SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.46 número2História, histórias, passagens da psicanálise brasileiraNovos mundos, velhas trilhas: buscando a identidade de psicanalista índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.46 no.2 São Paulo abr./jun. 2012

 

ARTIGOS TEMÁTICOS: PASSAGENS I - ENTRE O MODERNO E O CONTEMPORÂNEO

 

Passagens: impermanência e perpetuidade

 

Passages: impermanence and continuity

 

Pasajes: la no permanencia y la perpetuidad

 

 

Gleda Brandão Coelho Martins de Araújo

Membro efetivo da Sociedade Psicanalítica do Rio de Janeiro SPRJ e da Sociedade Psicanalítica de Mato Grosso do Sul SPMS, com função didática no Instituto de Psicanálise, Presidente da Federação Brasileira de Psicanálise FEBRAPSI

Correspondência

 

 


RESUMO

Neste trabalho, a autora estabelece algumas correlações entre a psicanálise, um produto da cultura, nascida no final do século XIX em Viena, uma cidade cosmopolita e efervescente, e o processo de difusão desse conhecimento no interior do Brasil, tendo como modelo a experiência da chegada da psicanálise em Campo Grande, cidade cravada no Centro-Oeste do Brasil, com forte tradição agropecuária e geograficamente distante dos grandes centros culturais. Destaca a influência da cultura da modernidade e os desafios que ela traz ao movimento psicanalítico e salienta o papel da política de expansão da Febrapsi no desenvolvimento e difusão da psicanálise no Brasil.

Palavras-chave: psicanálise, movimento psicanalítico, história da psicanálise, cultura.


ABSTRACT

In this paper, the author provides some correlations between psychoanalysis, a product of culture, which was born at the end of the century XIX in Vienna, a cosmopolitan bustling city, and the diffusion of this knowledge in the interior of Brazil, taking as its model the experience of the arrival of psychoanalysis in Campo Grande, a city carved in the middle west of Brazil, with a strong tradition of agriculture and geographically distant from cultural centers. She emphasizes the influence of culture in modernity and the challenges the latter brings to the psychoanalytic movement. Also, she points out the role of Febrapsi's expansion policy in the development and diffusion of psychoanalysis in Brazil.

Keywords: psychoanalysis, psychoanalytic movement, history, culture.


RESUMEN

En este artículo, la autora establece algunas correlaciones entre el psicoanálisis, un producto de la cultura, nacido a finales de siglo XIX en Viena, una ciudad cosmopolita y bulliciosa, y el proceso de difusión de este conocimiento en el interior de Brasil, teniendo como modelo la experiencia de la llegada del psicoanálisis a Campo Grande, una ciudad en el centro oeste de Brasil, con una fuerte tradición agropecuaria y distante geográficamente de los centros culturales más importantes. Destaca la influencia de la cultura de la modernidad y los desafíos que la misma trae al movimiento psicoanalítico y enfatiza el papel de la política de expansión de la Febrapsi en el desarrollo y difusión del psicoanálisis en Brasil.

Palabras-clave: psicoanálisis, historia del psicoanálisis, movimiento psicoanalítico, cultura.


 

 

A novidade é que o Brasil não é só litoral!
É muito mais, é muito mais que qualquer zona sul.
Tem gente boa espalhada por esse Brasil,
que vai fazer desse lugar um bom país!
Uma notícia está chegando lá do interior.
Não deu no rádio, no jornal ou na televisão.
Ficar de frente para o mar, de costas pro Brasil,
não vai fazer desse lugar um bom país!

(Milton Nascimento, 1981).

Ao ser convidada por Bernardo Tanis, editor da Revista Brasileira de Psicanálise, para escrever um artigo sobre os esforços que vêm sendo envidados para levar cada vez mais a psicanálise para o interior do Brasil, associações e ideias me vieram à mente: um dos versos acima de autoria de Milton Nascimento: “a novidade é que o Brasil não é só litoral”, e a frase supostamente dita por Freud ao chegar aos Estados Unidos, em 1909, para realizar uma série de conferencias na Clark University, por ocasião das comemorações do vigésimo aniversário dessa universidade. Freud teria dito a Jung que os americanos não sabiam que eles estavam levando-lhes a peste. Roudinesco (2009) duvida da autoria dessa frase, pois esse fato foi contado apenas por Lacan e terminou por ser transmitido e aceito como verdade, ou seja, adquiriu o status de um mito, já que nem os historiadores de Freud e nem o próprio, e muito menos Jung, em nenhum momento se referiram a isso.

Mito ou não, essa frase ficou associada à psicanálise e é citada sempre que se quer enfatizar sua força impactante e as importantes e perturbadoras mudanças que produziu e ainda produz em todas as áreas do saber.

Quando Freud começou a construir o arcabouço teórico da psicanálise nas últimas décadas do século XIX, Viena era a capital de um dos mais poderosos impérios de que se tem notícia - o Império Austro-Húngaro. A velha cidade imperial, como Viena era conhecida, possuía uma vida cultural rica e intensa e foi, na verdade, um dos locais mais importantes da modernidade em muitos aspectos: o surgimento da psicanálise com Sigmund Freud, a pintura de Gustav Klimt, a valsa e os Strauss, só para citar alguns exemplos.

Eizirik (1997) destaca a influência do meio cultural em que Freud viveu e no qual foi educado para o surgimento da psicanálise. Enfatiza que Viena era uma combinação de cidade cosmopolita e provinciana, bem como de tradição e modernidade, em cujos cafés, instituições sólidas, os intelectuais da época partilhavam ideias e valores.

Desde que Freud iniciou seus primeiros escritos em 1895 até os últimos trabalhos em 1939, suas descobertas provocaram curiosidade, espanto e excitação, mas, sobretudo, influenciaram de maneira indelével a cultura ocidental e todos os campos do conhecimento. Já em suas primeiras obras, Freud mostrou que o homem não é dono de si mesmo, mas comandado por suas pulsões, dominado por um mundo subterrâneo e inconsciente que o governa. Mostrou também que longe de se reduzir apenas às diferenças anatômicas, a sexualidade, a libido e o amor - as diversas manifestações de Eros - encontram-se tanto no centro de todos os processos e fenômenos mentais do psiquismo individual como em todos os processos sociais. Além disso, afirmou que as criancinhas não eram anjos inocentes e puros e, ao descrever o desenvolvimento psicossexual, atribuiu a todo ser humano um período polimorfo perverso, bem como vaticinou para todo homem um destino trágico tal como o do Rei Édipo: matar o pai e desposar a mãe.

Renato Mezan (1991), comentando sobre o início da psicanálise, mostra que Freud considerou que a repressão, a resistência, a significação etiológica da vida sexual e os acontecimentos infantis foram os elementos principais da construção do edifício teórico da psicanálise. Dessa forma imprimiu a ela desde seus primórdios um aspecto inovador, não conformista e revolucionário.

Ilustrando de maneira inteligente e bem humorada o impacto causado pela psicanálise, bem como o seu poder transformador, foi lançado em 2004 um filme espanhol, dirigido por Joaquín Oristrell intitulado Inconscientes. O filme é ambientado na Espanha, no ano de 1913, e conta a historia de Alma, seu marido, doutor Leon Pardo, e seu cunhado, doutor Salvador Pifarré.

Alma é uma mulher jovem e moderna, feminista, liberada, antenada com as novidades, aberta às novas ideias, que aceita sem questionar as “verdades psicanalíticas”, além de ser versada em literatura, teatro e filosofia; enfim, encarna o espírito cosmopolita, moderno e efervescente das primeiras décadas do século XX. Doutor Leon Pardo, seu marido, é um jovem médico visionário e ousado, que havia conhecido o doutor Sigmund Freud e suas teorias revolucionárias sobre sexualidade. Foi a Viena para beber diretamente da fonte, mas, ao se utilizar da nova técnica para tratar seus pacientes, doutor Leon se confunde e se mistura com a jovem teoria que estuda. O cunhado de Alma, doutor Salvador Pifarré, é um psiquiatra biologicista, investido do propósito de provar que os sentimentos e as emoções devem-se apenas aos fatores endócrinos. No entanto, não consegue esconder seus arroubos nem sua infelicidade por estar preso a um casamento com uma mulher frígida, a quem não amava, e por sufocar seu amor e desejos pela cunhada.

Como Leon estava desaparecido, se bem houvesse deixado anotações sobre os atendimentos de suas pacientes, Alma e Salvador seguem os apontamentos como se fossem pistas e assim percorrem a mesma via crucis de Leon que, ao conhecer a psicanálise, constatara que era masoquista, exibicionista, toxicômano, corrupto, incestuoso e bissexual. Isso o leva a um desespero comparável ao de Édipo ao descobrir que simplesmente cumprira seu destino trágico quando tentara fugir dele. Doutor Leon desce ao inferno quando tenta se conhecer. Decide então que teria de calar Freud, matando-o. A oportunidade apresenta-se ao saber que Freud viria à Espanha para falar sobre seu mais recente trabalho, “Totem e tabu”. Quando Freud, diante de uma plateia culta, começa a proferir sua conferência, o doutor Leon chega para matá-lo, acusando-o pelas dolorosas descobertas que fizera. A tentativa é frustrada, mas, antes de seu dramático final, o doutor Leon conclui: “A verdade não nos faz livres”.

O filme finaliza atestando a força da psicanálise como um saber transformador. Quando Alma e Salvador, já livres e entregues ao desejo mútuo, planejam vir para o Novo Mundo, mais precisamente para Argentina, um lugar que pretendiam que fosse “um mundo puro, bem inocente, sem Kaisers, nem Rei, sem pais, nem mães, sem Vaticano, sem ricos, nem pobres e, sobretudo, sem psicanálise”, o que se mostrou impossível, o jovem e apaixonado casal ficcional inicia o movimento psicanalítico na Argentina.

As ideias psicanalíticas se fizeram presentes no Brasil desde os anos vinte do século XX e influenciaram e sofreram influência do movimento modernista de 1922, que teve como seu ápice a Semana de Arte de Moderna. Mas, apenas nos anos 1940, a crise europeia que antecedeu a guerra, bem como o nazismo e finalmente a Segunda Guerra, vieram a ser os fatores determinantes para o desenvolvimento e o florescimento da psicanálise no Brasil e na América Latina, pois pela necessidade de fugir do nazismo ou da guerra, analistas formados em prestigiosos centros europeus emigraram para o Novo Mundo.

Seguindo a vocação inovadora e moderna da psicanálise, Buenos Aires e São Paulo, as duas maiores e mais cosmopolitas cidades do continente, foram os centros mais destacados desse movimento. Seguiram-nas depois outras capitais latino-americanas e outras grandes cidades brasileiras, como Rio de Janeiro e Porto Alegre.

Desse modo, a psicanálise brasileira permaneceu por muitos anos presente apenas nas maiores cidades do Brasil.

Em outro trabalho, também publicado na Revista Brasileira de Psicanálise (2009), escrevi sobre o movimento psicanalítico em Campo Grande, MS, e defini seu início em 1971, com o retorno da doutora Marila Teodorowic à nossa cidade, após concluir seus estudos de medicina no Rio de Janeiro, onde se formou psiquiatra e psicanalista pela Sociedade Psicanalítica do Rio de Janeiro.

Campo Grande, capital do estado de Mato Grosso do Sul, é uma cidade de médio porte, encravada na vastidão do Centro-Oeste brasileiro. Suas raízes são agropecuárias, pois o estado de Mato Grosso do Sul sempre teve na pecuária, na extração vegetal e mineral e na agricultura as bases de sua economia e de seu desenvolvimento. A cidade foi fundada em 1899 por colonizadores mineiros, que vieram em busca das pastagens nativas e das águas cristalinas da região dos cerrados.

Campo Grande é o maior e mais importante centro impulsionador da atividade econômica e social do estado, cujos crescimento e prosperidade foram potencializados graças à sua localização privilegiada, equidistante dos extremos Norte, Sul, Leste e Oeste do Mato Grosso do Sul, fator que facilitou a construção das primeiras estradas da região e contribuiu para que se tornasse o grande polo de desenvolvimento de uma vasta área.

Em Campo Grande, localizada em uma região de planalto, é possível ver os limites da linha do horizonte ao fundo de qualquer paisagem. Caracteriza-se por ruas e avenidas largas, planejadas, em meio a uma vasta área verde com jardins e parques por entre as vias. Em decorrência de sua terra vermelha, ficou conhecida pela alcunha de “cidade morena”.

Cabe destacar as raízes históricas do estado de Mato Grosso do Sul, as influências recebidas de diversos povos, refletidas e expressas na música regional, na culinária e nas várias manifestações culturais, que também conferem à capital características peculiares. O estado possui um grande número de descedentes de ameríndios de várias etnias, além dos imigrantes paraguaios que em sua maioria são descedentes dos índios guaranis, esses dois fatores marcam na fisionomia do estado a forte relação com a cultura indígena e suas raízes. Paralelamente, o estado recebeu fluxos migratórios provenientes dos estados de Minas Gerais, Rio Grande do Sul, Paraná e São Paulo, bem como de outros países, como Alemanha, Espanha, Itália, Japão, Paraguai, Portugal, Síria e Líbano. Dessas diferentes correntes migratórias, as que mais influenciaram o caldo cultural em que está embebida a cidade de Campo Grande foram inegavelmente as culturas paraguaia, japonesa e árabe.

Essas influências fazem-se sentir na culinária local, que incorporou vários sabores. Dentre eles, destaca-se o campeão de popularidade: o churrasco de carne bovina (de significativa influência gaúcha) com mandioca (adquirida dos índios), acompanhado de shoyu (tempero japonês à base de soja). De influência nipônica temos também o sobá, prato típico e popular, um tipo de macarrão imerso em um caldo de carne acompanhado de temperos japoneses. Dos peixes, preferência gastronômica muito comum, estão o pacu, o dourado, o pintado e a piranha, preparados com diferentes receitas, da típica e simples pantaneira (cujo destaque cabe ao caldo de piranha, com seu afamado efeito afrodisíaco) às mais sofisticadas com introdução de novos temperos. Do Paraguai vem a “sopa” paraguaia (bolo salgado de milho, com cebola e queijo) e a “chipa” (semelhante ao pão de queijo). São comuns e populares também os pratos mineiros preparados com pequi, como o arroz e a galinha, a guariroba (palmito amargo) e o arroz carreteiro com charque.

Um hábito adquirido dos paraguaios e largamente difundido em Campo Grande é o tereré, infusão da erva-mate com água gelada, servido numa guampa, em geral de chifre de boi, e sorvido com uma bomba. De fácil preparo, costuma ser tomado em roda de amigos e de família, é servido tradicionalmente em sentido anti-horário, para lembrar a movimento feito pelos laçadores. Na roda de tereré há regras bem definidas que devem ser respeitadas com o objetivo de fortalecer a convivência, a harmonia, a manutenção da amizade e da conversa e sobretudo a defesa dos costumes regionais e da cultura local.

É na música sobretudo que se revela a força dessa influencia multicultural da época de ouro da música paraguaia à viola de Almir Sater. A música sul-mato-grossense tem muito a ver com o Pantanal e sofreu influência da viola de cocho na fronteira com a Bolívia e, sobretudo, do violão e da harpa. É forjada na mistura dos ritmos uruguaios, argentinos e paraguaios, associados aos ritmos regionais com fortes traços indígenas do cerrado e panta-neiro. O resultado é uma identidade musical que bebeu nas fontes da latinidade.

Alguns anos atrás era impensável uma festa em Mato Grosso do Sul sem a presença de uma dupla paraguaia tocando harpa e violão. Mesmo sem destaque na grande mídia, a música paraguaia influenciou consideravelmente os compositores regionais, que sempre flertaram com guarânias, polcas e chamamés, misturando o guarani com o português e inspirando-se em histórias da região. Caso típico dessa mistura é a letra da canção de Paulinho Simões (1985): “revelar que eu vim da fronteira onde o Brasil foi Paraguai”.

Na época em que a doutora Marila voltou, predominava uma organização social patriarcal; a precariedade dos meios de comunicação aliada à imensa distância geográfica dos grandes centros conferiam à cidade um considerável isolamento cultural. A primeira possibilidade de apresentar a psicanálise no meio científico da época veio com a oportunidade de ela ter assumido a cadeira de Psicologia Médica, na então Universidade do Estado de Mato Grosso UEMT. Até então, a psicanálise sequer era conhecida na região nem pelos profissionais de saúde mental. Em 1999, durante o XVII Congresso Brasileiro de Psicanálise, no Rio de Janeiro, ela apresentou um trabalho em que discorreu sobre essas dificuldades:

Era impossível fazer apenas psicanálise. Eu tinha entrado numa terra virgem, cheia de preconceitos, onde os próprios colegas nos tratavam à distância, onde as situações eram sexualizadas e, principalmente, onde ninguém falava a minha língua. A psiquiatria ainda era vista como algo só para loucos; psicanálise ninguém sabia o que era. Os próprios pacientes nos pediam um horário ao entardecer, uma vez que não queriam ser vistos entrando no consultório de um psiquiatra (Teodorowic, 1999).

O marco que determinou o início da difusão das ideias psicanalíticas em Campo Grande deu-se em 1977, quando a doutora Marila assumiu várias disciplinas no recém--lançado curso de Psicologia da Universidade Católica. Suas aulas, repletas de conceitos psicanalíticos, causaram muito espanto e resistências, mas atraíram alguns acadêmicos interessados em conhecer e se aprofundar no conhecimento das teorias psicanalíticas. Eles formaram um grupo de estudos sobre Freud, com discussões semanais de casos clínicos. O interesse que a psicanálise não conseguiu suscitar no meio médico foi despertado entre os estudantes de psicologia.

Esse primeiro e rudimentar grupo de interessados pelos conhecimentos psicanalíticos foi, sem dúvida, o embrião do que veio a ser posteriormente a Sociedade Psicanalítica de Mato Grosso do Sul. Ela nasceu como um núcleo da Sociedade Psicanalítica do Rio de Janeiro, em 1989, trilhou um árduo caminho para institucionalizar-se e manteve-se sempre fiel ao seu propósito maior, a transmissão da psicanálise para dentro e para fora das fronteiras institucionais.

Nos primeiros anos do Núcleo de Mato Grosso do Sul, o grupo de candidatos permaneceu extremamente fechado, em razão das características locais, bem como e, sobretudo, das condições precárias de pioneirismo, incrementadas por angústias intensas vividas pelos participantes do grupo, a quem cabia a tarefa de desbravar interna e externamente regiões novas e desconhecidas (Araujo & Araujo, 2000). Sobrava pouco ou nenhum fôlego para investir extramuros. Some-se a isso o fato de que alguns colegas psicanalistas ou candidatos a, que outrora davam aulas no curso de psicologia, haviam deixado de fazê-lo. O meio parecia cada vez mais fechado e menos propício ao florescimento das ideias psicanalíticas.

Alguns analistas da Sociedade Psicanalítica do Rio de Janeiro que se mudaram para cá constantemente davam depoimentos sobre as dificuldades encontradas para desenvolver a clínica psicanalítica para além das análises didáticas. O meio médico permanecia impermeável e o da psicologia, agora, estava distante.

Somente com a passagem a grupo de estudos e com o apoio da então Associação Brasileira de Psicanálise, hoje Federação Brasileira de Psicanálise FEBRAPSI, foi possível iniciar e incrementar atividades científicas voltadas para o público externo. Surgiram novos cursos de psicologia, além de especializações em psicoterapia de orientação analítica, o que fez renascer o interesse pela psicanálise.

Já se passaram mais de 40 anos desde que a doutora Marila chegou por aqui, portadora e representante do conhecimento psicanalítico. O estarrecimento e a curiosidade que suas aulas causaram ficaram no passado. Nesses 40 anos, sobretudo na última década do século passado e nos primeiros anos do século atual, a humanidade passou e vem passando por mudanças engendradas pelos vertiginosos e incessantes avanços tecnológicos e científicos que modificaram de maneira significativa a vida das pessoas em todos os níveis, em todos os lugares do mundo de uma forma nunca dantes vista. As novas modalidades de comunicação aumentaram o acesso à informação, que pode ser obtida em um aparelhinho que cabe na palma das mãos e em uma velocidade até então impensada.

Essas mudanças, além de tudo, quebraram barreiras, diminuíram distâncias e tornaram muitos limites, antes tão bem estabelecidos, cada vez mais tênues. O que acontece em qualquer parte do globo pode ser visto quase imediatamente, senão ao mesmo tempo, on-line. Conceitos psicanalíticos podem ser acessados por qualquer pessoa com um simples toque, cursos de psicanálise e consultas on-line são oferecidos diariamente. Os conceitos psicanalíticos popularizaram-se, podem ser lidos em revistas, jornais e aparecem nas novelas, para em seguida gerar debates em programas de entrevistas ou que versam sobre comportamento.

Junta-se a esse quadro a globalização econômica, cultural e social. Os mesmos fenômenos vividos nas grandes cidades chegam até aqui: violência, fragmentação dos valores, falta de referências, produção cultural pobre... As formas de viver próprias do local vêm sendo solapadas por essas mudanças, como, por exemplo, as rodas de tereré, típicas da região e espaços de interação e trocas, estão encolhendo em decorrência da violência urbana e da vida agitada que não permite mais parar. Da mesma forma, a música local, rica e diversificada, que no passado animava os bailes, hoje é ouvida em poucos e raros lugares, uma vez substituída por outros ritmos, na maioria das vezes de gosto duvidoso.

Nesse cenário contemporâneo, em que as fronteiras tornaram-se menos delineáveis, como pode a psicanálise, que nasceu e se desenvolveu como um produto da elite cultural europeia, continuar sendo revolucionária? Como transpor fronteiras, estabelecer contrapontos com outras culturas em face de todas as dificuldades e limitações decorrentes dessas mudanças profundas pelas quais a humanidade passou e continua passando?

Em contrapartida, foi também graças a essas mudanças que se ampliaram os horizontes e se criou um novo espaço para o desenvolvimento da psicanálise. A facilidade da informação e a proliferação de cursos e do conhecimento também vêm gerando mais interesse e curiosidade pela psicanálise e propondo novos desafios para o século XXI.

Na esteira dos benefícios que a modernidade proporcionou, há alguns anos a Federação Brasileira de Psicanálise vem sendo conclamada a expandir suas fronteiras e sua atuação para além do eixo Rio de Janeiro-São Paulo-Porto Alegre. Entre os objetivos da Federação, destacam-se os propósitos de estimular o desenvolvimento da psicanálise no Brasil todo, de acordo com as normas e finalidades da International Psychoanalytical Association IPA, bem como de proporcionar o intercâmbio e a união entre as federadas mediante promoção, patrocínio e estímulo de atividades científicas e didáticas que favoreçam a comunidade entre os psicanalistas brasileiros. No afã de cumprir esses objetivos, a Federação Brasileira de Psicanálise FEBRAPSI vem diversificando suas funções e sendo cada vez mais solicitada a participar do debate e da busca da solução de problemas que afetam o interesse das suas federadas, que, entre outros, é levar a psicanálise para onde haja demanda. Com a colaboração ativa que vem prestando a congressos regionais e reuniões científicas em suas federadas, a Febrapsi vem impulsionando a expansão da psicanálise no Brasil.

Como resultado dessa política expansionista, a FEBRAPSI realizou seu vigésimo terceiro congresso em Ribeirão Preto, SP, cidade que possui uma sociedade ativa e atuante. Contrariando alguns vaticínios que previam um retumbante fracasso, o congresso foi um grande sucesso em todos os sentidos: atraiu colegas de todas as regiões do Brasil, bem como o público leigo de cidades vizinhas e de plagas mais distantes, que durante três dias discutiram sobre “Limite - prazer e realidade”.

Da mesma forma, o próximo congresso brasileiro vai ser sediado aqui em Campo Grande, que, mesmo sendo uma capital, é distante dos grandes centros culturais. O tema escolhido pelo conselho de coordenação científica que congrega os diretores científicos de todas as federadas, não poderia ser mais auspicioso: “ser contemporâneo: medo e paixão”.

A ambiguidade da palavra “ser” - verbo ou substantivo -, as incontáveis associações e aplicações que ser contemporâneo, medo e paixão suscitam em cada um de nós certamente será um grande estimulador de discussões ricas e produtivas e nos ajudará a lidar com os crescentes desafios de nossa época. Eizirik (1997) sugere que:

mesmo considerando os vários desafios e pontos críticos a serem enfrentados, num mundo com tanta complexidade e incerteza, há tal massa de trabalho já realizado e outro tanto por realizar, que podemos iniciar nosso segundo século com pelo menos uma convicção compartilhada: nossa chave já foi usada para abrir muitas portas, mas há mil outras esperando por nós.

Acredito que, se continuarmos aceitando o desafio de manter renovada a nossa teoria e a nossa técnica, propondo e buscando ampliações e desenvolvimentos necessários para lidar com a complexidade dos novos e diferentes parâmetros da atualidade, certamente teremos fôlego para transpor novas fronteiras, mantendo a especificidade de nossa ciência e nos mantendo abertos e atentos às transformações da cultura.

 

Referências

Araujo, G. & Araujo, L. (2000). A construção de um instituto de ensino. (Trabalho apresentado no IV Encuentro Latinoamericano de Institutos de Psicoanálisis, Caracas).         [ Links ]

Araujo, G. B. C. (2009). A SPMS e a IPA: sonhos, encontros e desencontros. Revista Brasileira de Psicanálise, 43(4).         [ Links ]

Eizirik, C. L. (1997). Psicanálise e cultura: alguns desafios contemporâneos. In Livro anual de psicanálise. (XIII, 173-183). São Paulo: Escuta.         [ Links ]

Freud, S. (1980). Totem e tabu. In S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. (J. Salomão, Trad., Vol. 13). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1913).         [ Links ]

Mezan, R. (1991). Freud - a trama dos conceitos. São Paulo: Perspectiva.         [ Links ]

Nascimento, M. (1981). Notícias do Brasil (Os pássaros trazem). In M. Nascimento, Caçador de mim [CD]         [ Links ].

Oristrell, J. (Dir.). (2004). Inconscientes. [Filme-DVD]. Espanha: ARTFILMS.         [ Links ]

Roudinesco, E. (2009). Em defesa da psicanálise: ensaios e entrevistas. Rio de Janeiro: Zahar.         [ Links ]

Simões, P. (1985). Sonhos guaranis. In P. Simões, Paulo Simões e o expresso arrasta pé. [CD]         [ Links ].

Teodorowic, M. (1999). História do movimentopsicanalítico em Campo Grande, Mato Grosso do Sul. (Trabalho apresentado no XVII Congresso Brasileiro de Psicanálise, Rio de Janeiro).

Web

http://rmtonline.globo.com/hotsites/ms/MeuMS/diversidade.html

http://www.paginadamusica.com.br/categorias/cds/geracoes.html

http://pt.wikipedia.org/wiki/Mato_Grosso_do_Sul

http://www.paginadamusica.com.br/categorias/cds/geracoes.html

rmtonline/meuMS.com.br

 

 

Correspondência:
Gleda Brandão de Araújo
Rua General Odorico Quadros, 605
79020 260 Campo Grande, MS
Tel: 67 3326 3594
gleda@terra.com.br

Recebido em 4.6.2012
Aceito em 19.6.2012

Creative Commons License