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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.46 no.2 São Paulo abr./jun. 2012

 

COMENTÁRIOS SOBRE A ENTREVISTA

 

Paulo Mendes da Rocha: um homem contemporâneo

 

Paulo Mendes da Rocha: a contemporary man

 

Paulo Mendes da Rocha: un hombre contemporáneo

 

 

Ana Paula Terra Machado

Psicanalista, membro associado da Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre SBPPA

Correspondência

 

 


RESUMO

Este texto é um comentário sobre a entrevista com o arquiteto Paulo Mendes da Rocha. Destaca o processo criativo do entrevistado, incluindo suas memórias. Aborda também os aspectos relacionados com a psicanálise, considerando a tradição e a invenção.

Palavras-chave: processo criativo, tradição, invenção.


ABSTRACT

This article is a commentary on the interview with the architect Paulo Mendes da Rocha. It points out the interviewee's creative process, including his memories. It also takes into account aspects of psychoanalysis, including tradition and invention.

Keywords: creative process, tradition, invention.


RESUMEN

Este texto es un comentario al respecto de la entrevista con el arquitecto Paulo Mendes da Rocha. Destaca el proceso creativo del entrevistado, incluyendo sus memorias. Aborda también los aspectos relacionados con el psicoanálisis, considerando la tradición y a la invención.

Palabras-clave: proceso creativo, tradición, invención.


 

 

Aquilo que herdaste de teus pais, conquista-o para fazê-lo teu.
(Goethe, 2004, p.46).

A entrevista do consagrado arquiteto brasileiro Paulo Mendes da Rocha aborda, dentre tantos outros assuntos, a sua formação e o método de trabalho que utiliza na elaboração dos projetos e obras.

Ao falar de sua trajetória na arquitetura, remonta a memórias de sua infância, à cidade onde nasceu, à relação com seu pai, engenheiro, a seu avô, construtor, à influência de sua mãe, incluindo como base de seu acervo criativo as impressões da infância marcadas por percepções que mais tarde seriam transformadas em ideias e conhecimento. Somos feitos de memória e essa herança das vivências infantis deve ser transformada em patrimônio psíquico. Seu comentário sobre o valor das memórias da sua cidade lembra a conhecida frase atribuída a Tolstoi: “se queres ser universal, começa por pintar a tua aldeia”.

Essa possibilidade de evocar memórias oriundas do que foi vivenciado, aliada ao aprendizado formal, torna-se a matéria-prima do processo criativo. É nessa capacidade de voltar-se para dentro, é nesse movimento que aflora a ideia, a intuição, como ele nos diz: “o saber é feito de intuição”. Reiterando que “na angústia de ter que fazer alguma coisa surge o que eu mesmo não sabia que sabia”.

Paulo Mendes da Rocha tece considerações sobre sua formação acadêmica, destacando o espírito crítico que o acompanhou desde cedo, tornando-o livre de dogmas ou atre-lagem a modas de época, ao afirmar: “essas divisões e classificações, principalmente quando são feitas de forma estrita, são invenções da crítica para poder exercer o seu desiderato de análises. Toda arquitetura deve ser funcional e construtiva”.

Sua visão contemporânea fica marcada quando diz que não se preocupa com as escolas que se costumam citar no âmbito profissional da arquitetura: concretismo, modernismo etc. Não lhe interessam particularmente os “ismos”, tão comuns às designações de quaisquer atividades que constituam os movimentos da arte e da ciência. Esses termos são destinados ao ensino didático. Essa não filiação obrigatória abre espaço para a liberdade de pensamento e de ideias que revelam o criativo, o novo, a invenção.

Obviamente, não se poderia classificá-lo como um iconoclasta dos princípios clássicos da arquitetura. Como em toda ciência, eles não só devem ser preservados mas principalmente absorvidos como base do saber teórico. Paulo Mendes da Rocha é indiscutivelmente um revolucionário de seu métier. “Não sou filósofo e não quero parecer pretensioso, mas, do ponto de vista filosófico, podemos cogitar daquilo que ainda não é, mas poderia ser”.

Assim, o arquiteto traça as verdadeiras bases de seus projetos originais que nascem de uma diretriz de liberdade a serviço de resultados úteis; porém, faz um alerta a propósito dos prêmios que conquistou ao longo de sua carreira: “acabei sendo vítima disso, porque me deram prêmios, e eu me estrepei, perdi um pouco da liberdade”. Sobre essa visão enfática e sagaz de que as premiações e os cargos podem tolher a liberdade e a ousadia, revela a importância de que se mantenha uma postura autônoma, sem que o poder das insígnias subverta a capacidade de manter a independência e o pensamento crítico sobre o espaço ocupado.

Castoriadis, em sua conferência “Psicanálise e projeto de autonomia”, cita uma passagem também aplicável no âmbito do trabalho psicanalítico: “nas instituições há sempre um elemento central, poderoso e eficiente de autopreservação, o que chamaríamos, em psicanálise, 'repetição', e este instrumento é a fabricação de indivíduos socialmente conformes” (Castoriadis, 1992, p. 108).

De fato, se a tradição, em certa medida, nos protege e proporciona uma espécie de segurança do saber adquirido, também o lugar que se ocupa dentro de uma instituição ou de um grupo pode significar uma ameaça, com risco de estagnação, que enrijece a evolução do saber.

A propósito, Hanna Arendt (1993, p. 56) assinala: “pensar criticamente não se aplica a doutrinas e conceitos que recebemos dos outros, aos preconceitos e tradições que herdamos: é precisamente aplicando padrões críticos ao próprio pensamento que aprendemos a arte do pensamento crítico”.

Sobre sua educação, Paulo Mendes da Rocha diz ter sido criado num ambiente de muita liberdade e acrescenta a essa ideia: “tinha a noção de que a responsabilidade era minha”. Avalia sua história como “uma experiência refletida e transformada em memórias úteis [...], assim fui andando na formação da minha consciência”.

No livro A arte da vida, Zygmunt Bauman argumenta:

o significado de viver sua vida “de maneira socrática” era a autodefinição, a autoafirmação e a presteza em aceitar que a vida não pode ser senão uma obra de arte por cujos méritos e deficiências o ator/autor (misturados numa mesma pessoa: o projetista e simultaneamente executor do projeto) tem plena e total responsabilidade (Bauman, 2009, p.107).

Em um de seus projetos mais conhecidos, a intervenção sobre o prédio que atualmente abriga a Pinacoteca de São Paulo, o arquiteto não cedeu a pressões de ordem acadêmica tradicional, deixou de curvar-se ao modismo estabelecido, como citou em sua entrevista, mas aplicou em sua difícil tarefa notável discernimento sobre possibilidades de equilíbrio entre o que poderíamos chamar de tradição versus invenção. Trata-se de um edifício no estilo palladiano. A intervenção realizada pelo arquiteto respeitou as bases da construção sem, no entanto, fixar-se na tradição em nome da coerência funcional.

Referindo-se ao prédio, diz o arquiteto: “a questão lá era principalmente imaginar que, com o passar do tempo, tudo estaria contrariado nesse sistema cartesiano stricto sensu do Palladio”. Sua ousadia em alterar os valores fundados pelo estilo arquitetônico que encontrou nessa obra - e que deveria resolver sem desprezá-los em sua essência - foi fundamental para o êxito do empreendimento.

A forma como Paulo Mendes da Rocha idealizou a Pinacoteca de São Paulo é uma contundente descrição do processo criativo, que podemos transpor para o que esperaríamos de uma interpretação analítica.

Olha para o prédio, segundo suas palavras, “sem nenhuma pré-concepção”, um olhar livre e, deixando-se levar por sua “atenção flutuante”, começa a “levantar os problemas”. Observa a planta palladiana que considera muito rigorosa, programada. Não segue roteiros predeterminados. Deixa fluir a imaginação, respeita sua intuição como um indicador de conhecimento pelo despertar das memórias e, ao observar o voo das andorinhas, pensa em transgredir, o que nesse sentido é a própria inovação. E com o cuidado indispensável com que se deve conduzir um trabalho tão delicado, cria novos espaços, abre as janelas. Desconstrói para que surjam novas possibilidades, a fim de que, posteriormente, se usufrua o que foi construído, de outra forma. Cria pontes entre espaços vazios, permitindo que eles se interliguem e se comuniquem. Inclui no projeto a clarabóia, segundo o modelo de Vilanova Artigas, mestre que teve influência determinante no seu trabalho.

E desse processo emerge sobre os pilares palladianos preexistentes uma obra de arte, resultado do talento individual e da técnica aprendida na sólida formação acadêmica.

A psicanálise, segundo Castoriadis (1992, p. 105), “é uma atividade prático-poética, onde os dois participantes são agentes. Denomino-a poética, pois ela é criadora; seu objetivo é a autoalteração do analisando, isto é, rigorosamente falando, a emergência de um ser diferente”. Acrescenta ainda: “a psicanálise visa ajudar o indivíduo a tornar-se autônomo, isto é, capaz de uma atitude reflexiva e deliberativa” (p. 107). Esse é o objetivo de todos os tempos.

Vale lembrar que a psicanálise contemporânea tem complexos desafios a enfrentar, tais como conceituar as novas manifestações psíquicas e como instrumentalizar a técnica quando a técnica clássica não atende às demandas dos pacientes. Tem ainda que buscar compreender estes novos tempos em que a rapidez e a mobilidade se impõem e quando a ação substitui a reflexão. Portanto, como interpretar o inusitado que se apresenta em nosso ofício?

O analista precisa estar aberto para o novo e ter uma formação plural, o que não implica abrir mão do rigor conceitual e das premissas fundamentais do método, mas exercer o pensamento livre para avançar inovando e, assim, ampliar suas fronteiras do conhecimento. Entretanto, quaisquer que sejam os parâmetros utilizados para se definir a psicanálise contemporânea, sejam eles clínicos, teóricos, técnicos ou epistemológicos, é necessário que se mantenha o pensamento crítico sobre essas novas ideias.

Porém, sobre essas questões, é importante não perder de vista as origens da nossa ciência. Os desafios da nossa época serão maiores que os enfrentados por Freud? Nossos pacientes são mais difíceis ou complexos?

Freud, com sua genialidade, inventividade e autonomia intelectual desafiou o saber de uma época, desalojou o eu de sua própria casa, afrontou a “moral sexual civilizada” e deu voz à sexualidade sufocada. Para construir o corpo teórico da psicanálise, levantou hipóteses, refutou as que não se confirmaram, abandonou teorias e seguiu, quando elas eram insuficientes, reformulando-as para compreender os fenômenos da clínica. Com a técnica não foi diferente, da hipnose à associação livre também foi assim. Sua abertura para os avanços imprescindíveis à psicanálise como ciência é expressa quando salienta que ela “acha-se sempre incompleta e sempre pronta a corrigir ou modificar suas teorias. Não há incongruência se aos seus conceitos mais gerais falta clareza e seus postulados são provisórios; ela deixa a definição mais precisa deles ao resultado futuro” (Freud, 1923/1976, p. 307).

De acordo com Green (2003), um dos expoentes da psicanálise contemporânea, a obra freudiana precisa ser recontextualizada, transposta para o nosso tempo, no qual os problemas, os impasses clínicos apresentam-se de uma forma distinta daqueles do início da psicanálise. Entretanto, destaca que a teoria freudiana, se estudada com rigor e profundidade, continua com sua força e atualidade.

Se hoje são novos tempos, com novas complexidades psíquicas, novos paradigmas, e se precisamos de novas teorias, conceitos e enquadre, isso não nos distancia do espírito freudiano que foi o de pensar e revolucionar a cultura do seu tempo.

 

Referências

Arendt, H. (1993). Lições sobre a filosofia política de Kant. Rio de Janeiro: Relume-Dumará         [ Links ].

Bauman, Z. (2009). A arte da vida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.         [ Links ]

Castoriadis, C. (1992). Psicanálise e projeto de autonomia. Revista do CEP de PA 1(1),105-108.         [ Links ]

Freud, S. (1976). Dois verbetes de enciclopédia. In S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, trad., Vol. 18). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1923).         [ Links ]

Goethe (2004). Fausto I: uma tragédia (cena I). (J. K. Segall, Trad.). São Paulo: 34. (Trabalho original publicado em 1806).         [ Links ]

Green, A. (2003). 4 questões para André Green. São Paulo: SBPSP; Rio de Janeiro: Imago.         [ Links ]

 

 

Correspondência:
Ana Paula Terra Machado
Rua Florêncio Ygartua, 271, sl. 402
90430-010 Porto Alegre, RS
Tel: 51 3346 7511
anatm@terra.com.br

Recebido em 31.5.12
Aceito em 19.6.12

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