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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.46 no.2 São Paulo abr./jun. 2012

 

EDITORIAL

 

Editorial

 

 

Bernardo Tanis

Editor

 

 

Passagens I
Entre o Moderno e o contemporâneo

E desculpem-me por estar tão atrasado dos movimentos artísticos atuais. Sou passadista, confesso. Ninguém pode se libertar duma só vez das teorias-avós que bebeu; e o autor deste livro seria hipócrita si pretendesse representar orientação moderna que ainda não compreende bem.
(Mario de Andrade, Prefácio Interessantíssimo, 1922).

No ano em que o Congresso da Fepal acontece em São Paulo e tem como tema Tradição - Invenção, a Revista Brasileira de Psicanálise propõe, a partir de uma rica reflexão e pesquisa realizadas pela equipe editorial, um olhar para este hífen, este lugar de trânsito, de passagem, de movimento e de transformação.

Há noventa anos acontecia no Brasil a Semana de Arte Moderna, iniciativa movida pelo questionamento das convenções instituídas nas artes e na cultura, um interrogante sobre as premissas da Modernidade. Junto aos modernistas da Semana de 22, chega ao Brasil a Psicanálise, que desde então teve notório desenvolvimento e expansão em nosso país. Indagamo-nos sobre o impacto do Modernismo nos diferentes campos da cultura e da vida social, e sua ressonância até os dias de hoje. Interrogamo-nos, assim como aos nossos autores convidados, sobre essas transições visíveis e invisíveis, e sobre seu impacto na clínica psicanalítica.

Limiar, passagem, flânerie, sugerem um tempo e um espaço que se prolongam, inacabados como o próprio livro Passagens (Benjamin, 2006). A partir da multiplicidade de citações, fragmentos e referências presentes em Passagens, Walter Benjamin propõe a montagem1 como estratégia metodológica, que ao retirar os objetos/textos/imagens de seus contextos, possibilita o surgimento de uma nova constelação na qual as noções de temporalidade são transformadas, assim como fica possibilitada a emergência de novos sentidos históricos. Desta forma, tal como na situação psicanalítica, haveria sempre a iminência de outra interpretação. Passagens, entendidas como experiências de regiões limite e de trânsito, é o que constantemente ocorre na vida mental em momentos de transformação, do primário para o secundário, assim como em detalhes sutis do cotidiano, como os instantes de passagem do sonho para a vigília. Em um nível mais amplo, as passagens aparecem nas instituições na questão dos lugares ocupados e na maneira como estas transições se dão.

A riqueza e a complexidade dessas perspectivas e movimentos mobilizou a equipe editorial na concepção de dois números interligados de nossa revista. O primeiro, que aqui apresentamos, é focado no estreito vínculo que liga a psicanálise ao questionamento dos ideais da Modernidade, ao Modernismo e às vanguardas europeias do início do século XX.

O segundo número, que será lançado no Congresso da FEPAL em outubro de 2012, colocará em perspectiva a ideia do contemporâneo e da clínica atual, dialogando com a proposta curatorial da 30ª Bienal de Artes de São Paulo, Iminência das poéticas, cuja inauguração em setembro de 2012 antecede o Congresso. Seu curador, Luis Peres Oramas, comenta em entrevista concedida à RBP, a ser publicada no próximo número, sintetizando sua proposta para exposição: “A ideia é ver como o presente projeta sua sombra sobre o passado e transforma um legado histórico em elemento da contemporaneidade”. Tal pensamento vai de encontro à concepção de memória freudiana e benjaminiana. Em sua VI tese sobre o conceito de história, Benjamin propõe: “Articular historicamente o passado não significa conhecê-lo 'tal como ele propriamente foi'. Significa apoderar-se de uma lembrança, tal como ela cintila num instante de perigo” (Benjamim,1940, citado por Gagnebin, 2006).

Paulo Mendes da Rocha, ganhador do Prêmio Pritzker em 2006, na entrevista que abre este número, convida-nos a uma reflexão sobre os estilos arquitetônicos, a vida nas cidades, suas possibilidades e fracassos, os momentos de escolha e a liberdade como matéria prima necessária para o nascimento do gesto criativo. Para Mendes da Rocha, não menos importantes que os conceitos e os modelos são as marcas e traços deixados pelos anos de formação e pelas experiências vividas, que constituem um patrimônio pessoal, fonte da intuição e inspiração. Embora recusando qualquer rótulo que o defina, há vários aspectos e perspectivas em sua fala que aludem à liberdade e ao funcionalismo em seus projetos, elementos que, entre outros, caracterizam uma influência modernista. Ana Paula Terra Machado e Dora Tognolli, colegas psicanalistas, estabelecem, em seus comentários à entrevista, um diálogo que expande com autêntico entusiasmo e fina argumentação as múltiplas aberturas que o espaço associativo do arquiteto oferece.

Mas quais as relações entre Modernismo e Modernidade? Em que medida a psicanálise pode ser entendida como porta voz original do Movimento Modernista que, mesmo sem desacreditar o projeto emancipatório da Modernidade, coloca em evidência suas fraturas e impasses? Ana Gonçalves Magalhães, pesquisadora do Museu de Arte Contemporânea de São Paulo (MAC), exemplifica em um belíssimo texto a ruptura que as vanguardas do início do Século XX operam com a arte acadêmica que a precede, e sua vinculação com o que veio a ser conhecido como Arte do Inconsciente. Assim como Freud abre, a partir de A interpretação dos sonhos (1900), as portas para o inconsciente, descobrindo a nova gramática do processo primário, os modernistas inauguram uma nova forma discursiva a partir da subversão dos processos convencionais da representação artística. A autora retoma a já clássica crítica de Monteiro Lobato (1917) à exposição de Anita Malfatti em São Paulo, e deste modo nos apresenta ao debate modernista em nosso cenário cultural. Este tema será aprofundado no trabalho de Silvana Rea, que situa o Modernismo em uma perspectiva histórica de ruptura com a tradição acadêmica e naturalista. Convida os leitores a um fino exercício clínico de pensar, de que modo “a rede de olhares que liga Anita a Lobato e Tarsila” é útil para pensar a situação clínica de uma analisanda.

A Modernidade também contém um projeto político emancipatório a partir do qual se desloca o poder do monarca absoluto, ancorado no poder divino, ao indivíduo e às modalidades de contrato social por ele instituídas. Novos desafios surgem no campo sócio-político na busca de formas de exercício do poder, seja no espaço público ou na esfera do encontro do Eu com a alteridade. Como dar conta do mal-estar e do desamparo que se insinuam como decorrência desta nova realidade? Joel Birman, por meio de uma rigorosa discussão da problemática da influência, crença que sustenta o dispositivo da hipnose ou da sugestão, resgata a perspectiva crítica contida no mecanismo da transferência, com o qual Freud inaugura uma nova possibilidade de transformação da subjetividade ao privilegiar o registro da liberdade em contraposição ao da submissão como resposta ao desamparo.

O tema da liberdade, tão caro à psicanálise e aos modernistas, faz-se presente no erudito trabalho de Marcio Seligmann, professor de teoria literária da UNICAMP. Ele discorre, em seu texto, sobre a reflexão benjaminiana em torno da fotografia. Sustenta que ela inaugura uma nova perspectiva de conceber a imagem, que passa a não ser mais vista como portadora de uma tradição. Dirá o autor: “na imagem, ao invés do narrado encontramos uma densificação do histórico que o arranca do fluxo da dominação”. A submissão ao trauma, a uma temporalidade estanque, encontra na tese do jogo, como “segunda-técnica” vinculada à ideia do lúdico na experiência, um recurso que emancipa o homem do próprio sacrifício (alusão à técnica massificante e alienante).

Esses textos de abertura, que contextualizam o nascimento da psicanálise como práxis transformadora, levaram a equipe a homenagear os pioneiros da psicanálise no Brasil. Escolhemos republicar o trabalho de Luiz de Almeida Prado Galvão, publicado no primeiro número da Revista Brasileira de Psicanálise. Este trabalho refere-se à introdução da Psicanálise em São Paulo, a primeira cidade sul-americana a recebê-la. Neste esboço, que o autor traça em linhas gerais, destacam-se as figuras dos pioneiros Durval Marcondes e Adelheid Koch, o primeiro como pioneiro no movimento psicanalítico do país e a segunda como pioneira do ensino da Psicanálise no Brasil e na América Latina. Galvão, em seu delicado ensaio, assinala o nascimento bifronte da tradição psicanalítica em solo brasileiro, encarnado na figura emblemática de Durval Marcondes, vinculado por um lado ao Modernismo no campo da estética e das artes, e por outro à psiquiatria. Os desdobramentos e novos pontos de irradiação da psicanálise no Brasil serão os temas abordados nos trabalhos de dois convidados, Claudio Eizerik, primeiro Presidente brasileiro da IPA, e Gleda Araujo Brandão, atual presidente da FEBRAPSI. Como marcas identificatórias da psicanálise em nosso país, Eizerik destaca a mestiçagem e o pluralismo teórico que se amplia e se desenvolve no por vezes doloroso exercício de aprender a escutar a voz alheia. Já Brandão descreve ricamente o processo iniciado há algumas décadas de interiorização da psicanálise, em um movimento da expansão das fronteiras para além das grandes capitais e centros litorâneos. Testemunho da riqueza e força deste processo será a realização em Campo Grande do Congresso Brasileiro de Psicanálise, cujo tema será “Ser contemporâneo: medo e paixão”.

Encerra-se esse eixo temático com o instigante trabalho de Denise Salomão Goldfajn que, olhando para o futuro, indaga o presente da formação psicanalítica, as nossas instituições, a conflitiva edípica/institucional, as fantasias e paradoxos contidos no lugar dos membros filiados aos institutos. Tradição-invenção, o novo e o antigo, manutenção ou ruptura, são entendidos como mais do que simples pares de opostos. Denise nos convida a examinar sem preconceitos esses paradoxos envolvidos na vida institucional, as questões de poder e de gerações que influenciam, sem lugar à dúvida, os destinos futuros de nossa disciplina. Como horizonte ainda incerto, aparecem as novas formações no leste europeu e na Ásia, nos quais analistas formam-se sem serem vinculados a Sociedades, mas como membros autônomos da IPA. Um novo destino?

Publicamos, na seção de Intercâmbio, um recente e inédito no Brasil trabalho de Thomas H. Ogden, considerado por muitos um dos autores mais criativos no cenário psicanalítico atual. Em seu trabalho, sustenta a ideia de que houve uma mudança de ênfase na psicanálise contemporânea, passando do foco no conteúdo simbólico do sonho, do brincar e das associações para os processos que lhes dão origem. Assim, discute neste texto três formas de pensar, ricamente ilustradas com material clínico: pensamento mágico, pensamento onírico e pensamento transformativo.

Destacamos também, fora do eixo temático, os instigantes artigos de Luiz Carlos Uchôa Junqueira Filho, autor que explora com rigor e sutileza o vazio e a negatividade que atuam como fatores decisivos no estado de “mudança catastrófica” descrito por Bion. Ignácio Alves Paim Filho apresenta-nos um rigoroso estudo em torno da metapsicologia da pulsão de morte. Por fim, apresentamos também o trabalho de Vera L. C. Lamanno-Adamo, que propõe, a partir de situação clínica, a ideia de que a elaboração da situação edípica pode se constituir como núcleo organizador de pensamento complexo, como formulado por Edgar Morin.

Não deixem de consultar nossas seções de Resenhas e Lançamentos. Garimpamos para nossos leitores o que há de novo e interessante no cenário das publicações psicanalíticas.

Concluo este editorial com as palavras de Ogden, que sinalizam muito apropriadamente o caminho aberto pelos modernistas e pelo pensamento freudiano: “É esta luta por pensamentos transformadores que faz da psicanálise uma atividade subversiva, uma atividade que solapa inerentemente a gestalt (os termos silenciosos que se auto-definem) das culturas sociais, interpessoais e intrapsíquicas em que paciente e analista vivem”.

Boa leitura!

 

Referências

Andrade, M. de. (1922). Prefácio interessantíssimo. In M. de Andrade, Pauliceia desvairada. São Paulo: Casa Mayença. (Edição fac-símile).         [ Links ]

Benjamin, W. (2006). Passagens. (W. Bolle, org. ed. brasileira; Rolf Tiedemann, ed. alemã). Belo Horizonte: Editora UFMG; São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo.         [ Links ]

Freud, S. (1976). A interpretação dos sonhos. In S. Freud, Edição standard brasileira das obras completas de S. Freud. (Vol. 4). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1900).         [ Links ]

Gagnebin, J. M. (2006). Verdade e memória do passado. In J. M. Gagnebim, Lembrar escrever esquecer (pp. 39-47). São Paulo: 34.         [ Links ]

Lobato, M. (1917, 20 de dezembro). A propósito da exposição Malfatti. O Estado de São Paulo.         [ Links ]

 

 

1 O recurso da montagem como metodologia epistemológica de investigação implica para W. Benjamim uma nova abordagem da história que se contrapõe ao historicismo linear.

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