coisas?

Porque fazemos essas coisas, certamente; mas também o que nós fazemos? Que ensinamento positivo, do ponto de vista da metapsicologia, podemos deduzir de nossas transgressões e de nossa propensão à transgressão, tanto no plano teórico quanto no prático? O que nós fazemos sem nos darmos conta? Isso se passa, sem dúvida, porque nós o fazemos, em razão de nossas motivações e histórias privadas.

De certa maneira, à parte as transgressões patentes, nós só podemos extrair, com posterioridade, a dimensão transgressiva de nossas práticas e de nossas teorias.

Portanto, por que nós fazemos, é certo, mas também qual a significação para a psique daquilo que fazemos? O que nós introduzimos sem nos darmos conta, enquanto transgressões do quadro e, sobretudo, da regra fundamental? A tentação seria certamente de condenar e de evitar pensar; de operar um julgamento de valor sem julgamento de existência, o que do ponto de vista psicanalítico é uma transgressão.

A psicanálise, e é aí que é interessante, deve manter um julgamento, um julgamento de condenação. Mas não devemos esquecer que durante a sessão, e se trata, então, de nossa prática de todos os dias, de não esquecer que no divã, tudo que se nos apresenta como associação na clínica contém uma parte de verdade regressiva e transgressiva, que é útil e indispensável ao tratamento propriamente dito, que devemos aproveitar e que enriquece nosso campo de pensamento.

Na sessão, a regra fundamental inicia, induz uma transgressão do modo de pensar. Trata-se de falar antes de refletir, enquanto que nós aprendemos a refletir, até mesmo muitas vezes, antes de falar.

Esta é a lição freudiana. A lição que temos que manter, guardar. Não podemos cair na armadilha da condenação, na qual condenaríamos algo de nós mesmos. Tomaríamos desse modo o partido das condenações, de reprimir e negar qualquer coisa de humano. Isto levaria a uma recusa; um defeito da identificação.

Trata-se de identificar primeiramente o que foi feito. E depois, isto não deve impedir, feita a identificação, de ter um julgamento, de avaliar se trata-se de uma transgressão. Não significa, evidentemente, em nome de maior conhecimento e reconhecimento, de esquecer o valor transgressivo, mas o inverso muito menos! Isto é importante. Em psicanálise, o valor depende do contexto, e este é, geralmente, duplo. Uma coisa não tem o mesmo valor do ponto de vista do sonho, da vida diurna, individual, grupal etc.

Deve ser acrescentado também um aspecto concreto. Percebemos que deveríamos tratar concretamente dos problemas de transgressão. A Sociedade Psicanalítica de Paris é regularmente interpelada por testemunhos, tais como cartas de pacientes vindo se queixar de seus analistas, da análise como um todo, da de um amigo etc. E também, a Sociedade Psicanalítica de Paris se dotou de um código de ética que ela não tinha.

Na França, a psicanálise não é administrada pelo governo, não tem um estatuto específico. A maioria dos psicanalistas trabalha no âmbito de seu estatuto de origem, o dos médicos ou o dos psicólogos. São, portanto, as sociedades de psicanálise que devem assegurar a regulação de sua conduta profissional. O governo reconhece nossa existência, mas não definiu jamais a profissão de psicanalista. Isto evita erros de avaliação de nosso exercício.

 

Psicanálise na fronteira do transgressivo

É a mesma coisa no nosso país...

No Canadá, a psicanálise é reconhecida de maneira oficial. Na França é tacitamente reconhecida, mas nos textos legais não há definição da psicanálise pelo legislador. Por um lado é bom, porque isto nos dá um pouco mais de liberdade, de fantasia. Somos assim colocados sobre as margens e as bordas, junto com as ocupações mais antigas do mundo, a "oniromancia" e o comércio da sexualidade. A psicanálise é certamente uma das ocupações mais antigas do mundo que demorou muito tempo a vir, a emergir na consciência do gênero humano.

A psicanálise trabalha na fronteira do transgressivo, e ao mesmo tempo, na medida em que se profissionaliza, a sua inscrição social, assim como sua regulação, torna-se necessária. Mais do que esperar uma regulação vinda do exterior, e arriscando-se a ser construída sobre um grau de desconhecimento de nossas especificidades, pareceu-nos pertinente darmo-nos as ferramentas de nossa regulação. O governo foi sensível a esse andamento. Ele estudou nossas autorregulações e deduziu daí que não havia necessidade de intervir.

Ao nos dar um código de ética, nós nos certificamos de que o julgamento de condenação não viesse do exterior, mas, sobretudo, que ele fosse um julgamento de existência, de reconhecimento, de valor psíquico.

Temos, portanto, no interior de nossa sociedade, que administrar também esses aspectos concretos e manifestos da transgressão. Claro que se isto atingir um aspecto mais importante que entre na esfera do direito comum e do penal, eles irão se impor, uma vez que se aplicam a todos nós.

Mas há também a ética profissional para o psicanalista enquanto tal, ligada estritamente à atividade psicanalítica, fora a ética social, legal, a dos direitos humanos que se impõe a cada um. Ou seja, não somos uma seita, não escapamos do contexto sociocultural. Regulamos o que é estritamente da alçada da atividade psicanalítica, pois pensamos que esta não deve ser regulada do exterior.

 

Especificidade da ética psicanalítica

De certo modo poderiamos comparar isto - não sei como é no Brasil - com os médicos que têm a Ordem dos Médicos, e uma ética médica da ordem, com tribunais internos à Ordem dos Médicos. Em seguida estão os tribunais de direito comum, penal e o médico deve ser visto como um homem e assim por diante... É a mesma coisa para todos. Provavelmente o modelo médico foi uma referência e ao mesmo tempo não podíamos aplicar a ética médica no sentido do cuidado e da ética do care. Nós, em psicanálise, não temos as mesmas definições de cura, de meios e objetivos, das abordagens da medicina, que não podem ser superpostos à medicina. Era preciso, portanto, introduzir uma ética que levasse em conta o que se passa na sessão, ou seja, o trabalho com e sobre o transgressivo.

Se você leu a obra sobre ética, vários textos abordam a ética do psicanalista por meio dos funcionamentos psíquicos de dois protagonistas: por exemplo, meu texto sobre a neutralidade (La Neutralité du Psychanalyste et La Gravité du Desir), a qual é um modo de trabalho mental em relação à transgressão. A neutralidade do psicanalista não elimina o transgressivo, muito ao contrário, deve pensá-lo. Assim, devemos pensar o incesto em todas as variadas modalidades regressivas, em suas modalidades psíquicas e não somente enquanto passagem ao ato sexual entre um pai e seu filho.

Do mesmo modo, devemos também pensar na eliminação realizada pela aplicação de um julgamento moral sob o ângulo da "morte (assassinato) do pai". Devemos pensar em tudo isso. Tanto a "morte (assassinato) do pai" como eliminação de um princípio implicado na vida mental, como princípio de renúncia ou luto interno, quanto à nossa tendência a tudo sexualizar, que pode ser nomeada "incesto". Quero dizer que os dois polos do complexo de Édipo, os clássicos "morte (assassinato) do pai" e "incesto com a mãe" devem ser vistos do ponto de vista metapsicológico, como uma "morte" do princípio ético e uma "sexualização" da totalidade de nosso funcionamento e de nossos objetos.

São estes os dois campos que nos fazem pensar, dois campos que são transgressivos e ao mesmo tempo inerentes ao funcionamento mental. Nenhuma lei pode eliminá-los, ela pode apenas reprimi-los e, assim, assegurar-lhes um alcance incomensurável. Não é possível, e esta é provavelmente a originalidade principal em relação à medicina, considerar o pensamento sem considerar a "morte (assassinato) do pai" e o incesto. E não é suficiente dizer, como fazem os antropólogos, "proibição do incesto", para assegurar nossa ética. Precisamos, ao contrário, ao darmos a regra fundamental, quando pedimos a um paciente para deitar-se e submeter-se à regra fundamental, considerar que o induzimos, o levamos a beirar um funcionamento regressivo em contato estreito com um funcionamento transgressivo, próximo de um funcionamento incestuoso. Nós o intimamos a abandonar seus princípios morais, seus princípios de renúncia e o encorajamos a se abrir a suas reivindicações pulsio-nais de todos os tipos, a fim de fazê-las surgir no campo da palavra e de religá-las, então, à consciência, em direção a uma futura tomada de consciência.

A situação analítica é uma situação muito paradoxal, uma contradição, porque a pul-são deseja escapar da palavra ao mesmo tempo a palavra deve contê-la.

Existe, portanto, um jogo próximo do incesto, sem passar ao incesto. Em nossos divãs escutamos o transgressivo atualizar-se no seio do funcionamento psíquico.

 

Invertendo o principio temporal do pensamento e da palavra

Eu já assinalei o transgressivo em relação à mensagem educativa. Os pais dizem ao filho que se cale, que aprenda a calar-se, e que "pense duas vezes antes de falar", e nós dizemos ao paciente que ele deve falar antes de refletir. Enquanto a ética familiar é transmitida por uma educação que diz que é preciso refletir antes de falar, nós invertemos o princípio temporal do pensamento e da palavra, nós dizemos a nossos pacientes: você deve falar antes de refletir. Veja, a reflexão virá depois, você fala primeiro. Invertemos o princípio do pensamento, logo, colocamos os pacientes em contato com o transgressivo de seu funcionamento mental, com sua angústia de castração e com os meios de que dispõe para reprimi-lo. Fizemos também alusão agora há pouco à idealização; há ainda a negação realizada pelo pensamento intelectual.

É por essa transferência da potencialidade transgressiva, essa transferência do transgressivo que podemos reintroduzir, com nossos pacientes, uma elaboração que não seja uma condenação, um modo de reconhecimento que faz intervir o polo da renúncia, a possibilidade de renunciar, o que não quer dizer de modo algum que isto não continue a existir.

A renúncia... trata-se de poder pensá-la nela mesma, de poder deixá-la agir mentalmente. Por isto, deve-se saber a que ela se refere; e para sabê-lo é conveniente atualizá-la transferencialmente. Para não deixar o transgressivo agir no funcionamento mental, é necessário que a renúncia se atualize também; a psicanálise é uma disciplina do conflito psíquico.

 

O analista "perverso polimorfo"

Em sua opinião, a respeito do que se passa na relação analítica relativa ao papel do analista, o senhor parece propor uma oposição relativa entre a neutralidade do analista e as repercussões emocionais dessa presença. Como pensa que se passa a dialética entre esses dois elementos (reserva e implicação do analista)?

É interessante você tê-la introduzido muito mais diretamente do que eu fiz. Você introduziu a dimensão emocional do analista. Não me parece que eu tenha dito dessa maneira em meu texto e acho, com efeito, que é pertinente introduzi-la. Evidentemente é todo o tema da contratransferência afetiva e emocional em sua modernidade. Não a contratransferência, é claro, de 1912-1913 de Freud, percebida primeiramente pelo ângulo negativo, com essa espécie de mito de um analista ideal que não seria portador do transgressivo, enquanto que com a contratransferência moderna trabalhamos também com o transgressivo, o que volta ao que dizíamos anteriormente. É esse ideal do completamente analisado, do "totalmente analisado" que faz pensar.

O problema se coloca de outra maneira: não se trata de fato tanto do que não foi analisado, trata-se, sobretudo, de considerar que a análise não suprima nem a dinâmica edipiana nem as atrações transgressivas. O ideal de um analista sem contratransferência reúne certas concepções não humanas, tais como as de super-homem. Isto é uma idealização. Nós já vimos isso.

A contratransferência moderna inclui a transgressividade de um modo positivo na medida em que ela considera o funcionamento psíquico do analista do ponto de vista de uma dinâmica conflitiva dialética. Esse conflito desenha um ideal analítico, o ideal de um analista que não sucumbiria a nenhuma atração regressiva tópica, portanto, transgressiva, mas que estaria sempre no quadro de uma regressão formal pré-consciente, e num contexto emocional de ternura e firmeza pós-edipianas. Trata-se de um referencial teórico ideal, unicamente teórico, mas necessário para assegurar o conflito próprio de ser analista na sessão.

É importante que um analista possa se pensar como um "perverso polimorfo"; a regressão conflitiva ao infantil é muito importante. Poder se pensar em todos os desvios que possam existir é essencial. Quando estamos sentados em nossa poltrona, é preciso poder se pensar. Não unicamente como papai ou mamãe, avô ou avó do paciente, mas como uma grande quantidade de coisas, de seres e personagens extravagantes, malucos e selvagens, viciados, obscenos e cruéis.

Na sessão, por um lado, estamos como num sonho, por outro, obrigados ao funcionamento do processo psíquico secundário. Somos considerados em um momento como um pedaço de matéria, um pedaço de carne, um aspecto de uma personalidade, um personagem psicopático e não como uma pessoa. Quero dizer que me parece muito importante poder se pensar nas identificações que nossos pacientes fazem a nosso respeito, ao nos ligar a forças animais, a aspectos animalescos, selvagens e cruéis ou às coisas materiais inertes, e não somente a pessoas.

Acho importante ampliar a noção de transferência a toda transposição animista, senão corremos o risco de confinar a psicanálise somente à dimensão relacional, quer dizer, intersubjetiva. Na sessão, repete-se a intersubjetividade animista da infância com todo o mundo, condição para que a pesquisa de uma nova intersubjetividade possa se desdobrar. Trata-se do potencial para o que sucederá, para advir, constitutivo da transferência; "eu não serei jamais como ele ou como ela", mas também "eu quero chegar a ser como ele ou como ela".

Pensar que, grosso modo, atualmente se repete a intersubjetividade da infância é pouco. É muito mais complicado do que isso. Quero dizer que podemos nos pensar como uma diversidade de coisas, por exemplo, uma flor, a saber, os "dentes-de-leão" de Freud em sua lembrança encobridora, que pode ser considerada sob o ângulo transferencial. Aqui na França, por exemplo, se diz "comer os dentes-de-leão pelas raízes". Entende o que quero dizer?

A transferência não ocorre somente sobre objetos, no sentido de imagos. Parece-me muito mais diversificada. Nesse sentido somos continuamente tomados por muitas coisas estranhas e restritivas, como o sentimento insidioso de não ser reconhecido por quem nós somos, por não ser reconhecido absolutamente, daí sermos um eco de reminiscências. Quando somos tomados por alguém ou algo qualquer, por qualquer outra coisa que não somos, nós experimentamos o sentimento de desaparecer.

 

Transferência e o desaparecimento do analista

A transferência é uma prova de desaparecimento. Não é possível desprender-se dela. Daí uma fobia contratransferencial da situação do analista. Contratransferencialmente somos obrigados a deixar que nos tomem por todos esses aspectos, e não nos opormos identificatoriamente a todos esses aspectos. Ao mesmo tempo, é uma passagem, a identificação é uma passagem, não é o objetivo final, a identificação é uma passagem e esta é a armadilha da identificação. É nesse sentido que Freud dizia que a identificação era a primeira relação afetiva: eu me identifico com você porque te amo, ou amo alguma coisa que designo como sendo você sem saber quem você é. Esta também é uma nuance importante. O outro é investido antes de ser um objeto, portanto, ele é investido por mil e uma coisas antes de ser conhecido pelo que é. Ele é reconhecido antes de ser conhecido. A alteridade do outro enquanto sujeito só é reconhecida tardiamente. A objetalidade é algo que se constrói lentamente.

Por outro lado, o outro é utilizado o tempo todo, de diferentes maneiras, como, por exemplo, quando vemos crianças muito doentes que pegam sua mão como se pegassem a maçaneta da porta; os cuidadores que se ocupam de crianças autistas se tornam a fechadura da porta. Isto é a transferência, tornamo-nos a maçaneta da porta, a mão que segura o lápis, mas que não é a mão de um outro.

Quando uma criança autista pega a mão do cuidador e faz um traço com essa mão, não é a mão de alguém. Essa mão é o outro como tal, é esse outro que permite a criança não ter a "responsabilidade" do traço desenhado, da aquisição que consiste em poder dessexualizar a mão e fazer dela uma mão que desenha. Não podendo pegar diretamente o lápis e menos ainda utilizá-lo para desenhar, essas crianças fazem o lápis estar numa mão que traça o traço. Elas vivem um terror diante da aquisição. Estes são os modos de transferência que percebemos muito bem com crianças muito doentes, na psicose ou em outra situação qualquer em que também algo como isto se faça presente, o que leva a pensar durante a sessão. O analista é utilizado como matéria, como ferramenta útil, como modo de se desculpar, de se isentar; e, às vezes, as teorias psicanalíticas retomam essas modalidades de transferência e fazem delas meios técnicos ao invés de considerá-las como material de sessão.

Há, portanto, efetivamente, uma dupla identificação emocional. A contratransferência combina uma identificação histérica do ser faltante vivido pelo paciente com uma resposta às necessidades do paciente. O analista fica tentado a se propor enquanto complemento, vindo a atender a essas necessidades, fornecendo ao paciente aquilo que lhe falta; com o risco de que o analista instale uma espécie de psicologia coletiva, uma mentalidade de grupo.

Ao analista é criada uma demanda para seus aspectos corporais, de forma muito direta, pelas vivências emocionais e sensuais. As palavras regressivas, infantis, são frequentemente metáforas corporais. O analista é, então, levado a ter que considerar as partes de seu corpo, bem como os dejetos de seu corpo e a sua estética. A ele é criada uma demanda entre outras, pelas imagens e palavras chocantes ou muito degradantes que podem afetá-lo.

Ser tomado por coisas degradantes ou com intenções de degradação não é propriamente simples, e não há meios de se desembaraçar disto. Nossa profissão se faz no sentido de nos deixarmos levar; aceitar as "transferências" em nome da transferência, aceitar tomar o tempo da identificação dessa transferência, não evitar a etapa desagradável. Isto evoca uma palavra de Freud, entre muitas outras e entre muitos conceitos significativos, introduzida em 1920, que podemos designar por superioridade, ou sentimento de superioridade (überlegenheit), no sentido de pôr-se sobre, até mesmo de se colocar numa condição de dominação do outro. Aqui estou usando-a como uma reação contratransferencial, evitativa, ao sentimento de ser eliminado, de desaparecer, de ser desprezado, desdenhado.

Freud fala do sentimento de desdém que as crianças vivem da parte dos adultos. A superioridade é aqui, portanto, uma reação defensiva, numa contratransferência que recusa o tempo desagradável da identificação; um equivalente a uma fórmula do tipo: "Eu não sou quem você pensa!". De fato, devemos chegar a ser tratados com todos os nomes, arrastados na lama, tendo consciência que apenas estamos sendo usados como objeto da transferência. Portanto, aceitar é nossa profissão, reconhecer que somos para o paciente aquilo que ele crê, que ele tem sua razão, mas guardando para nós mesmos a consciência de que nós não somos somente o que ele acredita.

Essa é a armadilha, a peça em que caem os que recusam a contratransferência. Eles afirmam: "eu não sou quem você acha que sou". Essa reação não dá tempo para a vivência emocional, tempo de se identificar emocionalmente ao modo que o outro tem de nos considerar. Na França, há mães que chamam os filhos de "cocô". Ou seja, a palavra anal cocô é uma palavra carinhosa para algumas mães. Compreende? Há muitas mães que dizem "meu cocôzinho..." afetuosamente! Uma palavra para o dejeto anal "cocô" é uma palavra doce para elas.

Quero dizer que em todas as civilizações existem maneiras de abordar as crianças. Elas estão na linhagem das pequenas coisas destacáveis. O pequeno destacável, a mãe o tirou de seu corpo, o cocôzinho. Como nas teorias sexuais infantis, assim também as equações simbólicas que criam equivalências entre bebe-fezes-pênis. O analista é pego nessas espécies de reminiscências do paciente, incluindo aspectos do corpo, os quais não são nem agradáveis nem simpáticos. Frequentemente essas palavras sobre o corpo são injúrias, palavrões da infância.

A linguagem na sessão é censurada pela totalidade dos dicionários, e mais ainda porque os neologismos têm também um lugar na associação livre. É, então, muito importante esse "espaço emocional" , como se diz, apto a acolher a diversidade das transferências.

 

O que o paciente diz na sessão é uma realidade

Em seu artigo "A neutralidade do psicanalista e a gravidade do desejo", o senhor falou dos dois tempos da éticapsicanalítica, sobre o conflito entre realidade (existência) e verdade...

Em primeiro lugar, a verdade.

Ah sim, a verdade do inconsciente, presente na transferência.

De fato, se me lembro bem, digo que o julgamento de valor deve ser colocado em latência em proveito do julgamento de existência. O que o paciente diz na sessão é uma realidade. Isto deve ser recebido do ponto de vista de sua existência, como sendo a realidade mesma da sessão; e depois é também a verdade do paciente. Ser a menina dos olhos dos pais ou o "cocôzinho", ou qualquer outra metáfora à qual o paciente se identificou como criança, corporal ou não; esta é a verdade. É sua história, é o seu mundo interno, é aquilo que o constitui. Portanto, esse julgamento de existência deve ser o único eficiente, aquele que permite acolher tudo o que o paciente diz. É uma consequência direta e imediata da regra fundamental. Esta se aplica ao analisando. Ele deve dizer tudo que se passa com ele e não apenas o que pensa intelectualmente; tudo que se passa quer dizer tudo que ele sente. Isto é importante para abordar as questões da transgressão. Os desvios pelo corpo, as metáforas, os sentimentos e vivências devem ser verbalizados na sessão.

Há pacientes que dizem que querem fazer xixi no divã, que não podem segurar, ou aqueles que dizem que estão enfurecidos. Outros dizem: "Ah! Fui tomado por uma vontade incoercível; um desejo irrepreensível"; "o que há comigo?"; "Tive uma ereção; tenho vergonha" etc. Os pacientes se perturbam no divã, é lógico, pelo fato de haver a regressão na sessão. A regra exige que eles anunciem, verbalizem suas perturbações. Ela exige que sejam incluídos os diferentes campos pelos quais os elementos inconscientes vão se apresentar na sessão. Ela coloca como condição que eles sejam ditos.

Deve-se recolocar na linguagem a tarefa de traduzir tudo que se manifesta. "Tenho vontade de me levantar, tenho vontade de caminhar, não posso mais ficar no divã" - recordamos do "Homem dos ratos" - ou ainda "eu sinto tal ou qual coisa no meu corpo; minhas mãos se tornaram enormes, e caem; meus pés estão inchados" etc. Há uma passagem para as conversões histéricas que estão ligadas a pensamentos verbais latentes e que também devem ser verbalizados; donde as vivências sensuais e os afetos, duas modalidades de conversão que devem ser objeto de um dizer, a fim de que o misto "pensamento latente-desejo inconsciente" possa ser reconhecido e interpretado.

Essa via de expressão pelas sensações/vivências e sentimentos corporais está totalmente engajada no risco de transgressão. É por isso que tomei diversos exemplos relacionados ao corpo, às conversões histéricas, aos afetos e à sensualidade. Quanto mais nós reconhecermos que a regra fundamental induz à regressão sensual assim como que à regressão linguística, e que esta tende a suplantar a primeira, mais será necessário que as análises aceitem emocionalmente a regressão sensual e se pense sobre ela. É a condição primeira, não suficiente, mas indispensável, para alargar o campo associativo à totalidade das realidades psíquicas e evitar que aquilo que fique de fora da ligação feita pela linguagem seja levado a se exprimir por outras modalidades, mentalmente transgressivas.

Segundo sua referência ao artigo de Marilia Aisenstein, "Les messages éthiques des modèles de formation de ¡API", sobre a ética nos três modelos de formação psicanalítica, qual é a sua opinião a respeito das bases éticas na formação permanente do analista?

É uma pergunta bem difícil, bem mais delicada que as primeiras. Minha alusão a Marília Aisenstein foi também para fazer esse tema circular pela mesa, no Colóquio, e ligar as intervenções. Mas a questão permaneceu em suspenso porque ela é fundamental: os diferentes modelos de formação transmitem relações com a ética também diferentes? Gostaríamos de esperar que não.

Mas é um desejo, quer dizer, uma referência ideal. O fato de existirem diversos modelos de formação se deve provavelmente à intuição de que um modelo contém sempre um potencial de transgressão. Ter vários modelos permite sustentar um questionamento sobre a ética, mantendo uma tensão dialética entre eles. Cada analista aborda a psicanálise à sua maneira. As vias de entrada no pensamento analítico são plurais. Há os que... Você sabe, quando pedimos a um colega para falar de um tema psicanalítico, alguns podem começar por uma referência teórica, colocando um ponto teórico e avançando a partir dele. Outros iniciarão a reflexão por um sentimento emocional: "Diante de tal questão, vejamos o que eu sinto". Outros ainda começam por: "Isto me faz pensar em tal paciente"; portanto, pela via clínica.

 

O pensamento é teorizante

Essas três vias de entrada têm igual valor e dependem de nossos funcionamentos mentais respectivos. Há, portanto, os teóricos, os clínicos e os "emocionais". No seio da psicanálise propriamente dita, encontramos atualmente essas tendências. Não se trata de considerar que há uma melhor que as outras. Mas convém não esquecer a via de entrada da teoria. O pensamento é teorizante. Não se pode pensar sem teorizar. O sonho é uma teoria, o sonho em si é cheio de teorias sexuais infantis, de teorias infantis, mas o trabalho do sonho, ele mesmo, é uma interpretação, portanto, uma teoria. Agora há pouco, falamos de teorias sexuais infantis implicadas nas palavras sobre o corpo, nas equações simbólicas. Quando falamos, quando sonhamos, quando sentimos, nós transmitimos sempre teorias, mesmo quando nós falamos, sonhamos, experimentamos sem teorizar.

No pensamento há elementos emocionais, elementos imaginados, elementos representativos, conversões afetivas, sensuais. Antigamente descreviam-se tipos, protótipos. Era uma época, mas havia alguma coisa de verdadeiro e que diz respeito a nossas vias de entrada. Por outro lado, cada um deve poder encontrar as outras duas vias no curso de seu exercício. Se os três campos são reunidos progressivamente, podemos então ficar satisfeitos; é isso! (risos).

Atualmente há uma tendência de colocar a abordagem pela clínica em primeiro plano; pelo menos na França. Quando escutamos os anglo-saxões, há uma tendência de fazer dominar o emocional. Os anglo-saxões herdaram uma tradição filosófica que coloca a emoção no começo de tudo, o pensamento nasceria desse fundo emocional. Bion e outros antes dele são herdeiros de Hume, de Locke, que partiam da sensação; esta última sendo reconhecida como matriz do pensamento.

Para a psicanálise a sensação já é um produto psíquico, o resultado de um trabalho do aparelho psíquico, uma mentalização. Por outro lado, a teoria é raramente colocada em primeiro plano (risos). É importante constatar isto. Há uma reticência ao pensamento teórico; não somente porque ele é mais difícil, mais abstrato, mas porque é a consequência de algo desagradável, de uma restrição endógena para pensar.

Se não tivéssemos teoria, não vejo verdadeiramente como pensar sobre o que quer que seja. Se não houvesse um princípio metapsicológico de referência, por exemplo, pelo sonho e pela doutrina do trabalho do sonho, não faríamos nada mais do que analogias. As palavras não teriam mais do que o valor de símbolo ou de analogia com o passado do paciente; daí uma nova chave dos sonhos, psicanalítica, certamente, singular, mas sistemática. Nós passaríamos então ao largo da função do sonho. Somente a metapsicologia pode falar dessa função. Por exemplo, quando um sonho apresenta elementos de destruição, isto não significa que deveríamos procurar lembranças de destruição da infância, nem que a psique esteja ameaçada de destruição. Se a psique estiver destruída, ela não poderia mais sonhar com destruições. Não se deve confundir um produto do sonho com o estado da vida mental.

 

Modelos de formação psicanalítica

É a mesma coisa com os modelos de formação. Eles propõem modos de entrada diferentes, fazem agir reminiscências do passado (por exemplo, a indicação pelo instituto de formação da análise pessoal, ou a ingerência ou não da análise nos cursos, supervisões etc.), mas eles se combinam no trabalho de formação que eles promovem.

Na França, a análise precede a formação. A decisão da análise pessoal, a escolha de sua análise é algo estritamente privado. Há alguns anos, fazia-se a análise, instalava-se no trabalho e depois sua admissão no curso, na formação, era demandada. Havia uma sucessão de etapas.

Segundo o modelo anglo-saxão, apresenta-se a demanda para fazer o curso, a formação, e em caso de admissão, se é autorizado ao mesmo tempo a fazer a análise. Começa-se, portanto, a formação, mais ou menos ao mesmo tempo em que a análise. Desse ponto de vista, os dois modelos são exatamente opostos. Aqui (na França), em teoria, jamais o instituto se implica na análise pessoal.

Bem, cada modelo, com suas particularidades e diferenças, não faz maus analistas (risos).

Pessoalmente, apoiado no modelo francês, gosto muito quando os colegas que entram em formação continuam suas análises. Porque durante a formação, transferências importantes são vividas para com seus institutos e seus formadores, transferências sobre as instituições; é muito importante e interessante trabalhar em análise as transferências sobre a instituição.

Num caso a análise intervém no curso da formação e isto suscita lógicas e afetos altamente persecutórios. No outro, a impermeabilidade do atendimento analítico à formação institucional é muito importante, com certas consequências negativas. Portanto, a ética é implicada, ao mesmo tempo em que ultrapassa completamente o problema dos modelos de formação.

 

Ética na psicanálise de crianças

O campo da análise para crianças apresenta muitas discussões sobre as fronteiras necessárias para a preservação da condição analítica. O que o senhor pensa sobre isso?

Sim, A psicanálise da criança é um ponto extremamente interessante, pois se relaciona com tudo o que disse antes. Serei um pouco mais direto. Não se pode trabalhar com as crianças sem amá-las, e amá-las não somente no sentido usual de amor.

Trata-se, certamente para o analista, de reconhecer que o amor seguro, terno, tem suas fontes pulsionais, sexuais. Ora, nossa civilização atual faz pesar, desde sempre, mas mais atualmente, em um tipo de caça às bruxas sobre a pedofilia. As profissões com o prefixo "pedo" (em francês se diz pedopsychiatre, por exemplo) são sublimações, dessexualizações da pedofilia.

Não é possível trabalhar com crianças sem amá-las, sem senti-las, sem se deixar sentir por elas, sem levar em conta a atração do corpo da criança e sem reconhecer a atração que exerce o corpo do adulto para a criança. Ora, nossa civilização atual faz pesar uma repressão sobre os pensamentos e os sentimentos ligados ao corpo da criança. Quando uma criança some durante duas horas, já se diz que ela foi sequestrada por um pedófilo. Toda a sexuali-dade da infância é, então, negada; todas as histórias banais de tocar em suas partes íntimas, de "tauche-pipi" (tocar no pipi) são dramatizadas e diabolizadas. Isto ultrapassa largamente o destino normal da sexualidade da infância de sofrer a amnésia infantil e de alimentar a sexualidade infantil do inconsciente.

Quando se é psicanalista de criança, não vejo como podemos trabalhar de outra maneira que não seja sublimando sua pedofilia. Caso impeçamos a "pedofilia" de existir em si mesma, não vamos poder analisá-las. Eu sou psiquiatra infantil, fiz anos de terapia psicanalítica de crianças, gosto de crianças. Para colocar as coisas no contexto, devemos lembrar também que - se excluímos nossas fontes como poderemos trabalhar? Com que poderemos trabalhar? - uma criança é cheia de charme, é sensualmente charmosa. O terapeuta de crianças não se investe somente segundo as lógicas dos "pais". É também um homem, uma mulher. A criança vai também concebê-lo como ser portador de sexualidade, vai interpelá-lo como cena primitiva privada, como enigma pulsional.

O outro, para uma criança, a alteridade, é um buraco de fechadura pelo qual ela tenta preencher sua curiosidade sexual, sua busca identificatória. As crianças são ávidas do desejo do outro, não somente para fazer deles objetos, mas como forma de existência com a qual se identificar; o desejo do desejo do outro; de onde os olhos da imitação são o trampolim da identificação.

Saber o que o outro sente, saber como ele pensa, saber de onde lhe vem sua curiosidade, suas qualidades, suas capacidades, tudo isto faz parte do mundo da infância. O adulto é interpelado por essa propensão, essa busca da criança para tudo que lhe permite "crescer".

Quando olhamos as crianças jogarem, vemos como é bonito uma criança! O corpo da criança é de uma grande beleza; é emocionalmente muito ativa durante uma sessão. Atualmente os psicanalistas têm também que conservar sua liberdade de pensar, de sentir a beleza sensual do corpo das crianças se eles querem trabalhar com elas. Algumas vezes, as demandas das crianças são diretas durante as sessões. Convém poder recebê-las e decifrar o mal-estar que as sustenta. Elas vão ao banheiro durante as sessões, às vezes tiram suas calças quando se sentem angustiadas; ou vêm se sentar sobre os joelhos do analista etc. É conveniente poder acolher, sem barrar o seu caminho, respondendo à demanda manifesta, mas respondendo ao que a motiva.

É geralmente a dificuldade para instalar os processos psíquicos, para "crescer" do ponto de vista da mentalização, que motivam as demandas mais ou menos cruas pulsionalmente. Certamente, uma resposta à pulsionalidade poderia barrar o caminho do desenvolvimento psíquico. Mais que dizer "não toque", o psicanalista de crianças deve ser sensível à sedução, aquela onde vive a criança, às necessidades psíquicas da criança, localizando suas demandas antitraumáticas, sabendo que a sedução pode ser utilizada para dissimular e responder às aspirações regressivas traumáticas.

Cabe a nós estarmos prontos a não tocá-las sexualmente, mas prontos a receber a sua tentativa. Tudo isso faz parte do material que o psicanalista recolhe e acolhe. Isto nos toca a todos, nossa sexualidade infantil, sua existência e sua função no interior do funcionamento psíquico.

A ética em psicanálise de crianças é, portanto, muito importante, e não somente em função do fantasma da sedução da criança pelo adulto. Trata-se aqui, ainda, de uma ética do pensamento, do julgamento da existência e do destino pulsional, uma ética da proces-sualidade psíquica.

Grandes poetas nos deram o exemplo por meio de textos que se tornaram célebres; Lewis Carroll certamente e sua atenção às meninas pequenas, suas fotografias e evidentemente seu texto extraordinário Alice no país das maravilhas; Verlaine e outros que eram também muito sensíveis às crianças e aos adolescentes e que nos deram a possibilidade de abordar nossa sensualidade vis-à-vis a da criança sem nos assustarmos demais; mas em última análise, isto volta sempre em nosso funcionamento mental estritamente individual, a cultura é um desvio que pode nos ajudar, mas ela não pode, na sessão, substituir nosso funcionamento privado, pessoal.

Bom... é isso. Acho que o tempo que dispúnhamos já está terminando.
Obrigado.

Nós, da revista, é que agradecemos.

 

 

1 Entrevista concedida em 11 de outubro de 2011, em Paris, por Bernard Chervet, membro titular e presidente da Société Psychanalytique de Paris (SPP), à Revista Brasileira de Psicanálise, a partir de questões formuladas pela equipe editorial.
sclarecemos a nossos leitores que excepcionalmente neste número da revista, pela feliz associação de interesses e possibilidades, já esclarecidas em nosso editorial, a seção Intercâmbio apresenta a entrevista com Bernard Chervet, ao invés de artigo de autor estrangeiro.

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