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Revista Brasileira de Psicanálise

Print version ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.46 no.2 São Paulo Apr./June 2012

 

DIÁLOGO

 

Entrevista1 com o arquiteto Paulo Mendes da Rocha2

 

 

Fundações para um acervo criativo
A paisagem, a forma, o lugar

Costumamos falar em formação, pois ninguém pode ser um fruto da natureza. Somos o que sabemos que somos: uma formação, uma lição, um aprendizado. Acontece que esse aprendizado é feito pelo simples fato de você nascer, viver, aprender, aprender a falar.

Eu nasci na cidade de Vitória do Espírito Santo, um porto de mar, com os trabalhos do mar, a geografia e tudo aquilo que eu desfrutava; agora, me é claro como um trabalho executado sobre a natureza. Ou seja, a natureza por si não vale nada, você tem que construir as coisas, a cidade.

O que eu quero dizer com essa questão de ter nascido numa cidade portuária? É em relação aos trabalhos do mar. Quando eu tinha cinco ou seis anos, minha avó me mandava buscar meu avô no Bar Sagres - nome extraordinário! Ele ficava em frente ao porto, no cais, numa praça que interrompia os armazéns, uma praça urbana, na esquina da praça com os navios. Lá iam os homens armadores, os homens do comércio e os homens como meu avô, que não tinham nada que ver com os trabalhos do mar, mas ele, como era italiano, ia buscar os vinhos que os navios traziam. A vida de um porto é muito animada: a vida noturna, a posição das mulheres no cais de porto... Os homens se encontravam nesse Bar Sagres. Até porque a tripulação do navio também vive na esperança do próximo porto, pois é um confinamento aquela vida no navio. É uma animação incrível.

A minha educação sobre o valor da cidade envolve tudo isso. E se você fosse atento, digamos, você ia vendo que a cidade tinha uma luz fraca. Muitas vezes, essa praça estava mais iluminada pela luz do navio do que por sua própria luz. Um dia a praça estava clara e no outro estava escura, porque o navio ancorado tinha saído.

São coisas assim, belíssimas. De paisagem, de forma e de configuração do lugar. Mais tarde, estudando, eu fui aprender coisas como, por exemplo, o que aquela cidade estava lá, pela facilidade geográfica do porto. A capitania de Vitória de Espírito Santo é uma das primeiras do Brasil, desde o descobrimento. É o lugar que na época podia amparar aqueles navios. Eu não sei por que, mas para mim tudo isso sempre foi uma lição.

 

Tempo, memória, a família

Durante a minha vida inteira convivi com meu pai, que era um engenheiro bastante notável e um homem muito interessante, eu avalio hoje. Era uma relação de afeto, intimidade e respeito total entre nós, principalmente no campo do trabalho. Menciono isso para dizer que aquilo que seria simples memória da minha infância na cidade de Vitória foi reiterada pela posição do meu pai engenheiro e do meu avô materno que também era um construtor.

Eu também posso dizer que fiz um curso de arquitetura com o espírito crítico muito agudo. A questão era valorizar o que o professor estava dizendo e não ouvir e entender de uma maneira mais superficial. Eu fui criado num ambiente de muita liberdade. Tinha a noção de que a responsabilidade era minha; não era a escola que ia me fazer. Eu não sei de onde vem isso. Talvez, meu pai tenha me educado assim, com essa liberdade.

Meu pai, de família de origem baiana, estudou engenharia no Rio de Janeiro. Formou-se, montou uma pequena empresa e ganhou uma concorrência nacional para fazer uma ponte na serra do Espírito Santo. Para fazer os aterros dessa obra, contratou um italiano empreiteiro que era meu avô italiano. Acabou casando-se com a filha dele e estabelecendo-se em Vitória. A minha mãe também teve uma importância muito grande na minha formação. Meu pai construiu uma casa na praia, mas acabou arruinado com a crise de 29. Assim, já comigo nascido, ele voltou para a casa do pai e fomos todos morar em Paquetá na casa do meu avô. Depois, por outras razões, a família separou-se. Ficamos, eu, minha mãe e minha irmã, separados do meu pai por uns quatro anos. Nesse período, meu pai se meteu na Revolução de 32, em São Paulo, e foi preso. Mais tarde, quando se estabeleceu em São Paulo, mandou nos buscar. Por isso, então, eu sou paulista, capixaba, baiano e italiano, e fui educado com tudo isso. E era justamente a família do meu pai, baiana e mais metida do que a família italiana, forte e trabalhadora da minha mãe, que rompia qualquer tradição. Eu fui criado no conflito.

É bom lembrar que eu nunca vi nada disso como um conflito de família, mas conflitos do âmbito da sociedade e da vida. Como você vê, eu fiz, e estou fazendo até agora da minha vida, uma história que tem valor, uma experiência refletida e transformada em memórias úteis para a nossa vida no planeta. Eu sei das coisas, de certas misérias humanas, das dificuldades e do valor do trabalho.

O fato é que isso não é consciência no momento em que você vive, mas você já vê as coisas de certa maneira, e a memória fica guardada. O tempo fica confundido entre o que veio primeiro e o que veio depois, o que reiterou e fez outra imagem. Assim fui andando na formação da minha consciência.

O que eu queria dizer em relação a tudo isso que contei da minha biografia é que eu tenho uma memória guardada. O saber é feito de intuição. E na hora que eu o convoco por urgência, na angústia de ter que fazer alguma coisa, surge o que eu mesmo não sabia que sabia. É uma coisa fantástica.

 

Modernidade e modernismo
Liberdade crítica

Se você quiser que eu dê uma passada rápida pela minha formação, vou começar dizendo que eu nunca levei a sério essa questão da modernidade. É muito difícil falar de tudo isso, porque já estou velho e não sei até que ponto é verdade o que eu conto, ou se estou inventando. Mas eu estudei numa escola de arquitetura que, como todo mundo pode imaginar, tinha cursos de História da Arte etc. e tal; e eu tenho uma ideia que, já naqueles tempos de escola, enquanto ouvia dos professores coisas sobre valores estéticos, eu achava que moderno mesmo seria, por exemplo, uma pirâmide do Cairo.

Eu tive um curso secundário muito rico, com professores extraordinários de física elementar, mecânica etc. Assim, na universidade, quando eu vi os hieróglifos e fui estudar os mistérios daquela civilização fantástica, compreendi logo que as pirâmides eram autônomas como artefatos humanos. E vi que as pirâmides eram as máquinas da sua própria construção. É um plano inclinado, pois só assim você consegue pôr uma pedra a 140 metros de altura. Talvez esse fosse o desejo fundamental daquilo. Com isso, talvez, tenha adquirido essa liberdade em relação à questão da arquitetura; enquanto um desiderato social, a cidade contemporânea e a invenção possível do que fazer.

Tenho impressão de que eu fiz essa crítica desde cedo. Isso para mim foi sempre muito útil para preservação da liberdade. Nunca cultivei a liberdade como um tema, mas sempre fui livre em relação a dogmas, princípios e modas de época. Também nunca fiz isso por nenhuma razão especial, simplesmente para gozar melhor a vida. Eu tinha consciência de que isso era melhor para mim. Mas acabei sendo vítima disso, porque me deram prêmios, e eu me estrepei, perdi um pouco da liberdade.

Nunca acreditei em estilo, modernismo, época, isso e aquilo; principalmente no âmbito da arquitetura. Para mim, logo vi que tinha que ser funcional, racional, porque senão não se constrói. Essas divisões e classificações, principalmente quando são feitas de forma estrita, são invenções da crítica para poder exercer o seu desiderato de análises. Toda arquitetura deve ser funcional, construtiva.

 

Volpi: o valor da intuição

Eu tenho a impressão que Volpi é a figura que eu mais gosto de todo esse horizonte, chamado por nós, modernismo. Situou-se no âmbito das artes em relação à abstração, construtivismo, geometrismo, ou seja, como homem moderno. Ele não era erudito, absolutamente. Independentemente desses movimentos e de sua enorme importância, como sabemos muito bem, sua figura é extremamente interessante para mim dada sua biografia.

O ponto que talvez seja interessante e que vem à tona para mim é o da intuição, porque acho que eu também sempre vivi muito disso. Uma intuição que não é abstrata, mas a capacidade de convocar memórias que estavam dormidas, boas memórias guardadas para você atravessar esses horizontes.

Como esse homem fantástico - Volpi, que sempre imagino descalço ou de tamanco e que conheço porque li a biografia dele - é uma figura invejável como sabedoria de vida privada? A essência da única coisa que ele tem na sua vida é saber preservar isso de modo íntegro; e fez o que fez.

 

Do Ginásio do Paulistano à importância de Vilanova Artigas

Eu sempre tive amigos muito interessantes e devo muito a eles. Quando formado, fizemos um grupo de cinco. Não começamos de modo mambembe. Fizemos um rateio e alugamos um escritório extraordinário no Edifício Fillizola, em frente à Biblioteca Mário de Andrade. E fizemos de tal modo, que, se você entrasse lá, parecia um grande escritório; você entrava e via cinco ou seis pranchetas, como num grande escritório; apesar de cada um estar fazendo seus pequenos biscates.

Então apareceu o concurso público do Ginásio do Paulistano. Qualquer um podia se inscrever; bastava estar diplomado e registrado no CREA. Eu convidei meu colega de prancheta do escritório, João De Gennaro. Trabalhamos e ganhamos o concurso. Foi um concurso extraordinário, que teve muita repercussão. Não era um concurso qualquer. Todos os arquitetos de São Paulo entraram, porque era um clube aristocrata, de prestígio, com dinheiro e num endereço ilustríssimo já naquela época.

Depois que ganhei o concurso, aconteceu uma coisa extraordinária: o Artigas3 me convidou para ser seu assistente.

Foi uma questão também ligada ao fortuito, à sorte. A Universidade de São Paulo ia constituir a independência do curso de Arquitetura, como Faculdade de Arquitetura. Nessa circunstância, foi doado aquele palacete maravilhoso na rua Maranhão. Cada professor podia convidar dois ou três assessores para o quadro. Como eu tinha ganhado o concurso, o Artigas achou que eu podia ser um deles e, na sua visão ampla (coisa muito própria do Artigas), convidou um menino do Mackenzie. Nunca discutimos isso, mas eu imagino que ele sabia o que estava fazendo. Suponho que era para romper um pouco a visão um tanto dogmática do curso de Arquitetura. Eu não conhecia o Vilanova Artigas pessoalmente, nunca tínhamos tido contato pessoal. Com sua formação de belo marxista, membro da alta direção do partido comunista, mandou me sondar se eu aceitaria ou não o convite para ser professor. Assim eu me tornei assessor do Artigas.

Daí para diante eu passei a assistir às suas aulas e fiz um segundo curso de arquitetura. Meus horizontes se abriram para outra dimensão. Aquilo que para mim tinha muita ligação com a geografia, os aspectos físicos e geomorfológicos do lugar e sua transformação, como já falei antes, e que me formou desde muito cedo na infância, passaram a ter outra dimensão. A consciência sobre o lugar foi transformada. Comecei a ver os aspectos políticos e os interesses da sociedade nas suas necessidades e desejos de satisfação imediata pela questão da habitação, do transporte público, enfim, a dimensão social política dessa questão.

 

Produção artística - projetos de museus
O MuBE

A história de cada um de meus projetos é cheia de meandros. O MuBE foi concurso; eu não podia garantir que escolheriam o meu projeto. Quero dizer que não sou especialista em museu, pois isso não existe. Ninguém sabe o que é um museu. E o que se diz, cada vez mais, é que o grande museu é a própria cidade.

Vou falar como arquiteto. Eu resolvi fazer o concurso, apresentar uma proposta. Eu não tinha ideia do que havia no local, apesar de já ter estado por lá muitas vezes. Então fui examinar. Passeei ali, desci e vi. Para contar a vocês, tenho que falar por partes, porque é muito difícil dizer tudo numa frase só, mas o que acontece é que a gente vê tudo ao mesmo tempo, pelo menos o fundamental.

Antes de chegar lá eu já estava encasquetado com a ideia de um museu da escultura. Por que eles inventaram isso? Como é que um museu pode ser da escultura?

Em arquitetura não há problemas. A grande graça da arquitetura é que você cria os problemas e os resolve. A grande questão é pôr o problema no lugar certo, pois são justamente os problemas que fazem o projeto. E eu pus logo como problema o seguinte: sendo um museu de escultura, a parte da exposição deve ser a céu aberto. Isso é, às vezes, indispensável, porque aquela escultura foi feita para aquilo, à luz do sol. Eu já tinha visto, inclusive, algumas coisas que me comoveram nesse sentido. Fui ver uma exposição do Henry Moore maravilhosa no MoMA, que na época tinha um territoriozinho muito pequeno; era um quintalzinho. Aí eu fiquei pensando: se eu fizer uma construção, vai sobrar apenas quintal, jardim, recuo lateral, recuo lateral, e isso não é espaço para escultura. Continuei: na história da arquitetura, do ponto de vista arquitetônico, quais são os territórios notáveis a pleno céu? Um deles é o pátio interno. Mas eu execro o pátio interno porque é coisa colonial e de convento, que eu não queria saber. Eliminei. Há ainda um outro espaço, belíssimo, que é o teto jardim. É belíssimo porque o céu aberto está garantido e o confinamento é maravilhoso, pois não exclui as sobras do terreno, não existe muro. Você só vê a abóboda celeste.

Mas tinha ainda o problema do acesso, porque você tem que sair e entrar por fora. E há ainda as contradições: todo mundo acaba querendo também fazer um pavilhãozinho para pôr um barzinho. Não acaba nunca, é uma tragédia.

Chegando lá durante minha visita, vejo aquela diferença de nível de uns quatro metros. Decidi então, de cara, fazer o museu subterrâneo para as coisas pequenas e usar todo o terreno para exposição a céu aberto.

Então surgiu outra questão logo imediatamente: “o senhor não fez nada. Vai fazer um buraco. Vai parecer estação de metrô”. Eu tinha que fazer um sinal, alguma coisa para dar notícia do museu.

Escavando, eu ia mexer num território antigo e ia me referir a uma avenida recente, que foi feita outro dia. São duas presenças do homem na natureza: o próprio território e a avenida. Pensei que deveria fazer alguma coisa perpendicular à avenida. Ficaria bem. E como existe a rua Portugal que chega lá, faria na direção da rua Portugal. Faltava ainda definir a altura. E, conforme eu havia imaginado, eu teria que fazer o museu sem colunas; defini que vinte metros para a altura seria bom. Seriam três pavilhões de vinte metros, já que eu teria que fazer muro de arrimo no fundo, e isso seria uma decorrência natural, pela sabedoria construtiva. Foi assim: já vi que ia fazer assim. A ideia de fazer subterrâneo e de colocar um sinal é o que se chama o desenho. Aí ele começa a ter uma linguagem própria.

Pensei então: “vou baixar um dos pavilhões para fazer fora, não tão monótono, uma espécie de teatro ao ar livre. Mas faltava a altura. Então pensei que seria da altura de uma casa para ser possível avaliar o tamanho das esculturas que estão lá, senão você perde a noção da dimensão; porque ao ar livre você não sabe o tamanho das coisas. Seria como uma espécie de régua de medida.

O tamanho de tudo é proporção: você olha o terreno, é de 12 metros, e o resto é decorrência. A iluminação foi de forma diversificada. Se eu pusesse lampadazinha, ia parecer um posto de gasolina. Então iluminei especialmente a área que é teatro, de um outro modo a área baixinha que serve para exposições, e também embaixo da marquise. Se você está de um lado e vê uma escultura do outro lado, você pode vê-la cortada. Depois, quando você atravessa, vê ela inteira. Aquilo é uma escala horizontal simples, sem dúvida.

Há ainda a questão comum em todo empreendimento que é a verba a que temos de nos adequar. O museu tem só um caixilho de vidro, onde trabalha o pessoal da secretaria. E como ficaria gente passando ali aborrecendo a secretária, eu fiz um laguinho com uma pontezinha para você ser obrigado a passar longe. Isso me encantou. Fica uma pequena Veneza com o pilar dentro d'água. Esses foram desdobramentos.

 

A Pinacoteca: tradição/invenção

A Pinacoteca foi diferente. Diferente porque é uma obra de arquitetura do senhor Ramos de Azevedo. Já estava lá. Fui dar uma olhada sem nenhuma preconcepção, mas comecei de novo, como no caso do MuBE, a levantar os problemas. É uma construção muito rigorosa. É o que se chama uma planta palladiana, absolutamente simétrica em relação a dois eixos. Ela tem quatro escadas, galerias, ou seja, tem uma disciplina para aqueles salões todos com a ideia de uma visitação. Do ponto de vista de um museu, você vai visitar e você não visita nada. É como visitar um parente que está internado na Santa Casa; tem um roteiro: tem que seguir na galeria tal, pegar os corredores etc. Nessa arquitetura palladiana existe uma disciplina, porque uma graça da arquitetura é que ela tem que ter um programa.

Na verdade, o que se faz é não respeitar aquele programa, de tal sorte que quem passa a frequentar, seja quem for visitar ou viver ali, possa fazer o contrário. Você tem que resolver aquilo de um jeito, como quem engana os outros, pois o que você quer mesmo é amparar a imprevisibilidade da vida; contar com essa imprevisibilidade, ou melhor, com a criatividade do outro.

A questão lá era principalmente imaginar que, com o passar do tempo, tudo estaria contrariado nesse sistema cartesiano e stricto sensu do Palladio. E mais, às vezes, é bom você provocar sua própria indignação. O projeto em si era anacrônico, porque para 1900 (quando o prédio foi entregue, apesar de ainda não concluído) o mundo já era moderno. Esse cara era um colonizador. Nós tínhamos que reproduzir essas coisas neoclássicas? Não precisava ter feito aquilo para inaugurar o Liceu de Artes e Ofícios de São Paulo.

Queriam fazer a Pinacoteca e, ao mesmo tempo, transformar aquilo em possibilidade de um museu para receber exposições internacionais etc. e tal. Havia a questão do prédio estar inacabado e, assim, estava tudo podre, mas para mim havia um certo encanto naquele apodrecimento antes de pronto. Havia ainda a avenida Tiradentes que tinha sido ampliada, alargada e, assim, a escadaria de entrada estava estrangulada e seria impossível receber visitantes, principalmente esses que chegam em grupo num ônibus inteiro. Aquilo que o francês chama o acolhimento, onde você é recebido antes de entrar, não funcionaria. Assim, como existiam duas varandas e dois peristilos para o outro lado, resolvi mudar a entrada, como se eu tivesse virado o prédio, e demolir a escadaria, fazendo um belvedere para a avenida. Resolvi que a entrada seria pelas varandas e a saída, no jardim.

Ao entrar no prédio eu encontrava três vazios: pátio, um octógono embaixo (que não tinha piso) e mais outro espaço. Pensei então em fazer uma ponte. Quando eu estava lá dentro, fazendo a primeira visita, passaram umas andorinhas voando que cruzaram os três espaços. Eu pensei: como as andorinhas, vou transgredir. Vou fazer uma visita de fato para eu desfrutar, não para cumprir aquele roteiro predeterminado.

Ao mesmo tempo, os espaços são fraturados naqueles pátios. Chove, há umidade e tinha até uma árvore no pátio baixo que os funcionários resolveram regar para fazer greve, quando ouviram que eu ia derrubá-la. Pensei então em cobrir o pátio de cristal (como a nossa FAU) e abrir todas as janelas. Quando eu entrasse, entraria em um grande museu, não num salão e depois no outro, depois num pátio. Arranquei todas as 98 janelas. Deixei tudo defenestrado. Fiz para os outros se divertirem.

Para arrebentar tudo e começar a reformar, tinha que reforçar os salões. Chamamos calculistas. Usamos uma grua, que pôs as vigas e a ponte quase pronta. Não teve cimento e água para não estragar nada. Lixou-se, lavou-se aquilo tudo e montou-se aquela estrutura metálica que é uma claraboia - uma invenção do Artigas, que é uma sucessão de troncos de pirâmides com cristal e que não precisa ser vedado, pois cada um é independente do outro. Fez-se tudo da noite para o dia. Montamos tudo lá, cobrimos de cristal, colocamos a ponte, e estava pronto.

 

Arquitetura, tempo e desejo

Bem, a questão da arquitetura, ligada à cidade lato sensu e a desejo, me faz pensar numa visão de degenerescência. A sociedade é uma sociedade para consumo; o que me parece degenerescência total. Hoje, o desejo pretende ser fabricado pela propaganda. Quer dizer, o consumismo não pode ser nenhum amparo, para uma visão de arquitetura como habitabilidade do planeta.

As coisas mudaram muito rapidamente em relação a essa questão. Você estimula o desejo simplesmente por uma razão de mercado. Por isso você consome o que não necessita e passa a desejar de modo falso. Num andamento histórico, tudo mudou muito do ponto de vista daquilo que seria, de fato, um desiderato do homem no planeta. Hoje já é um planeta transformado em puro mercado. Portanto, a questão do desejo é muito discutível; é mais interessante do ponto de vista filosófico.

Não sou filósofo e não quero parecer pretensioso, mas, do ponto de vista filosófico, podemos cogitar daquilo que ainda não é, mas poderia ser. Então eu pergunto: o que nós podemos dizer da cidade hoje? Penso que estamos numa rota de desastre total. Por outro lado, para não seguir numa linha fácil e muito comum do pessimismo total, penso que está se formando uma nova cultura popular sobre a natureza.

É algo indiscutível que nós somos um planeta perdido no espaço, submetidos às leis da mecânica celeste. Ninguém discute mais, pois existe uma nave, um laboratório lá fora - a MIR -, que está estudando isso, e todo mundo está vendo. Está se formando uma consciência popular sobre tudo isso. E, como nós sabemos, a cultura popular é que move o mundo. A ideia é que há como uma solidariedade em relação a questões que não discutimos mais. O homem está compreendendo que nós somos parte da natureza. E se isso acontecer - e eu estou dizendo que está acontecendo -, nós temos uma nova consciência sobre o planeta e a superpopulação.

As relações também são outras e a consciência sobre tudo isso mudou; como, por exemplo, a presença da mulher na política e o ponto de vista da ação concreta do pensamento feminino sobre as decisões humanas. É uma novidade e uma expectativa extraordinárias! Há muito tempo nós temos esse projeto. Eu quero ouvir o que as mulheres têm para dizer. Porque nós somos divididos em masculinos e femininos. Isso é inexorável. O chamado gênero humano é dual - masculino e feminino -, com todos os problemas que isso possa trazer para o indivíduo que quer se manter indivíduo. Eu estou falando de sociedade, não se pode fazer nada, ou muito pouco, pelo indivíduo, eu tenho a impressão. Nós somos por nós mesmos, cada um, mas diante de questões como essa... Quando não houver mais meninos discutindo que somos parte da natureza e que estamos desamparados, pois, necessariamente, não somos eternos. E que tudo isso, o planeta, a natureza é uma passagem e está em transformação sempre... É por isso que eu quis valorizar a ideia de cultura popular.

Por isso, essa famosa ideia de um paraíso perdido que muitas religiões (senão todas) alimentam. A ideia de uma vida eterna fica mais ou menos como uma expectativa justa a ser alimentada, uma vez que se pode imaginar que todo nosso trabalho na curta vida que temos (a questão da escola, da educação, a ternura que temos pelos que vêm aparecendo, pelas crianças) vem da ideia que talvez consigamos um eterno inacabamento do gênero humano no universo. Hoje é muito plausível imaginarmos que estamos trabalhando com a ideia de expansão da vida humana no universo. Por isso cogita-se, discute-se se há ou não água em tal planeta. Tudo isso é de senso comum e está na televisão.

A consciência sobre educação, formação é uma questão primordial hoje em dia. Acho que a grande revolução será no sentido da educação, inclusive do ponto de vista prático e político.

 

Arte, ciência e técnica

Bem, para o trabalho humano, arte, ciência e técnica são vistas como uma coisa só. Temos que admitir isso, pois sem a tela esticada não existiria tudo que nós chamamos de pintura. A arte e a técnica sempre foram associadas. Nesse sentido também, o que deveria ser ensinado para as crianças é que os recursos são muito escassos. A graça de tudo que sabemos é que são apenas sete notas musicais e todas as sinfonias; são 26 letras do alfabeto e todas as línguas; são 10 algarismos e alguns sinais e temos toda a matemática.

Por que arte, ciência e técnica? A bomba atômica é arte? É uma maravilha aquele cogumelo, mas é ciência ou é degeneração? É, pelo menos, degenerescência daquilo que os cientistas quiseram fazer. A grande questão é a decisão política. Nós já podemos fazer muito mais do que necessitamos, por isso temos que decidir de modo político. Nós temos que imaginar, saber com clareza e decidir do ponto de vista político.

Assim como acontece com a questão populacional - superpopulação, controle de natalidade -, nós estamos condenados a controlar a natureza ou desistir. Podemos ser extintos. Tantas espécies foram, por que não nós? É uma decisão nossa, é um projeto. E isso deve ser pensado em consenso porque é inevitável. Não se pode esconder isso, ou fuzilar quem diz, queimar na fogueira, ou apedrejar. Nós temos que lutar contra os aspectos mais obscurantistas do que está aí como notícia sobre o que já sabemos. Como na peça Galileu Galilei4 do Brecht - uma linda peça, em que a questão, em duas palavras, é a seguinte: Galileu foi condenado à fogueira, mas como tinha muitos amigos cardeais, sua execução foi sendo protelada, e ainda fizeram um documento para ele assinar, em que ele afirmava que renunciava suas ideias e então seria perdoado.

Ele ficou um longo período encarcerado e podia receber apenas duas visitas - uma visita era a pajem que fazia comida porque ele era guloso, e a outra visita era um discípulo “tolo” que ele tinha, mas que de tolo não tinha nada. Era o discípulo de que ele mais gostava e através de quem ele mandava mensagens para Kepler. Naquela época tinha que ir de lombo de mula; então ele escrevia os bilhetes e dava para esse menino. A peça então termina - é o apogeu da peça - quando esse menino chega mais uma vez, e o Galileu está muito entusiasmado porque acabou de comer peru assado. Lá fora está um alarido com uma música muito estranha, e Galileu pergunta o porquê daquela música o dia inteiro. E o discípulo responde: “você não está sabendo? É carnaval, mas esse ano há uma dança e uma modinha novas que todo mundo canta. A música diz que o mundo é que gira em torno do Sol e nós estamos todos como bêbados andando e girando assim”. Galileu surpreendido então diz: “como? então está na boca do povo? Me dá aquele papel que eu assino”. É uma maravilha!

É por isso que eu falo com tanto entusiasmo na formação da cultura popular. Nós sabemos que foi a cultura popular que mudou o mundo da Idade Média para o Renascimento - com Rabelais esclarecendo os dogmas. A força da cultura popular é histórica e fica muito bem ilustrado nessa anedota que o Brecht apresenta na peça Galileu Galilei.

É verdade que em algum momento Galileu começou a perceber que não era só ele que pensava e dizia aquelas coisas, então ele podia renunciar, porque a coisa era de domínio público. É o próprio Brecht quem diz: “ai do povo que precisa de heróis!”. Você não precisa ser herói, tem que ter confiança nos outros. Você precisa prestar atenção, não ser idiota. O maior desastre é a imbecilidade, a imbecilização das pessoas numa posição conformista estúpida.

Falando em arte, ciência e técnica, penso que a arquitetura exibe o êxito da técnica. Você não pode empregar a técnica para produzir um desastre. Por exemplo, a beleza da ponte Golden Gate - um protótipo de ponte estaiada. Na bruma, nem conseguimos ver a estrutura; só se vê a luz dos carros passando, é uma maravilha! É um êxito da técnica para satisfazer um desejo, atravessar a Baía de São Francisco. Ou seja, as coisas existem antes que se faça, existe primeiro como desejo. A arquitetura é uma forma peculiar de conhecimento. Assim como a psicanálise deve ser. Não é propriamente uma especialização, é uma visão ampla de uma condição particular e que deve mudar com o tempo, não pode ser uma coisa preestabelecida.

 

Projeto de cidade

É impossível uma cidade sem transporte público, uma cidade com divisão classista. Não tem sentido. Para nós, arquitetos, a ideia de casa popular é uma estupidez. Como se pode fazer uma casa popular? Como é que se faz para ela ser popular? O quilowatt popular? Água potável popular? É potável, ma non troppo, como? O esgoto não está ligado na rede? A rede do esgoto vai para o tratamento, mas o esgoto popular não trata? Ou você não faz ou faz a casa. A casa contemporânea não pode ser popular. Precisa ser reacionário, fascista, classista, para fazer casa popular.

Houve aqueles que fizeram casa popular de canto, cor de abóbora, com telhado e com residência no térreo. Você não pode fazer dormitório no térreo. Você não pode abrir a janela e a turma passar na rua. Como é que faz? O povo é muito sabido, abre a janela do térreo e vende coxinha de galinha. O térreo tem que ser comércio. A cidade é a cidade. Nós temos certa experiência.

Se você tem um transporte público disponível, você sai do trabalho, pega o metrô, ou vai pegar o próximo dois minutos depois, e encontra um amigo que vai para o bar. Você então vai junto beber e conversar, aí ele te convida para um teatro. Você telefona para sua mulher. Ela vem de metrô e vocês vão ao teatro. E desdobra-se a vida. Seria um inferno uma outra situação em que isso não pudesse ocorrer. Portanto, a questão da arquitetura não é só formal, é também do ponto de vista de uma previsão para evitar o desastre humano. A arquitetura é também dizer coisas, tentar fazer qualquer coisa que possa evitar o desastre.

Você vai dizer que sou um sábio arquiteto, que sei fazer cidade. Não. Eu não sei; ninguém sabe. Você não pode saber como é, mas pode saber como não é. Você pode prever o erro, prever o desastre. Já há certa experiência sobre tudo isso. Veja o que São Paulo fez com os rios. Podemos imaginar que era possível não fazer isso.

Fundaram, por exemplo, uma Cidade Universitária. Mas como pode ser cidade no meio do mato? Você tem uma universidade gratuita, e quem não tem automóvel não pode ir. É um plano maligno. A Politécnica estava muito bem instalada no centro. Seria fácil comprar terrenos em volta, desapropriar, ampliar. A Faculdade de Direito está lá. A Medicina está lá. Qual foi o problema? E até hoje há problemas. Não sabe se abre ou não se abre uma segurança específica para a Cidade Universitária. Inventam-se problemas que não existi-riam. Você chama de cidade o que não é uma cidade.

Por outro lado, a cidade deseja a presença dos estudantes; a cidade vive disso. No dia que o metrô chegou até a Praça da República, e os meninos podiam ir de metrô naquela escola modelo, extinguiram a escola da Praça da República e a transformaram na sede burocrática da Secretaria de Educação. Portanto, o que há de mal na cidade é também parte de um projeto. A grande questão da arquitetura é política. A grande questão do desenho da cidade é político.

 

O projeto humano e a natureza

Eu sempre tive paixão pelo Van Gogh. Eu até li um livro de suas cartas para seu irmão Theo; mas nunca tinha ouvido falar do diário de Van Gogh. Acontece que eu li, na biografia da Hannah Arendt, que Heidegger montou um curso sobre a reflexão que estava no diário. Lá Van Gogh diz simplesmente o seguinte: “hoje eu estou convencido de que a história do homem é a história do trigo. Somos jogados na terra para desabrochar e depois sermos moídos para nos tornarmos pão. Ai daquele que não é moído”. É uma maravilha! A vida tem que ser vivida.

Gente não é natureza. Há essa contradição: a ideia de se opor à natureza, saber que a natureza por si é um desastre, que ela é madrasta. Houve um acidente aéreo terrível quando um avião teve que pousar na mata. Não morreu ninguém no acidente, mas em quinze dias morreram todos os sobreviventes, porque não conseguiram comer gafanhoto. Ninguém come formiga da noite para o dia. A natureza é terrível. Você tem que transformá-la. Como diz o filósofo, você tem que obrigá-la a revelar os seus mistérios, os seus segredos, e transformá-la em virtude. Nós é que transformamos a natureza em virtude, tecendo do algodão um pano e colocando-o contra o vento, arranjando alguma coisa que flutue, nos guiando pelas estrelas. Tudo isso não é a natureza. As virtudes da natureza são segredos que nós criamos. É uma prepotência, que implica ter que fazer um projeto. Você não pode ter medo, ou deve ter tanto medo quanto seja o medo necessário para caprichar no projeto.

 

Artista-artesão

Quando entrei na FAU, fiquei muito amigo de um famoso professor, o Flavio Motta, que é filósofo, professor de História da Arte, do Departamento de Arte e Crítica. O Flavio me deu de presente um livro extraordinário de um filósofo vietnamita da Sorbonne - Tran Duc Thao. Ele é conhecidíssimo e escreveu muita coisa. Tem uma série de ensaios sobre a questão da linguagem, da consciência e da imprevisibilidade da vida. Num dos ensaios há algo sobre a origem do que nós chamamos artista ou mesmo das relações masculino/ feminino. É muito bonito. Ele diz o que eu vou dizer de forma bastante tosca, pois a tese é lindíssima. Quando o homem já não era mais nômade e vivia nas cavernas, tinha que sair para caçar. Num primeiro momento iam os mais jovens que eram mais fortes, mas mais inexperientes e acabavam morrendo comido pela bicharada. Então eles mudaram os hábitos; resolveram que quem deveria caçar seriam os mais experientes, os mais velhos. As caçadas demoravam muitos dias, porque fixados, a caça ia rareando e ficando cada vez mais longe. Nessa situação, os meninos ficavam junto das mulheres; tornavam-se amantes das próprias mães. E, ao mesmo tempo, se dedicavam a fazer, por exemplo, uma colher com o cabo mais comprido. Tornaram-se artesãos.

 

 

1 Entrevista realizada em São Paulo em 4 de abril de 2012, com participação de Ana Maria Brias da Silveira, Ana Maria V. Rosenzwaig, Ignacio Gerber, Raya Angel Zonana, Rogério N. Coelho de Souza, Silvana Rea, Sonia S. Terepins, Thais Blucher.
2 Arquiteto, urbanista, professor emérito da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-USP), vencedor do Prêmio Pritzker 2006.
3 João Batista Vilanova Artigas (1915-1985) é considerado um dos principais nomes da história da arquitetura de São Paulo, graças à importância que teve na formação de uma geração de arquitetos. Sua obra é associada ao chamado movimento arquitetônico, conhecido como Escola Paulista. Devido a seu grande interesse pelo estudo do desenho, que se tornaria um dos elementos mais presentes em sua obra, ainda estudante, Artigas fez parte do Grupo Santa Helena - grupo de artistas de vanguarda, dentre os quais destacar-se-ia mais tarde o pintor Alfredo Volpi. Foi professor da Escola Politécnica e fez parte do grupo de professores que deu origem à Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP (FAU). A partir da crença de que o arquiteto deveria participar ativamente do desenvolvimento dos vários processos industriais requeridos pelo projeto nacional-desenvolvimentista de então, em voga no país, Artigas desenhou uma reforma curricular, fundamental para definir novas possibilidades de prática e atuação profissional dos arquitetos, associando áreas como desenho industrial e programação visual.
4 Galileu Galilei é apontada como o testamento de Bertolt Brecht. Sua primeira versão foi escrita por Brecht, em 1938, quando muitos acreditavam na irreversível vitória do fascismo na Alemanha. Nessa obra, o autor utiliza-se da trajetória de Galileu como pretexto para abordar temas e questões como: a responsabilidade do homem para consigo mesmo, para a sua obra e para a sociedade e coloca em xeque o significado social do herói.

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