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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.46 no.2 São Paulo abr./jun. 2012

 

INTERFACES

 

A fotografia em Walter Benjamin: a "dialética na imobilidade" e a "segunda técnica"

 

Photography in Walter Benjamin's work: “frozen dialectic” and the "second technic"

 

La fotografía en Walter Benjamin: la "dialéctica en la inmovilidad" y la "segunda técnica"

 

 

Márcio Seligmann-Silva

Professor livre docente Instituto de Estudos da Linguagem da Universidade Estadual de Campinas IEL-UNICAMP

Correspondência

 

 


RESUMO

O texto apresenta a teoria da fotografia de Walter Benjamin mostrando a sua relação com as teorias da fotografia de sua época assim como sua articulação com os conceitos benjaminianos de “dialética na imobilidade” e de “imagem dialética”. A sua filosofia da história é interpretada também a partir de sua ideia de que o passado deixou nos textos imagens que precisam ser reveladas por cada agora. Por fim, o ensaio analisa o conceito de “segunda técnica” que Benjamin desenvolve na segunda versão de seu trabalho sobre a obra de arte, no qual a técnica é vista como aliada ao jogo e como um meio de emancipação.

Palavras-chave: fotografia, imagem dialética, segunda técnica.


ABSTRACT

The text presents Walter Benjamin's photography theory showing its relation with the photography theory of his period as well as its connection with the Benjaminian concepts of “frozen dialectic” and “dialectical image”. His philosophy of history is interpreted departing from his idea that the past has leaved on the texts, images that each now needs to develop. Concluding, the essay analyses the concept of “second technic”, that Benjamin develops in his work about the artwork in the era of it's technical reproduction, where technic is seen close to the concept of play/game and as a means to emancipation.

Keywords: photography, dialectical image, second technic.


RESUMEN

El texto presenta la teoría de la fotografía de Walter Benjamin mostrando su relación con las teorías de la fotografía de su época, así como su articulación con los conceptos benjaminianos de “dialéctica en la inmovilidad” y de “imagen dialéctica”. Además, su filosofía de la historia es interpretada a partir de su idea, según la cual el pasado dejó en los textos imágenes que precisan ser reveladas por cada ahora. Finalmente, el ensayo analiza el concepto de “segunda técnica” que Benjamin desarrolla en la segunda versión de su trabajo sobre la obra de arte, en el que la técnica es vista como aliada al juego y como un medio de emancipación.

Palabras-clave: fotografía, imagen dialéctica, segunda técnica.


 

 

O que torna as primeiras fotografias tão incomparáveis talvez seja isto:
elas representam a primeira imagem do encontro entre a máquina e o homem.

(Benjamin, 2006, p. 720).

Estudar o papel da fotografia na obra de Benjamin implica acompanhar sua relação com esse meio que se intensifica, sobretudo, no contexto de seu trabalho sobre as passagens de Paris. Também é essencial levar em conta que sua teoria da fotografia está ancorada em sua teoria messiânica da história e em uma original teoria da técnica. No que segue procuro explorar alguns aspectos dessa rica e elaborada concepção da fotografia, procurando refletir também sobre o significado desses teoremas de Benjamin para nossa era de síntese de imagens e de corpos biológicos.

 

Benjamin e a cena da teoria da fotografia

No seu estudo sobre a fotografia, Benjamin recebeu o impacto de uma série de publicações dos anos 1920 e 1930, que tratavam diretamente da teoria e da história da fotografia. Ele foi impulsionado pela amiga Gisele Freund1 e por críticos de primeira hora da fotografia, como Loius Figuier - autor de La photographie au salon de 1859, na qual ele fala de voyages photographiques (Benjamin, 2006, p. 724). Se Freund influencia Benjamin com a ideia de que com a fotografia toda a concepção de arte modificou-se e de que a fotografia é elevada ao nível da arte na mesma medida em que ela se torna uma mercadoria, o conceito de voyages photographiques também impressionou Benjamin e foi ao encontro de sua teoria, que estabelece uma relação entre o nascimento das massas e o da fotografia, ambas marcadas por uma pulsão de aproximar tudo. Desse modo, para Benjamin, a fotografia aproxima paisagens, monumentos e países distantes assim como as obras de arte, que antes apenas o viajante podia ver ao visitar os museus. Em Entretiens, l'art et la réalité. Lart et l'état (Paris: Institut internationale de coopération intelectuelle, 1935), ele pôde ler ideias de Lhote como a que afirma: “cada nova técnica [...] baseia-se em uma nova ótica” (Benjamin, 1972, p. 499), tese que ele desenvolve em seus escritos sobre a fotografia e o cinema.

A teoria da fotografia de Benjamin pode ser lida tanto nas resenhas de exposições fotográficas e de livros, como o de Freund, bem como em sua “Pequena história da fotografia” (1931), em suas “Cartas de Paris 2, Pintura e fotografia” (1936) e sobretudo em seu conhecido texto sobre a obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica (1936). Além disso, sua teoria das imagens dialéticas e da dialética paralisada, ou seja, sua teoria da história, deve ser interpretada rigorosamente como uma teoria das imagens que, como tento mostrar, pode ser posta em curto-circuito com sua teoria das imagens técnicas.

Temos de lembrar que Benjamin via em seu estudo sobre a obra de arte uma resposta aos terríveis fatos políticos de que era contemporâneo: a ascensão do nazifascismo, os desdobramentos e as crises da sociedade capitalista e a guerra iminente. Seu ensaio sobre a obra de arte deve ser entendido também como uma parte fundamental do grande projeto sobre as passagens de Paris que ele levou a cabo - com algumas interrupções - desde 1927 até sua morte, em 1940. Esse projeto visava uma espécie de elaboração do século XIX, um despertar de suas fantasmagorias. Como parte desse projeto, cabia estudar os novos meios de composição, reprodução e divulgação das artes, cujos avanços da técnica faziam-se perceber de modo claro. Como é conhecido em Benjamin, o estudo da estética confundia-se com uma análise social e uma crítica da cultura. Em um fragmento sobre esse ensaio, ele anotou algo que indica essa pertença ao projeto das passagens:

O trabalho não vê de modo algum que a sua tarefa consiste em fornecer os prolegómenos para uma história da arte. Antes, ele se dedica em primeiro lugar a abrir o caminho para uma crítica do conceito de arte que nos chegou do século XIX (Benjamin, 1974, p. 1050).

Esse conceito de arte herdado do século XIX seria místico, mágico e abstrato, eivado de um caráter enganoso e “ideológico”, como escreve Benjamin no mesmo fragmento. Ele estava preocupado em estudar os novos regimes de visualidade e de percepção do mundo, diretamente determinados pelas aceleradas mudanças técnicas, uma vez que, para ele, o homem moderno não poderia ser compreendido sem essa análise da técnica, que determina novos modos de percepção.

Se, para Alexander Gottlieb Baumgarten, em meados do século XVIII, a teoria da percepção (aisthesis, em grego) poderia ser elaborada de modo muito mais profícuo a partir do estudo da recepção de obras de arte - concepção que está na origem da teoria estética moderna -, para Benjamin, na primeira metade do século XX, com o triunfo das grandes cidades, do fotojornalismo, das vanguardas, da fotografia artística, do cinema e do rádio, uma reflexão crítica sobre a sociedade moderna dependia de uma teoria da técnica e de sua aplicação nas artes. Se, em Baumgarten, as artes eram uma porta para o estudo da nossa percepção do mundo, em Benjamin, as artes são vistas como uma caixa de ressonância privilegiada para a compreensão do novo papel da técnica.

Sem perder de vista que a arte tem muito a ver com a percepção, Benjamin nunca se esquece da concepção grega das artes como tékhné. A técnica, como vemos no mito pro-meteico, é sempre uma tentativa, ambígua, de “restituir” ao ser humano uma totalidade. A teoria da percepção e a teoria estética são reelaboradas por Benjamin a partir de uma filosofia da arte que traz em seu próprio âmago o conceito de técnica. Se a técnica agora tem um lugar tão privilegiado na teoria estética, a estética passa a ser pensada intensamente sob o ponto de vista de uma teoria social. Como o primeiro e o último capítulos do ensaio de Benjamin sobre a obra de arte deixam claro, para esse autor não se pode pensar as artes e a estética sem levar em conta a política.

No contexto do projeto sobre as passagens, que emprestava como título o nome dessas formações técnico-arquitetônicas em ferro do século XIX, as passagens comerciais, Benjamin já fizera várias incursões sobre temas afins ao seu trabalho sobre a obra de arte. Antes desse projeto, no entanto, em 1924, ele publicara na revista G uma tradução do ensaio de Tristan Tzara - poeta romeno que participou da fundação do movimento dadaísta de Zurique, em 1916 - sobre as fotografias sem câmara de Man Ray. As ideias de Benjamin sobre as artes só podem ser compreendidas no contexto das vanguardas. No referido artigo, “Pequena história da fotografia” (1931), Benjamin já se mostrava parte do círculo de teóricos e especialistas em imagens técnicas, que compreendia também Lázló Moholy-Nagy, professor da Bauhaus, teórico e prático da fotografia sem câmera. Infelizmente, a recepção do ensaio de Benjamin sobre a obra de arte frequentemente o retira desse interessante contexto do debate vanguardista sobre a arte, no qual, sobretudo nos anos 1920 e 1930, imperava certo otimismo com relação ao potencial revolucionário das artes. Em ensaios como “Produção - reprodução”, publicado em 1922 na revista De Stijl, ou em seu texto “Fotograma”, de 1926, Moholy-Nagy já apresentava algumas ideias, desenvolvidas posteriormente e a seu modo por Benjamin. É o caso da discussão de Moholy-Nagy sobre a fotografia como um meio que não apenas se afirmava a partir da reprodução, mas que também tinha uma performance produtiva.2

Outra importante referência que influenciou decisivamente a visão de arte de Benjamin foi seu amigo e jornalista Siegfried Kracauer. Em seu ensaio, “O ornamento da massa” (1927), e em “O culto da dispersão [Zerstreuung]” (1926), ele faz uma análise da moderna “cultura do corpo” e das “fábricas americanas de dispersão”, que antecipam os estudos benjaminianos sobre arte moderna e nos quais ela é associada a uma recepção dispersa e distraída - apesar de, em Benjamin, não percebermos mais o tom condenatório de Kra-cauer. Como Kracauer ainda nota, essa massa organizada é a mesma que vem das fábricas e escritórios. O elemento eminentemente ótico do modo de pensar e escrever de Kracauer, que também nesse ponto o unia a Benjamin, fica evidente nos textos de descrição e reflexão sobre a cidade, nos quais vemos como é possível filosofar a partir do gesto do flâneur. As suas “Observações de Paris” (“Pariser Beobachtungen”), de 1926, marcaram definitivamente os Diários de Moscou de Benjamin, escritos no ano seguinte. Também outro trabalho de Kracauer, a saber, seu ensaio sobre a fotografia, de 1927, veio a influenciar Benjamin - inclusive a sua teoria da publicidade. Nele lemos uma descrição da sociedade que se protege de si mesma - e da morte - por meio de uma avalanche de imagens.

As tentativas de opor, na teoria das artes, a reprodução à produção era, na verdade, um tema clássico. Desde a Antiguidade e, com mais ímpeto, a partir do Renascimento e até o século XVIII, discutia-se muito se as obras e os artistas deveriam imitar e reproduzir a natureza e as obras de arte “clássicas”, ou, por outro lado, se deveriam buscar uma obra distinta, ela mesma digna de ser imitada. Com a técnica fotográfica, no entanto, a arte como reprodução passou a ser pensada, com Benjamin, de um modo inteiramente diverso, não mais enquanto re-produção de um objeto ou tema, mas sim como produção da própria obra. Para ele, o fundamental é que a fotografia é intrinsecamente reprodutível. Isso implicou um abalo na tradição, um rompimento com ela, lançando, portanto, a modernidade em um outro paradigma, segundo o qual o que conta não é mais imitar - a natureza ou os grandes modelos - ou ser original, mas sim o fato de não existir mais uma identidade única, fechada, da obra, do seu produtor e daquilo que eventualmente ela venha a representar.

Detlev Schottker, comentando as possíveis influências que atuaram sobre o conceito de reprodução de Benjamin, recorda que na revista Literarische Welt (Mundo literário), para a qual Benjamin contribuía regularmente, foi publicado em 31 de julho de 1931 (no mesmo número em que apareceu o pequeno texto de Benjamin “Desempacotando a minha biblioteca”) um debate entre o editor Willy Haas e o pintor Fritz Pollak. Enquanto este condenava as reproduções, aquele as defendia. Haas sustentava a opinião segundo a qual na nossa era o conceito de “original” perdeu seu sentido social. Nos termos de sua “função social”, para Haas, as reproduções seriam mais originais do que os originais que estão nos museus (Benjamin, 2006, p. 116). Esse ponto de vista de Haas não deixa de lembrar, por outro lado, um debate de mais de cem anos antes, levado a cabo pelos românticos de lena, bem conhecidos de Benjamin, quando esses autores - sobretudo os irmãos Schlegel e Novalis - defendiam uma reversão crítica da ideia de original em favor das cópias. Essa concepção desenvolveu-se, sobretudo, no contexto da teoria romântica da tradução. August W. Schlegel defendia uma valorização desconstrutora do que normalmente é visto como secundário. No fragmento 110 da revista Athenüum, ele anotou: “É um gosto sublime sempre preferir as coisas à segunda potência. Por exemplo, cópias de imitações [Kopien von Nachahmungen], julgamentos de resenhas, adendos à acréscimos, comentários a notas”. Ao invés dos românticos de Iena trabalharem de modo rígido com a ideia de fidelidade, submetida ao paradigma tradicional da representação, eles preferiam pensar a partir de conceitos como o de oscilar (Schweben), ironia, parábase, autorreflexão, desdobramento, dissimulação (Verstellung), alegoria e mesmo de tradução, como operadores para se pensar toda a cultura. Não podemos deixar de lado esse universo de ideias ao tratar das teses defendidas por Benjamin, em 1936, sobre a reprodução como superação da tradição.

 

Fotografia e o abalo do “testemunho histórico”

No segundo capítulo do ensaio sobre a obra de arte, Benjamin apresenta uma de suas teses centrais.

Por volta de 1900 a reprodução técnica tinha atingido um padrão que lhe permitiu não somente tornar a totalidade das obras de arte convencionais em seu objeto, submetendo seus efeitos às mais profundas modificações, mas também conquistar um lugar próprio entre os procedimentos artísticos (1989a, p.351s).3

Ao ler essa passagem com os olhos dos habitantes do século XXI, a tentação não é pequena - à qual, no entanto, devemos ceder, creio - de substituir a data de 1900 pela de 2000 -substituindo também, é claro, a mídia em questão: em vez da fotografia e do cinema, hoje falamos da computação e do universo da web. Esses dois novos fenômenos também permitem uma “repaginação” de toda história da arte - eles incorporam tudo e ressignificam a tradição e seu status. Além disso, consideremos a arte computacional e a web como fenômenos estéticos em si - que incidem sobre a história da arte e da técnica, bem como sobre nossos conceitos de arte e de literatura. Sem dúvida, reflexões como essa imprimem ao ensaio de Benjamin sobre a obra de arte sua natureza absolutamente atual. Ele nos ensina a ler a história sob o ponto de vista da técnica e de sua determinação sobre nosso modo de ver e perceber o mundo.

Pouco antes dessa passagem citada, Benjamin formulara o seguinte sobre os novos aparatos de captação do mundo: “como o olho apreende mais rápido do que a mão desenha, o processo de reprodução figurativa foi acelerado de modo tão intenso que agora ele podia acompanhar o ritmo da fala” (1989a, p. 351). Nesse passo, Benjamin não está fazendo outra coisa senão atualizar para sua época uma teoria da mídia, tal como Lessing, em 1766, em seu Laocoonte, havia feito, segundo os padrões de sua época.

Lessing tentara pensar a especificidade de cada arte. Para tanto, teve de fazer uma reflexão sobre a relação de cada modalidade artística com os sentidos do nosso aparelho perceptório. Pensando no ser humano do século XX, Benjamin estabelece uma nova reflexão acerca da relação entre as artes e o corpo. Ele nos apresenta como proceder para (nos) pensarmos diante da revolução midiática contemporânea. A situação de abalo da tradição que ele descreve só fez agravar-se com o tempo, nos cerca de 75 anos que nos separam de seu ensaio. Assim, Benjamin tece, no capítulo III do ensaio sobre a obra de arte, uma relação entre a reprodução técnica e a superação do elemento único da obra. Diante da obra/reprodução, não cabe mais falar de sua autenticidade.

A autenticidade de uma coisa é a quintessência de tudo que nela é originalmente transmissível, desde sua duração material até o seu testemunho histórico. Como este testemunho está fundado sobre a duração material, no caso da reprodução, onde esta última tornou-se inacessível ao homem, também o primeiro - o testemunho histórico da coisa -torna-se instável (1989a, p.53).

A era da reprodutibilidade nos joga abruptamente no tempo para após a era do testemunho histórico. Talvez seja por conta desse mesmo fato que, podemos pensar hoje, tanto se falou e se fala no testemunho. O século XX, século de catástrofes, guerras e genocídios, exigiu o testemunho, mas também revelou seus limites. Paradoxalmente, nas últimas duas décadas é a fotografia analógica que tem servido como um dos modelos do testemunho histórico, uma vez que, de um modo geral, temos a impressão de que a era digital, com mais razão ainda do que a da fotografia e do filme analógicos, bloqueia qualquer relação com o evento inscrito na escrita eletrônica dos pixels.

Vale a pena retomar o texto de Benjamin nesse ponto. Ele nos mostra como a era das imagens reproduzidas e reprodutíveis traz em si essa ideia de abalo do “testemunho histórico” (geschichtliche Zeugenschaft). Temos de lembrar que zeugen - do qual deriva testemunhar, em alemão - remete a gerar, procriar, reproduzir, ser pai. Se, com a reprodução técnica, entramos em uma era sem reprodução no sentido de gerar, é também porque geramos sem a fecundação ao produzirmos robôs ou clones. Para Benjamin, o “abalo da tradição”, provocado pela reprodução técnica, não é nada senão “o outro lado da crise e da renovação atuais da humanidade”. E essa crise, creio, não deixou de se aprofundar. Não por acaso a sociedade pós-geração natural de seres humanos tornou-se um topos na ficção científica - aliás, desde a novela fundadora do gênero de Mary Shelley, Frankenstein, ou o moderno Prometeu ao filme Prometheus, de Ridley Scott.

Mas a arqueologia dessa crise é feita por Benjamin em seus estudos sobre Baudelaire. Em Baudelaire, Benjamin pôde perceber, para além do crítico da fotografia que via nela uma proximidade das massas - aspecto que Benjamin julgava positivo -, alguém que notou sua tendência a se aproximar da ciência, ideia muito cara a Benjamin, que via na fotografia uma espécie de triunfo do aspecto técnico da obra de arte. Baudelaire anotou no seu “O público moderno e a fotografia”:

A poesia e o progresso são dois ambiciosos que se odeiam de um ódio instintivo, e quando se encontram no mesmo caminho, é necessário que um sirva ao outro. Se for permitido à fotografia substituir a arte em qualquer uma de suas funções, ela logo será totalmente suplantada e corrompida, graças à aliança natural que encontrará na tolice da multidão. É preciso então que ela retorne ao seu verdadeiro dever, que é o de ser a serva das ciências e das artes, a mais humilde das servas, como a imprensa e a estenografia, que nem criaram e nem suplantaram a literatura. Que ela enriqueça rapidamente o álbum do viajante e devolva a seus olhos a precisão que faltava a sua memória, que ela ornamente a biblioteca do naturalista, amplie os animais microscópicos, ou mesmo, que ela acrescente ensinamentos às hipóteses do astrônomo, que ela seja enfim a secretária e o guarda-notas de quem quer que precise, em sua profissão, de uma absoluta precisão material, até aí, nada melhor (Baudelaire, apud Entler, 2007).4

Essa passagem continua de modo surpreendente, uma vez que Baudelaire acaba atribuindo à fotografia qualidades que ultrapassam o campo científico. Ele vai falar tanto de suas qualidades de arquivo como de salvação, em imagem, daquilo que vai se transformar em ruínas, ideia também cara a Benjamin.

Continuemos a passagem de Baudelaire:

Que ela salve do esquecimento as ruínas decadentes, os livros, as estampas e os manuscritos que o tempo devora, as coisas preciosas cuja forma irá desaparecer e que pedem um lugar no arquivo de nossa memória, ela terá nossa gratidão e será ovacionada (Baudelaire citado por Entler, 2007, p.10. Cf. Benjamin, 1989, p.138).

Não podemos esquecer que Baudelaire era um idólatra das imagens. A multiplicação quantitativa de imagens de que ele foi contemporâneo pode ser explicada não só pela facilidade técnica mas também por uma necessidade quase patológica do indivíduo contemporâneo de registrar tudo em imagens. “Glorifier le culte des images (ma grande, mon unique, ma primitive passion)”, escreveu Baudelaire. Essas palavras caracterizam também o indivíduo contemporâneo cujo anseio é construir uma casa em um mundo onde tudo se liquefaz. Como suas imagens também são líquidas, ele não para de inscrevê-las. Nossa era de museus e arquivos é uma filha de nosso descolamento da tradição e, mais recentemente, da nossa crise de limites do próprio humano. Se Benjamin constatou que aquilo que está para desaparecer assume a forma de uma imagem, nas fotografias das ruas de Paris, de Atget, reconhecemos uma total consciência desse fato. No verso das suas fotografias o fotógrafo anotava: “Va disparaître”.

A partir de Baudelaire e de sua lírica que incorpora o choque da vida moderna, Benjamin desenvolve, recorrendo a Bergson, Proust e Freud, uma teoria da onipresença dos choques. Considera o gesto da captação da fotografia parte de uma série de novos pequenos gestos que se associam a mudanças complexas, como o de riscar o fósforo - invenção que ele considera paradigmática.

Entre os inúmeros gestos de comutar, inserir, acionar etc., especialmente o “click” do fotógrafo trouxe consigo muitas consequências. Uma pressão do dedo bastava para fixar um acontecimento por tempo ilimitado. O aparelho como que aplicava ao instante um choque póstumo. Paralelamente às experiências óticas desta espécie, surgiam outras táteis, como as ocasionadas pela folha de anúncio dos jornais, e mesmo pela circulação na cidade grande. O mover-se através do tráfego implicava uma série de choques e colisões para cada indivíduo (1989, p.124).

Benjamin também destaca o papel da fotografia como técnica de fixar a identidade do indivíduo moderno, que vive em um mundo onde cada vez se sente menos em casa, onde ele não reconhece as marcas de sua existência, marcas essas agora vistas como vestígios, no sentido jurídico das marcas de um crime. A sociedade na qual o choque impera é também aquela na qual o indivíduo está submetido a uma nova cadeia de controles. A fotografia contribuiu de modo fundamental para essa nova situação:

Nos primórdios dos procedimentos de identificação, cujo padrão da época é dado pelo método de Bertillon, encontramos a definição da pessoa através da assinatura. Na história desse processo, a descoberta da fotografia representa um corte. Para a criminalística não significa menos que a invenção da imprensa para a literatura. Pela primeira vez, a fotografia permite registrar vestígios duradouros e inequívocos de um ser humano (1989, p. 45).

Mas contra um lado seu que podemos chamar de melancólico, Benjamin comemora no choque a possibilidade de uma refundação da cultura. Ele saúda a nova barbárie. Sua teoria do choque não só apresenta um sujeito que não é mais dono de si e que vive, como escrevia Freud, em Unbengehagen in der Kultur (Mal-estar na cultura), ou seja, no desabrigo da cultura, na ausência de casa, como também anuncia a era nova de um pensamento pós-dualismos. É como se Benjamin previsse o que Primo Levi descreveu como sendo a zona cinzenta. Como Kafka, antes de Auschwitz, Benjamin também nos fornece elementos para o que resta da filosofia após aquele evento. Trata-se da pós-metafísica. O projeto de Benjamin não era simplesmente criticar, condenando a onipresença dos choques, mas desviar a carga desses choques, no sentido de um aproveitamento revolucionário deles. Nesse gesto, ele se uniu às vanguardas. Mas ele percebe também que, nesse sentido, a forma acabada da proposta das vanguardas dá-se por meio dos novos aparelhos técnicos: a fotografia e, sobretudo, o cinema. Contra o futurismo de Marinetti e seu culto à técnica como máquina de guerra, Benjamin desenvolve uma teoria de uma segunda técnica, que se oporia a essa técnica destruidora.

O cinema e a fotografia estariam entre as concretizações mais evidentes dessa segunda técnica. Eles também incorporam o choque em seus procedimentos. A fotografia com o tiro ou o olhar de Medusa que congela o tempo e o conecta a outros aqui e agora, e o cinema, com seus cortes e a montagem que potencializa sua capacidade de penetrar e revelar o real. O choque, lembra Benjamin, a partir do Freud de Para além do princípio do prazer, rompe o Reizschutz, nossa carapaça psíquica que nos envolve, e revela o indivíduo como um corpo frágil. Por outro lado, o indivíduo moderno precisa estar adestrado para enfrentar esses choques. Benjamin vê no cinema o tal meio de educação. Ele também incorpora o princípio do teste: os atores são testados para serem contratados e, além disso, a performance do ator diante da máquina ensina seu público a enfrentar, no trabalho, a máquina que suga sua humanidade. A fotografia e o cinema são vistos por Benjamin como dois dispositivos que nos ensinam a impedir a revolta prometeica da técnica. Neles, ao invés de a técnica dominar-nos, ela serve para uma reconquista não violenta da natureza.

 

O historiador como fotógrafo do tempo: a imagem dialética

Na sociedade pós-aurática, seu habitante está sendo posto à prova todo tempo, está submetido ao perigo, e é por meio desse estar em perigo radical que ele faz sua “experiência”. “Articular o passado historicamente não significa reconhecê-lo 'como ele de fato aconteceu'. Significa apropriar-se de uma recordação como ela relampeja no momento do perigo” (Benjamin, 1974, p. 695), anotou Benjamin no contexto de suas teses sobre a filosofia da história, e ainda:

A imagem é aquilo em que o ocorrido encontra o agora num lampejo, formando uma constelação. Em outras palavras: a imagem é a dialética na imobilidade. Pois, enquanto a relação do presente com o passado é puramente temporal, a do ocorrido com o agora é dialética - não de natureza temporal, mas imagética. [...] A imagem lida, quer dizer, a imagem no agora da cognoscibilidade, carrega no mais alto grau a marca do momento crítico, perigoso, subjacente a toda leitura (Benjamin, 1982, p. 578; 2006, p.505).

O perigo é também o de cair no esquecimento, assim como o de se manter não lida e encoberta pela narrativa tradicional - épica, linear -, que apresenta na visão benjaminiana apenas o triunfo dos vencedores. Na imagem, ao invés do narrado, encontramos uma den-sificação do histórico que o arranca do fluxo da dominação. O crítico cultural materialista agarra o ocorrido e mergulha-o no agora, como um fotógrafo que rapta um aqui e agora e o arrasta para outros cronotopoi. Não se trata mais de apanhar e reproduzir a tradição, isso era o registro a que a cultura submeteu-se na era que Benjamin denomina de aurática, ou seja, na qual domina a recepção distante e respeitosa da obra de arte, vista como portadora de uma tradição. Benjamin faz uma teoria da nova experiência, ou da experiência possível, na era da onipresença dos choques, pós-tradicional. Sua teoria da história e da antropologia do novo habitante da era moderna é imagética e possui amplas ramificações com a filosofia e a teoria das imagens técnicas. O momento do saber deve ser pensado sob o signo da ação transformadora, da construção da imagem e da sua leitura libertadora. Trata-se de transformar os choques em um dínamo da mudança social efetiva. A imagem é dialética na imobilidade, instância de encontro do conceito com a imagem, de tradução de uma na outra. A imagem deixa de ser vista como memória encobridora, como sugeria Kracauer ao escrever sobre a fotografia, e se torna médium de reflexão.

Para Benjamin - numa visão muito cara à psicanálise -, nossa língua é sobrevivente da catástrofe e é a única que porta tanto o ocorrido como a possibilidade de trazê-lo para o nosso agora. Essa atualização é ela mesma violenta. “A intervenção [Zugriff] segura, aparentemente brutal pertence à imagem da 'salvação'” (1974, p. 677). Essa salvação é o corte no continuum da história, visto como a continuidade da opressão (1974, p. 1244). Nada mais revelador tanto para a história da humanidade como para a de cada indivíduo. Ele também anotou de modo eloquente e na mesma direção: “Marx afirma que as revoluções são as locomotivas da história do mundo. Mas talvez isso seja totalmente diferente. Talvez as revoluções sejam o freio de emergência da humanidade que viaja neste trem” (1974, p.232). A essa interrupção da história corresponde o gesto do historiador/alegorista que também congela o passado em imagens. O conceito benjaminiano de imagem dialética é o resultado dessa concepção da historiografia como destruição da “falsa aparência da totalidade”, ou seja, de nossas narrativas e imagens encobridoras:

Pertencem ao pensamento tanto a paralisação [Stillstellen] quanto o movimento dos pensamentos. Onde o pensamento paralisa-se numa constelação carregada de tensões aí aparece a imagem dialética. Ela é a cesura no movimento do pensamento [Es ist die Zasur in der Denkbewegung.] Naturalmente o seu local não é arbitrário. Ela deve ser procurada, com uma palavra, onde a tensão entre os opostos dialéticos encontra-se no máximo. Assim, a imagem dialética é o objeto mesmo construído na exposição histórica materialista. Ela é idêntica ao objeto histórico; ela justifica o seu arrancar para fora do continuum do percurso da história (1982, p.595).

Assim, como para o alegorista o mundo desvencilhado de todo significado ontologicamente determinado transformava-se num conjunto de imagens que deveriam ser reinvestidas de sentido, do mesmo modo o historiador/colecionador vê a história desmoronar em imagens carregadas de tensões: ele as desperta a partir do seu agora (1982, p. 578). É dispensável, creio, enfatizar o paralelo possível de ser feito aqui com a situação do tête-à-tête na clínica psicanalista. Sem contar que as imagens dialéticas são definidas ainda por Benjamin como “a memória involuntária da humanidade redimida” (1982, p.1233). Ou seja, o agora que está na base do conhecimento da história estrutura, para Benjamin, o reconhecimento de uma imagem do passado que, na verdade, é uma “imagem da memória. Ela aparenta-se às imagens do próprio passado que surgem diante das pessoas no momento de perigo” (1974, p.1243). Ao invés da busca da representação (mimética) do passado, “tal como ele foi”, como as posturas tradicionais historicistas e positivistas - em uma palavra: representacionistas - da história postulavam-no, Benjamin quer articular o passado historicamente apropriando-se “de uma reminiscência”. O historiador deve ter presença de espírito (Geistesgegenwart) para apanhar essas imagens nos momentos que elas se oferecem: assim, ele pode salvá-las, paralisando-as (1974, p.1244): como um fotógrafo do tempo. Essa história construída com base na memória involuntária despreza e liquida o “momento épico da exposição da história”, ou seja, sua representação segundo uma narração ordenada monologi-camente. “A memória involuntária nunca oferece [...] um percurso, mas sim uma imagem. (Daí a 'desordem' como o espaço-imagético da memória involuntária)” (1974, p.1243). Essa imagem é lida pelo historiador (psicanalista da história); portanto, é uma imagem hieroglífica: misto de palavra e imagem.

Nos textos dos anos 1930, Benjamin deixa claro que a tarefa do crítico era liberar o que eu denominaria de teor escritural - catastrófico - do “real”. Mais do que nunca, na época trágica como a vivida por Benjamin, essa essência traumática do “real” torna-se palpável - e, como em Freud, sua teoria do conhecimento é toda derivada da vivência do choque que marca a modernidade e, sobretudo, esse período de dissolução. Suas análises críticas da sociedade desdobram-se na teoria das novas mídias, tais como o cinema e a fotografia. Os aparelhos dessas novas mídias são vistos a um só tempo como potenciais libertadores - do peso da tradição e do passado - e como agentes de destruição. Eles incorporam o princípio do choque para aplicá-lo de volta ao “real”. Se, em Freud - como ocorre em seu texto sobre o bloco mágico -, a metáfora fotográfica é uma constante para apresentar nossa psique como um aparelho mnemônico que registra traços da realidade, também o psiquiatra Ernst Simmel, autor de Kriegsneurosen und psychisches Trauma (Neuroses de guerra e o trauma psíquico, 1918), descreveu o trauma de guerra com uma fórmula que deixa clara a relação entre técnica, trauma, violência e registro de imagens: “a luz do flash do terror cunha/estampa uma impressão/cópia fotograficamente exata” (Das Blitzlicht des Schreckens prügt einen photographisch genauen Abdruck. Apud Ass-mann, 1999, p.157 e 247). Ou seja, na modernidade, a fotografia tornou-se uma imagem potente para apresentar nossa paisagem psicológica. Benjamin, por sua vez, era adepto de uma passagem de André Monglond, que ele citou mais de uma vez. Com ela, o próprio Benjamin deixou claro que não só podemos, mas devemos aproximar sua teoria da dialética paralisada e das imagens dialéticas - que são imagens para serem lidas - do dispositivo fotográfico:

Se quisermos conceber a História como um texto, então vale para ela o que um novo autor fala sobre textos literários (1974, p.1238): “o passado deixou dele mesmo, nos textos literários, imagens comparáveis àquelas que a luz imprime sobre uma placa sensível. Apenas o porvir possui os reveladores suficientemente ativos para desvendar de modo perfeito tais clichês” (1982, p.603).

E o comentário de Benjamin a esse trecho soa como uma profissão de fé que poderia servir de epígrafe à sua obra: “o método histórico é um método filológico, no qual o livro da vida está na base. 'Ler o que nunca foi escrito' é afirmado em Hoffmannsthal. O leitor no qual deve-se pensar aqui é o verdadeiro historiador” (1974, p.1238).

A metáfora fotográfica é tanto mais potente em Benjamin, na medida em que crítico e aparelho fotográfico voltam-se para o momento da catástrofe da cultura, ou seja, para a “recordação como ela relampeja no momento do perigo”. Como ele observa em sua “Pequena história da fotografia”: “a câmara se torna cada vez menor, cada vez mais apta a fixar imagens efêmeras e secretas, cujo efeito de choque paralisa o mecanismo associativo do espectador” (1985, p.107) e, desse modo, contamina-o com o choque. Mas a tarefa do crítico materialista não é só fotografar o choque e interromper o fluxo da narrativa, como Benjamin logo pontua: “aqui deve intervir a legenda, introduzida pela fotografia para favorecer a liberalização de todas as relações da vida e sem a qual qualquer construção fotográfica corre o risco de permanecer vaga e aproximativa”. Também no ensaio sobre a obra de arte, ao tratar das consagradas fotos de Atget, da cidade de Paris, Benjamin volta a essa tese.5 Essas fotos urbanas, esvaziadas de figuras humanas, surgem, comenta Benjamin, como o local de um crime. As fotos ganham assim o significado de provas, de conjunto de indícios, no processo histórico. Cabe ao crítico da cultura legendar essas imagens, dando a elas seu sentido político. Novamente, a imagem dialética é fruto do curto-circuito do ocorrido com o agora e dá-se na interação entre o verbal e o imagético. É imagem lida tanto quanto imagem reinscrita, cuja inscrição liberta-a da esfera do culto e da magia, assim como para Benjamin, ao falar da importância dos sonhos, ele valoriza a sua reapropriação no momento do despertar, e não uma valorização do sonho em si. A fotografia de violência tem a capacidade tanto de gerar um escudo de Perseu para cenas que, de outra forma, paralisar-nos-iam, como também, de certa forma, acabam por adquirir a capacidade de nos chocar e de marcar por toda vida, como Susan Sontag narra a impressão que as fotos de campos de concentração nazistas deixaram nela quando as contemplou pela primeira vez. Com a legendagem das imagens, o crítico materialista rompe o encanto petrificante do choque e permite a elaboração crítica e transformadora do ocorrido.

 

A segunda técnica

Para concluir estas reflexões sobre o papel da fotografia no pensamento de Benjamin, gostaria de tratar do conceito de “segunda técnica” que anunciei. No capítulo VI da segunda versão do texto de Benjamin sobre a obra de arte, ele opõe o valor de culto, ligado ao ritual e à era aurática da recepção das obras de arte, ao valor de exposição, que, segundo ele, só faria aumentar a reprodutibilidade técnica. Ele vê um processo que teria ido da pura magia da arte feita nas cavernas - só posteriormente reconhecida como arte - ao fim da arte, que ele vê anunciado na reprodutibilidade técnica e na escalada do valor de exposição. Nesse ponto, Benjamin introduz uma importantíssima reflexão sobre a relação entre arte, técnica e jogo. (Essa passagem encontra-se apenas na versão francesa e na segunda versão alemã do ensaio sobre a obra de arte.)

Na primeira versão do ensaio, Benjamin faz uma teoria da técnica moderna como uma “segunda natureza”. Com as guerras e crises econômicas, essa segunda natureza necessita também, como a primeira, ser dominada.6 O cinema é visto aí como um meio de aproximação e domínio dessa técnica transformada em segunda natureza: “fazer da monstruosa aparelhagem técnica de nossos tempos o objeto da enervação humana - é esta a tarefa histórica em cujo serviço o cinema tem seu verdadeiro sentido” (1974, p.445; 2012). No cinema, a humanidade poderia também testar novas modalidades de convívio intra-humano e com a natureza e, dessa forma, ensaiar - ludicamente - seu futuro.

Na segunda versão, porém, Benjamin fala de uma técnica emancipada, que seria uma “segunda técnica”. A primeira tinha no centro o ser humano e o próprio sacrifício humano, como sua imagem paroxística; a segunda técnica, por sua vez, tende a dispensar o ser humano do trabalho.7 Baseia-se na repetição lúdica cuja origem está no jogo, visto por Benjamin como primeira modalidade de tomada de distância da natureza.8 Lembremos também aqui da teoria freudiana do jogo: o fort-da (o brincar de desaparecer) do bebê como uma elaboração da separação/realidade (Freud, 1989, p.225s.).

Para Benjamin, essa segunda técnica não visa a um domínio da natureza, mas ao jogar com ela. O jogo aproxima, mas mantém a distância. A primeira técnica seria mais séria, e a segunda, lúdica, no meio das quais estaria a obra de arte, oscilando entre ambas. O cinema e a fotografia, artes eminentemente dependentes da técnica, estariam mais próximas dessa segunda técnica e atuariam justamente no treino em direção a ela, de forma emancipadora. Em uma importante nota de rodapé - que consta apenas da segunda versão alemã -, Benjamin trata da relação da segunda técnica com as revoluções e utopias. Nela apresenta o conceito fundamental de Spielraum, campo de ação, bem como espaço de jogo, “justamente porque essa segunda técnica pretende liberar progressivamente o ser humano do trabalho forçado; o indivíduo vê, de outro lado, seu campo de ação aumentar de uma vez para além de todas as proporções” (1989a, p.360). Afirma também que, em face dessa segunda técnica, “as questões vitais do indivíduo - amor e morte - já exigem novas soluções” (1989a, p.360).

Essa ideia ainda parece constar como mote para as obras de arte produzidas em nossa era, o que vale não apenas para a ficção científica. Boa parte das obras de arte hoje explora esses novos espaços de jogo e de liberdade que a técnica franqueia. São incursões sobre o novo sentido da vida - e da biopolítica - na era da síntese técnica da vida. Elas colocam questões a nós humanos, habitantes da era da crise das fronteiras - geográficas, biológicas e outras mais-, da mobilidade incessante, da ansiedade, do fim do trabalho - definidor de nossa humanidade por tantos séculos. Para Benjamin, mais do que a fotografia, o cinema, sobretudo, traz em si a semente de uma era pós-divisão de trabalho, uma vez que a diferença entre trabalho intelectual e manual é liquidada. Liquidação essa que também se permite vislumbrar no cinema o que, segundo Benjamin, é a “formação politécnica da humanidade”. Ou seja, diferentemente da maioria dos críticos da sociedade, Benjamin procura manter nesse ensaio uma visão positiva dos avanços da técnica. Na 11ª tese, “Sobre o conceito de história”, ele desenvolve uma crítica do conceito utilitarista de trabalho da social-democracia de Josef Dietzgen, que veria no trabalho apenas um meio de conquista e submissão da natureza: “Já estão visíveis, nessa concepção, os traços tecnocráticos que mais tarde vão aflorar no fascismo” (1985, p. 228).

Em seguida, Benjamin contrapõe essa visão instrumental da natureza com a de Fourier, que via na técnica um modo de extrair da natureza sua força adormecida: transformá-la plasticamente, construindo uma utopia, desabrochando na natureza a mesma plasticidade que se vê nos desenhos animados de Mickey, que Benjamin tanto admirava.

O trabalho, como a partir de então [1848] é compreendido, visa uma exploração da natureza, a qual é contraposta, com ingênua complacência, à exploração do proletariado. Comparadas a essa concepção positivista, as fantasias de um Fourier, tão ridicularizadas, revelam-se surpreendentemente razoáveis. Segundo Fourier, o trabalho social bem organizado teria entre seus efeitos que quatro luas iluminariam a noite, que o gelo se retiraria dos polos, que a água marinha deixaria de ser salgada e que os animais predatórios entrariam a serviço dos seres humanos. Essas fantasias ilustram um tipo de trabalho que, longe de explorar a natureza, é capaz de liberar as criações que dormitam, como possibilidades, em seu ventre. Ao conceito corrompido de trabalho corresponde, como seu complemento, aquela natureza que, segundo Dietzgen, “está aí, grátis” (Benjamin, 1985, p.228; tradução modificada).9

“Na mimese dormitam, dobradas estreitamente uma sobre a outra, como os cotilé-dones de um broto, os dois lados da arte: aparência e jogo [Schein und Spiel]” (1989a, p.368). No cinema - que desdobra de modo potencializado as energias da fotografia -, a “natureza ilusória é uma natureza de segundo grau” (1989a, p.373), obtida por meio do corte. A realidade livre dos aparelhos aparece agora apenas por meio do próprio aparelho. Por isso sua famosa - e mal compreendida - afirmação: “a visão da efetividade imediata tornou-se a flor azul no país da técnica” (1989a, p.373).

A flor azul é uma metáfora romântica para a totalidade, o absoluto como fusão com a natureza, fim da tristeza do estar no mundo. Novalis, no romance Heinrich von Ofterdingen - deixado em fragmentos, em razão de sua morte prematura, em 1801, com apenas 29 anos -, apresenta a imagem da flor azul (Blaue Blume) de modo extremamente significativo. Na cena inicial desse romance há uma espécie de devaneio que leva Heinrich ao mundo da flor azul. Nesse estado, ele pensa consigo: “o que despertou em mim uma ânsia inominável não são os tesouros; estou longe de toda cobiça: mas eu desejo vislumbrar a flor azul. Ela permanece o tempo todo em meu pensamento e eu não posso poetar ou pensar em outra coisa”. Nesse estado, o protagonista entra em um mundo onírico que o faz lembrar de um passado no qual “animais e árvores e rochas conversavam com os homens”.

Benjamin traduz esse sonho romântico para a era das imagens técnicas. Nela, a flor azul nasce do aparelho. Não há mais mimese da natureza como aparência, mas mimese como jogo: trata-se de um jogar junto com a natureza, atuar com ela. O bisturi, que Benjamin compara à câmera, penetra a realidade mais fundo do que a pintura, que ficava apenas no âmbito da (bela) aparência, como um curandeiro que não toca seus pacientes, mantendo a distância “aurática” Por outro lado, a segunda técnica traz-nos o real. Essa ideia de resto já se encontrava in nuce no mencionado ensaio de Baudelaire, que via criticamente na fotografia um meio de apropriação do real sem retoques. Benjamin aprofundou essa tese de modo positivo. Hoje, na era dos pixels e das imagens eletrônicas, vemos esse fenômeno da flor azul intensificar-se como fruto da técnica. O mundo, onde humanos e a natureza falam, pode ser visto no cinema de um modo bem distinto como aparecia no sonho de Heinrich von Ofterdingen. Resta também saber, como na época de Benjamin, que tipo de frutos teremos a partir dessas flores. Cabe a nós atuar no sentido de tornar esses frutos emancipadores e não fascistas.

 

Referências

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Correspondência:
Márcio Seligmann-Silva
Rua Sérgio Buarque de Holanda, 571
13083-859 Campinas, SP
m.seligmann@uol.com.br

Recebido em 27.4.12
Aceito em 22.5.12

 

 

1 Autora de La Photographie en France au dix-neuvième siècle. Essai de sociologie et d'esthétique (Freund, 1936).
2 Várias formulações de Moholy-Nagy antecipam teoremas de Benjamin, como o conceito de aura e o da fotografia como um revelador do Unheimlich (Moholy-Nagy, 1991, p.154-155).
3 Limito-me a indicar as páginas da edição alemã, uma vez que a edição de 2012, com tradução de Gabriel Valladão Silva e revisão técnica de minha autoria, da qual me sirvo ao citar aquele ensaio de 1936, ainda se encontra no prelo.
4 Benjamin alude a essa passagem em Sobre alguns temas em Baudelaire (1989, p.138).
5 Em “O autor como produtor”, Benjamin articula essa teoria positiva da legendagem a uma passagem do escritor à atividade de fotógrafo. A foto surge como meio de superação da divisão de trabalho da sociedade burguesa (Benjamin, 1985, p.129).
6 Benjamin conclui a primeira versão do ensaio sobre a obra de arte falando de uma técnica que cobra sacrifícios. “Essa guerra é uma revolta da técnica, que cobra em 'material humano' o que lhe foi negado pela sociedade” (1985, p.196). Também no ensaio sobre o livro Guerra e Guerreiros, de Ernst Jünger, ele tratou da técnica em uma chave negativa, mas o texto conclui falando da necessidade de uma transformação da técnica em “chave para a felicidade” (1985, p.72).
7 Vale lembrar que Benjamin desenvolvera essa dicotomia entre dois tipos de técnica, ainda que de modo não tão explícito e ainda tratando da técnica como uma segunda natureza, em seu último fragmento de Rua de mão única (“A caminho do planetário”) (1987, p.69). Cf. Também uma passagem semelhante sobre o caráter emancipado da técnica no comunismo (“Moscou”) (1987, p.187).
8 Nesse sentido, é fundamental ler um fragmento das notas de Benjamin para entender essa relação entre o jogo, a segunda técnica e a articulação com a teoria da experiência desenvolvida no ensaio sobre a narração, “O narrador”, de 1936, na mesma época de seu trabalho sobre a obra de arte: “a primeira técnica excluía a experiência do indivíduo. Toda experiência mágica da natureza era coletiva. A primeira abordagem de uma experiência individual aconteceu no jogo [Spiel]. Dela desenvolveu-se então a científica. As primeiras experiências científicas ocorrem sob a proteção do jogo descompromissado. Essa experiência é aquela que, em um processo que dura milênios, leva à desaparição da representação e talvez também da realidade daquela natureza que correspondia à primeira técnica” (1974, p.1048). Benjamin desenvolveu sua teoria e sociologia do jogo tanto nos fragmentos escritos no contexto do seu trabalho sobre as passagens de Paris como nos ensaios sobre Baudelaire, diretamente ligados a esses fragmentos, e nos textos sobre jogos infantis e o brincar. O jogo é visto tanto como uma contraparte do trabalho alienado como um meio de ir contra ele, uma vez que no jogo existe um deslocamento da esfera da produção para a lúdica - ainda que o “ganhar” seja o decisivo em ambas esferas. Em Parque central, Benjamin anotou: “os jogos de azar, o flanar, o colecionar -atividades que se contrapõem ao spleen” (1989, p.161).
9 Essa teoria da segunda técnica, ainda que sem a utilização desses termos, foi desenvolvida de modo cabal pelos últimos textos de Vilém Flusser, sobretudo em O universo das imagens técnicas (1985).

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