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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.46 no.2 São Paulo abr./jun. 2012

 

ARTIGOS TEMÁTICOS: PASSAGENS I - ENTRE O MODERNO E O CONTEMPORÂNEO

 

História, histórias, passagens da psicanálise brasileira

 

History, stories, passages of Brazilian psychoanalysis

 

Historia, historias, pasajes del psicoanálisis brasileño

 

 

Cláudio Laks Eizirik

Membro efetivo e Analista didata da Sociedade Psicanalítica de Porto Alegre SBPPA, Professor associado do Departamento de Psiquiatria e Medicina Legal da Universidade Federal do Rio Grande do Sul

Correspondência

 

 


RESUMO

O autor comenta e reflete sobre as relações entre alguns fatos fundadores do movimento psicanalítico brasileiro, suas possíveis relações com aspectos da introdução do modernismo no país e suas repercussões nas marcas identificatórias da psicanálise no Brasil.

Palavras-chave: psicanálise no Brasil, precursores, modernismo, marcas identificatórias, história.


ABSTRACT

The author comments and reflects upon the relations between some founding facts of the Brazilian psychoanalytic movement, its possible relations with aspects of the introduction of modernism in the country, and its repercussions in the identity traits of Brazilian psychoanalysis.

Keywords: psychoanalysis in Brazil, precursors, modernism, identity traits, history.


RESUMEN

El autor comenta y reflexiona sobre las relaciones entre algunos hechos fundadores del movimiento psicoanalítico brasileño, sus posibles relaciones con aspectos de la introducción del modernismo en el país, y sus repercusiones en las marcas que identifican el psicoanálisis en Brasil.

Palabras-clave: psicoanálisis en Brasil, precursores, modernismo, marcas identificadoras, historia.


 

 

Se juntarmos diferentes estímulos neste número da Revista Brasileira de Psicanálise, o texto sobre passagens, elaborado a partir de uma ideia luminosa de Walter Benjamim; a comovente reconstituição histórica de Almeida Galvão (1978); o fato de que estamos num trabalho de elaboração compartilhada acerca da tradição e da invenção em psicanálise, que culminará no congresso da Fepal, em São Paulo; a celebração da Semana de Arte Moderna, também ocorrida em São Paulo; e se a isso, para fins de ampliar a tempestade de ideias, adicionarmos diversas contribuições à história da psicanálise em nosso país - como, por exemplo, o Álbum de família (1994) da SBPSP e os textos de Perestrello (1987), Victer (1996), Eizirik e Armesto (2007), Braga Mota (2011), para citar apenas alguns -, podemos pensar em várias linhas que não se contradizem.

Há uma linha que se refere à História, com H maiúsculo, a grande História dos grandes acontecimentos, dos grandes vultos, das grandes batalhas, das datas marcantes. Nela temos dados de sobra para celebrar e personagens para homenagear nossos pioneiros, desde Freud, que foram estabelecendo, em cada sociedade e em cada região do mundo, a inserção da psicanálise, enfrentando desafios, incompreensões, oposições do mundo externo e no próprio grupo de pioneiros e, sem dúvida, as que partiam do seu mundo interno e das resistências para trabalhar com essa matéria explosiva e perigosa, o inconsciente.

Uma dessas datas, sem dúvida, é julho de 1937, quando se inicia em São Paulo a primeira formação analítica estruturada da América Latina. Encontraremos datas igualmente marcantes no Rio de Janeiro, em Porto Alegre, em Recife e nas demais cidades brasileiras que foram se sucedendo na implantação da psicanálise. Como cada vez mais continuo vendo nossa disciplina como uma work in progress (Eizirik, 2006), é muito estimulante observar que essa lista de cidades e grupos novos não cessa de crescer em nosso território continental e que, depois de um grande congresso em Ribeirão Preto, a Febrapsi já está organizando o próximo em Campo Grande; nada contra os grandes centros, apenas a alegria de ver essa expansão se materializar.

Há outra linha que diz respeito ao que se poderia chamar a pequena história, a história vista dos pequenos espaços, dos encontros, dos episódios, na linha dos estudos de Carlo Ginsburg e de Philippe Ariès, por exemplo. Cabe aqui uma palavra sobre esses dois historiadores.

Carlo Ginsburg (1988) é um historiador e antropólogo italiano, conhecido como um dos pioneiros da micro-história, que se interessa pelo detalhe e pelo contexto, pelas micro e macroquestões que, articuladas, podem nos aproximar mais de nossos antepassados. Utilizando uma abordagem sofisticada e minuciosa, dedica-se à decifração de indícios, uma ciência do particular. Philippe Ariès foi um importante historiador e medievalista francês, que se dedicou ao estudo da história das mentalidades, com foco na família, na infância, na velhice e na morte. No seu trabalho História social da criança e da família (2006), Ariès demonstra que o surgimento de um discurso sobre a infância está vinculado à emergência da percepção sobre a especificidade da infância na modernidade. Seus livros versam sobre a vida diária comum.

Vistas as coisas desse ângulo, o que me veio à mente, ao percorrer de novo esses trabalhos sobre nossa história, foi uma passagem de Cyro Martins (1993), em que ele se pergunta sobre o que estaria na mente de Angel Garma (pioneiro da psicanálise na Argentina, que deixou a Espanha em 1938, depois de se formar analista na Alemanha, e iniciou o movimento psicanalítico na região do Prata), quando seu navio se aproximava do porto de Buenos Aires. Nada mais podemos fazer senão imaginar, supor, fantasiar, tentar identificar-nos com cada um de nossos pioneiros e, de alguma forma, viver por procuração esses momentos. Que ansidedades, que planos, que fantasias, que identificações com antigos conquistadores, que temores, que alegria ocupavam essas mentes que de alguma maneira sabiam ou imaginavam estar iniciando um projeto de futuro imprevisível?

A grande História nos dirá os nomes e as datas, mas a pequena história nos falará de pessoas, encontros, desencontros, conquistas, decepções, de um trabalho cotidiano e sem descanso, talvez o que forja os verdadeiros heróis. O que teria pensado e sentido Adelheid Lucy Koch ao chegar ao Brasil? O que terá imaginado Durval Marcondes? Como teriam se desenvolvido esses primeiros campos analíticos em território brasileiro, com a curiosa circunstância de que as análises eram no consultório de Marcondes, das quais ele também era um dos pacientes?

E cada um de nossos pioneiros e pioneiras? Haverá algo em comum entre todos eles, a despeito das diferentes circunstâncias, personalidades, mais ou menos facilidades ou dificuldades?

Há alguém que vem de fora trazendo a peste, e há os da terra - loucos para serem inoculados ou temerosos disso -, há um choque cultural, ou talvez uma inevitável turbulência emocional. O fato é que do encontro de Durval Marcondes com a doutora Koch (e de encontros similares em outras cidades) frutificou uma nova espécie, se me permitem a ousadia, a dos psicanalistas brasileiros, que têm muito em comum com os seus colegas latino-americanos, mas não são iguais.

Aqui entra algo típico da cultura brasileira, que a Semana de Arte Moderna de 1922, em especial pela mente inquieta de Oswald de Andrade, captou com muita argúcia: a antropofagia, nosso particular jeito de devorar bispos sardinhas desde os tempos de Cabral e de continuar com essa prática em quase todos os campos da nossa cultura, com mais ou menos graça, humor ou capacidade inventiva.

E como fica isso tão aparentemente desavergonhado e sem respeito, no elevado mundo da teoria e da prática da psicanálise? Essa questão diz respeito à tradição e à invenção. Dentre os diversos estimulantes trabalhos preparatórios para o próximo congresso da Fepal, um que me chama a atenção de modo particular é o de Horenstein (2012), em que propõe que a psicanálise latino-americana se caracteriza por uma hibridez fértil, um vigor híbrido, uma heterodoxia pura, e que é necessário restabelecer a impureza no coração da psicanálise. O que nos caracteriza, pois, é uma irrecusável mestiçagem. Por mais ingleses ou franceses (o que está mais na moda hoje em dia?) que queiramos ser, nossa voz, nossas interpretações, nossos silêncios, nossos campos analíticos, nosso modo de nos colocar no mundo acontece na inevitável “última flor do Lácio, inculta e bela”.

Para o bem e para o mal, somos todos mestiços, por mais brancos que sejamos, ou por mais aristocrática que seja nossa linhagem, familiar ou psicanalítica.

Se há marcas identificatórias da psicanálise brasileira (algumas das quais estou tentando identificar), a primeira delas é nossa irrecusável mestiçagem. Fluem em nosso sangue as ideias de Freud, mas elas se misturam, queiramos ou não, com as de Klein (meio fora de moda, se bem seja difícil algum analista brasileiro deixar de falar nela de vez em quando, ainda que seja para falar mal), de Bion, de Winnicott, de Lacan, de Marcondes, de Koch, de Mario Martins, dos Perestrello, de Lins, de Mehlson, de Fabio Herrmann, de Green, de Laplanche, de Racker, dos Baranger... e de tantos mais (além desses que me vêm à mente de imediato), com as de Machado de Assis, de Drummond, de Tom Jobim, de Noel Rosa, de Erico Veríssimo, de Manuel Bandeira, de Rubem Fonseca, de tantos e tantas além deles que correm em minhas veias, bem como de tantos episódios de nossa infância como nação, de nossos conflitos, de nossas ditaduras e suas histórias sujas e sangrentas, de nossas conquistas, de nossos fracassos, de nossos heróis, principalmente de nossos pequenos e verdadeiros heróis do dia a dia.

Se há outras marcas identificatórias, diria que se situam no pluralismo teórico que se amplia e se desenvolve e na possibilidade de aprender a escutar a voz alheia, por mais doloroso que seja esse processo. Outra coisa que me chama a atenção é o modo de nos relacionar com a cultura. Embora nossos pioneiros tenham sido pessoas de seu tempo, a partir da necessidade de estruturar as instituições e estabelecer uma formação sólida, houve certo retraimento do meio cultural. Drummond diria desta época que “outrora ouvi os anjos, as sonatas, as confissões patéticas/ nunca ouvi voz de gente”. Sem querer ser injusto com nós mesmos, penso que cada vez mais aprendemos a ouvir voz de gente no espaço público e a dialogar mais com outros saberes e setores. Nesse sentido, nossa psicanálise cresce em diálogo com as humanidades e as ciências, a despeito das nossas divergências sobre a relevância de cada um desses setores. Estou mais uma vez com Drummond quando dizia “preciso de todos”.

Outra característica da nossa psicanálise parece ser a forma como nos relacionamos com os pacientes, de forma mais natural e espontânea do que observo em outras latitudes geográficas e culturas analíticas, talvez conseguindo a partir daí entrar em contato mais direto com o seu sofrimento psíquico e trabalhar de forma mais próxima com eles, sem abrir mão da indispensável assimetria. Ainda no século passado tentei descrever isso como certa neutralidade possível.

No âmbito da formação, observo uma real receptividade à participação dos analistas em formação, seja estimulando suas próprias associações, seja convidando permanentemente a que façam parte das atividades científicas e das discussões sobre o ensino da psicanálise.

Cada vez fica mais claro que esse particular processo não se caracteriza tanto como uma formação analítica (algo que vem de fora e é de certa forma transmitido e outorgado), mas como um trajeto propriamente, em que analistas em formação vão se construindo internamente para algum dia desempenhar esse particular ofício; fica mais claro também que nossos institutos, em sucessivos movimentos de atualização, discussão, reflexão, parecem se dar cada vez mais conta de seu papel de objetos transicionais, assim como são ou deveriam se sentir os analistas, os supervisores e os professores. Essa me parece ser uma das marcas do ensino da psicanálise que diferencia o que ocorre na América Latina do que se passa nas outras duas regiões (Eizirik, 2012).

Sempre se criticou a timidez dos analistas brasileiros em participar mais do cenário latino-americano e internacional. Parecia ser apanágio de uns poucos nomes ilustres, como diria Borges, colegas que tinham feito sua formação no exterior e estabelecido contatos com as distintas matrizes, serem protagonistas do grande jogo da psicanálise internacional. Creio que, nos últimos anos, esse não é mais o caso. Apesar de inevitáveis avanços e recuos; se observarmos publicações em artigos e livros, participação em congressos, ocupação de posições institucionais na região e no mundo, vemos um considerável contingente de analistas brasileiros trabalhando em igualdade de condições com seus colegas de outros centros.

A experiência de um analista brasileiro que ocupou um alto cargo institucional pode ser ilustrativa nesse sentido: não só ele se sentia de início identificado com o “complexo de vira-lata”, de que falava Nelson Rodrigues, como temia a dificuldade de manejar de forma sistemática a língua dominante no mundo, bem como ainda tinha clara noção dos grupos hegemônicos que se organizam e procuram manter o controle do movimento associativo internacional. Um trabalho organizado e articulado com colegas da região e um plano de ações que contemplava a atividade científica e os intercâmbios entre as regiões, além de um permanente trabalho com sua própria mente, levaram a resultados bastante satisfatórios, de acordo com a avaliação de várias distintas perspectivas (Eizirik, 2011).

Ao contrário do que pudesse parecer, o que observo, ao ver um analista brasileiro apresentando ou publicando trabalhos, ou supervisionando material clínico, ou ocupando posições institucionais, é uma capacidade semelhante, mas muitas vezes superior, a colegas de outras procedências, justamente por nossa mestiçagem, por nossa hibridez, por nossa longa tradição de cruzar passagens, de criar novos espaços, de inventar essa forma de ser psicanalistas.

Este é um ano de celebrações, em vários níveis, tanto da psicanálise quanto da cultura brasileira. Se, por um lado, comemoramos juntos mais uma etapa do nosso desenvolvimento e celebramos nossos pioneiros com a admiração que nos merecem, também temos de considerar que ao mesmo tempo somos todos durvalmarcondes e adelheidkochs a cada novo dia de trabalho analítico. Nesse sentido, cada analista, por mais experiente ou novato que seja, inventa a psicanálise em cada nova sessão. Talvez seja essa capacidade de nos manter sempre vivos e começantes o maior motivo para celebrações.

 

Referências

Almeida Galvão. (1978). História da SBPSP. Revista da ABP.         [ Links ]

Ariès, P. ( 2006). História social da criança e da família. Rio de Janeiro: Guanabara. (Trabalho publicado em 1960).         [ Links ]

Braga Mota, R. L. (2011). History of psychoanalysis in Brazil. In P. Loewenberg and N. Thompson, 100 Years of the IPA. London: Karnac.         [ Links ]

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Ginsburg, C. (1988). Os andarilhos do bem. São Paulo: Companhia das Letras.         [ Links ]

Horenstein, M. (2012). O vaso e as sementes de girassol. Notas para uma tradição que virá. (Trabalho preparatório ao Congresso da Fepal.         [ Links ])

Martins, C. (1993). Um rei condecora um sábio. In C. Martins, Caminhos. Porto Alegre: Movimento.         [ Links ]

Nosek, L. & Montagna, P. (1994). Álbum de família. São Paulo: Casa do Psicólogo.         [ Links ]

Perestrello, M. (1987) História da Sociedade Brasileira de Psicanálise do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Imago.         [ Links ]

Victer, R. (1996). Na busca das correntes históricas da SPRJ. Boletim Científico da SPRJ, 17:125-133,         [ Links ]

 

 

Correspondência:
Cláudio Laks Eizirik
Rua Marquês do Pombal, 783/307
90540-001 Porto Alegre, RS
Tel: 51 3224 4364
ceizirik.ez@terra.com.br

Recebido em 21.5.2012
Aceito em 5.6.2012

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