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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.46 no.2 São Paulo abr./jun. 2012

 

INTERCÂMBIO

 

Sobre três formas de pensar: o pensamento mágico, o pensamento onírico e o pensamento transformativo

 

On three ways of thought: magical thinking, dream-like thinking and transformative thinking

 

Sobre tres formas de pensar: el pensamiento mágico, el pensamiento onírico y el pensamiento transformador

 

 

Thomas H. OgdenI; Tradução de Alain François; Revisão de Susana Muszkat

ISupervisor e psicanalista no Psychoanalytic Institute of Northern California (Instituto Psicanalítico do Norte da Califórnia) e Docente no San Francisco Center for Psychoanalysis (Centro de Psicanálise de San Francisco)

Correspondência

 

 


RESUMO

O autor acredita que a ênfase da psicanálise contemporânea mudou da compreensão do significado simbólico dos sonhos, do brincar, e das associações para o estudo dos processos de pensar, sonhar e brincar. Este artigo comenta a sua concepção de três formas de pensar - o pensamento mágico, o pensamento onírico e o pensamento transformativo - e fornece ilustrações clínicas em que cada uma dessas formas de pensar manifesta-se claramente. O autor vê o pensamento mágico como uma forma de pensar que subverte o pensamento genuíno e o crescimento psicológico, pois substitui uma realidade externa perturbadora por uma realidade psíquica inventada. Em contrapartida, o pensamento onírico - a nossa forma de pensar mais profunda - consiste em ver uma experiência emocional a partir de múltiplas perspectivas ao mesmo tempo, como, por exemplo, a dos processos primário e secundário de pensamento. O pensamento transformativo, por sua vez, cria um novo modo de ordenar as experiências que permite gerar tipos de sentimentos, formas de relações de objeto, e qualidade de ser na vida antes inimagináveis.

Palavras-chave: formas de pensar, pensamento mágico, fantasia de onipotência, pensamento onírico, sonhar, pensamento transformativo.


ABSTRACT

The author believes that contemporary psychoanalysis has shifted its emphasis from the understanding of the symbolic meaning of dreams, play and associations, to the study of the processes of thinking, dreaming, and playing. In this paper, he discusses his understanding of threeforms of thinking - magical thinking, dream-like thinking, and transformative thinking - and provides clinical illustrations in which each of these figures clearly. The author views magical thinking as a form that subverts genuine thinking and psychological growth by substituting a disturbing external reality with an invented psychic reality. By contrast, dream-like thinking - our most profound form - involves viewing an emotional experience from multiple perspectives simultaneously: for example, the perspectives of primary process and secondary process thinking. Transformative thinking, alternatively, creates a new way of ordering experience that allows one to generate types of feeling, forms of object relation, and characteristics of life that had previously been unimaginable.

Keywords: forms of thought, magical thinking, omnipotence fantasy, dream-like thinking, dreaming, transformative thinking.


RESUMEN

El autor considera que el énfasis del psicoanálisis contemporáneo cambió de la comprensión del significado simbólico de los sueños, del juego, y de las asociaciones para el estudio de los procesos de pensar, soñar y jugar. Este artículo comenta su concepción de tres formas de pensar - el pensamiento mágico, el pensamiento onírico y el pensamiento transformador - y provee ilustraciones clínicas en las que cada una de esas formas de pensar surge claramente. El autor ve el pensamiento mágico como una forma de pensar que subvierte el pensamiento genuino y el crecimiento psicológico, pues sustituye una realidad externa perturbadora por una realidad psíquica inventada. Como contrapartida, el pensamiento onírico - nuestra forma de pensar más profunda - consiste en ver una experiencia emocional a partir de múltiples perspectivas al mismo tiempo, como, por ejemplo, la de los procesos primario y secundario del pensamiento. El pensamiento transformador, a su vez, crea un nuevo modo de ordenar las experiencias que permite generar tipos de sentimientos, formas de relaciones de objeto, y cualidades de vida antes inimaginables.

Palabras clave: formas de pensar, pensamiento mágico, fantasía de omnipotencia, pensamiento onírico, soñar, pensamiento transformador.


 

 

Em linhas gerais, a era atual da psicanálise pode ser vista como a do pensar o pensamento. Parece-me que muitas das questões mais interessantes e produtivas com que os analistas trabalham hoje em dia dizem menos respeito ao conteúdo simbólico dos sonhos, das associações, do brincar e de outros comportamentos, e mais ao tipo de trabalho psíquico que realizamos com as nossas experiências de vida. Em outras palavras, enquanto clínicos e teóricos analíticos concentramos cada vez mais nossa atenção sobre o modo de pensar das pessoas e menos sobre o que pensam. A meu ver, os principais responsáveis por esse movimento na psicanálise são Winnicott, que se interessou mais pela capacidade de brincar do que pelo conteúdo simbólico do brincar, e Bion, cujos escritos analisam o processo de sonhar/pensar muito mais amplamente do que os significados simbólicos dos sonhos e das associações.

Neste artigo vou mostrar algumas maneiras como essa mudança de ênfase do conteúdo simbólico para o processo do pensamento afetou o meu jeito de abordar o meu trabalho analítico.

Concebo que as três formas de pensar que vou examinar - o pensamento mágico, o pensamento onírico e o pensamento transformativo - convivem e, mutuamente, criam, preservam e negam aspectos de cada experiência de pensamento. Nenhuma delas jamais existe em estado puro.1 Também não há relação linear entre elas, nenhuma espécie de “progressão” do pensamento mágico para o pensamento onírico. Antes, vejo essas formas de pensar como atuando em tensão dialética, como a relação entre a mente consciente e a mente inconsciente; ou as posições esquizoparanoide, depressiva e autista-contígua (Klein, 1946/1975; Ogden, 1989); ou as partes psicóticas e não psicóticas da personalidade (Bion, 1957/1967); ou os grupos de pressupostos básicos e o grupo de trabalho (Bion, 1959); o continente e o contido (Bion, 1970/1977); os processos de pensamento primário e secundário (Freud, 1911) etc. Além do mais, nenhuma dessas formas de pensar é um modo de pensar único ou unitário; antes, cada “forma de pensar” representa um espectro relativamente amplo de modos de pensar. A variante particular da forma de pensar que um indivíduo pode usar evolui constantemente e depende do nível de maturidade psicológica, do contexto emocional intrapsíquico e interpessoal do momento, de fatores culturais etc.

As formas de pensar que vou focalizar não pretendem abranger o espectro completo dos modos de pensar. Não abordo, por exemplo, o pensamento operatório (de M'Uzan, 1984), o pensamento autista (Tustin, 1981), a forclusão psíquica (McDougall, 1984), nem a “fantasia no corpo” (Gaddini, 1969), só para mencionar alguns exemplos.

Para esclarecer a trajetória deste artigo, vou apresentar brevemente as três formas de pensar antes de aprofundar cada uma delas, clínica e teoricamente - segundo a tradição de Bion, quando falo de pensamento, sempre me refiro a pensamento e sentimento. Uso o termo pensamento mágico para designar o pensamento que se apoia numa fantasia de onipotência para criar uma realidade psíquica que o indivíduo vivencia como “mais real” do que a realidade externa - por exemplo, como pode ser observado no uso de defesas maníacas. Esse pensamento substitui a realidade externa atual por uma realidade inventada, mantendo assim a estrutura existente do mundo interno. Além do mais, subverte a oportunidade de aprender a partir das experiências de vida com objetos externos reais. O preço psicológico pago pelo indivíduo em razão da crença no pensamento mágico é prático: o pensamento mágico não funciona, pois nada pode ser construído sobre ele a não ser outras camadas de construções mágicas.

Emprego o termo pensamento onírico para me referir ao pensar que ocorre no processo de sonhar. É a nossa forma de pensar mais profunda, que atua tanto quando dormimos como quando estamos acordados. Embora seja essencialmente uma atividade mental inconsciente, age em conjunto com os pensamentos conscientes e preconscientes. No pensamento onírico, a pessoa vê a experiência e lhe dá sentido a partir de diferentes pontos de vista ao mesmo tempo, por exemplo, dos processos de pensamento primário e secundário, do continente e do contido, do self infantil e do self maduro etc. (Bion, 1962a/1977; Grotstein, 2009). O pensamento onírico gera um crescimento psicológico genuíno. Esse tipo de pensamento pode ser realizado individualmente, mas chega a um ponto em que inevitavelmente é preciso ter outrem para poder pensar/sonhar a própria experiência emocional mais profundamente perturbadora.

A terceira forma de pensar que vou comentar, o pensamento transformativo, é uma forma do pensamento onírico que envolve uma alteração radical dos termos, segundo os quais a pessoa ordena sua experiência: a pessoa transcende as categorias de significação, antes tomadas como as únicas possíveis, para organizar a própria experiência. No pensamento transformativo, o indivíduo cria novas maneiras de ordenar a experiência que geram não somente novas significações mas também novos tipos de sentimentos, novas formas de relações de objeto e novas qualidades de vida emocional e corporal. Essa mudança fundamental no modo de pensar e sentir é mais notável no trabalho com pacientes com transtornos graves, mas também pode surgir no trabalho com qualquer tipo de paciente.

Na discussão, vou apresentar exemplos clínicos que ilustram como o fato de conceituar formas de pensar, como as que descrevi, tem valor para mim quando falo comigo mesmo - e, às vezes, com o paciente -, a respeito do que acho estar ocorrendo na relação analítica e em outros setores da vida interna do paciente e da sua vida no mundo.

 

O pensamento mágico

Na esteira de Freud (1909, 1913), o pensamento onipotente tornou-se um conceito bem definido na teoria psicanalítica. Freud (1913) atribui a paternidade do termo onipotência do pensamento ao Homem dos Ratos (p. 85). A seguir, apresento algumas considerações que exprimem em parte minha percepção das diferenças entre o pensamento mágico e as duas outras formas de pensamento que abordo neste artigo.

O pensamento mágico tem apenas um objetivo: evadir-se do enfrentamento da verdade da própria experiência interna e externa. O método empregado para alcançar esse objetivo é o da criação de um estado mental no qual o individuo acredita criar a realidade na qual ele e os outros vivem. Nessas condições, a realidade psíquica oculta a realidade externa, a realidade não é a “da experiência, mas [a] do pensamento” (Freud, 1913, p. 86). Consequentemente, as surpresas emocionais e os encontros com o inesperado são, na medida do possível, recusados. No extremo, quando um indivíduo teme que a integridade do seu self esteja em perigo, pode se defender por meio de fantasias onipotentes que abrangem virtualmente tudo e que o desconectam da realidade externa a tal ponto que seu pensamento se torna delirante e/ou alucinatório. Nesse estado psicológico, ele torna-se incapaz de aprender a partir da própria experiência e de fazer a diferença entre estar acordado e estar dormindo (Bion, 1962a/1977), ou seja, sofre de psicose.

Na medida em que a realidade psíquica oculta a realidade externa, a capacidade do indivíduo de distinguir sonho e percepção, símbolo e simbolizado vai se degradando progressivamente. Disso resulta que a própria consciência (consciência de si) é comprometida ou perdida, o que, no enquadre analítico, leva a uma situação em que o paciente trata os seus pensamentos e sentimentos não como experiências subjetivas, mas como fatos.

O pensamento mágico está por trás de muitíssimas defesas psicológicas, estados de sentimento (feeling states) e formas de relações de objeto. Vou examinar brevemente três deles. A mania e a hipomania refletem a hegemonia de um conjunto de fantasias onipotentes: apoiado em defesas maníacas, o indivíduo sente que tem controle absoluto sobre o objeto que lhe falta, portanto, que não o perdeu, mas o rejeitou; não lastima, mas, antes, celebra a perda do objeto porque está melhor sem ele. Além do mais, essa perda deixa de ser perda, pois o objeto não tem valor e é desprezível. Os estados de sentimento associados a essas fantasias onipotentes são muito bem resumidos por Klein (1935/1968), como sentimentos de controle, desprezo e triunfo.

A identificação projetiva também se baseia na fantasia de onipotência: a crença inconsciente de que a pessoa pode se desprender de aspectos perigosos e ameaçados, ao cindi-los de si mesmo, e introduzi-los em outra pessoa, de tal modo que tomem controle desse outro, a partir de seu interior. (O ato de “conter” [Bion, 1970/1977; Ogden, 2004a] uma identificação projetiva faz com que o “receptor” transforme o pensamento mágico do “projetor” em pensamento onírico, pensamento esse que o projetor poderá então utilizar quando sonha/pensa a própria experiência).

Do mesmo modo, a inveja - que protege o indivíduo de sentimentos perturbadores, como o vazio abjeto e a desolação - envolve a fantasia de onipotência do indivíduo de que pode roubar de outra pessoa aquilo que lhe falta, além de poder estragar o que resta nela do que ele inveja.

Todas as qualidades do pensamento mágico que acabamos de ver refletem o uso da fantasia de onipotência para criar a ilusão - e, às vezes, o delírio - de que não se está sujeito às leis que se aplicam aos outros, o que inclui as leis da natureza, a inexorabilidade do tempo, o papel de acaso, a irreversibilidade da morte etc. Se uma pessoa dessas for cruel com alguém, acredita que pode literalmente “pegar de volta” - recriar a realidade, chamando isso de brincadeira, por exemplo, e que basta falar para que aconteça. Sente que as palavras têm o poder de substituir uma realidade que não é mais conveniente por outra recém-criada. De modo mais geral, acha que a história pode ser reescrita a seu bel-prazer.

O pensamento mágico é muito conveniente - basta dizer algo para não ter de enfrentar a verdade do que ocorreu, e muito menos tomar qualquer atitude. Contudo, por mais conveniente que seja, há uma desvantagem primordial: não “funciona” - nada pode ser construído sobre ou com ele, a não ser outras camadas de construções mágicas. Esse “pensamento” não tem força no mundo real, no que existe fora da mente da pessoa. Mais do que uma forma do pensamento genuíno, constitui um ataque tanto contra o reconhecimento da realidade quanto contra o próprio pensamento - ou seja, é uma forma de antipensamento. Substitui a realidade de fato por uma realidade inventada, fazendo assim desmoronar a diferença entre realidades interna e externa. A crença, por exemplo, de que se pode usar uma estratégia do tipo “perdoar e esquecer” indiscriminadamente nas experiências interpessoais acaba cegando ainda mais o indivíduo não apenas em relação à realidade da natureza do vínculo emocional que existe entre ele e os outros, mas também em relação a quem ele mesmo é. Torna-se cada vez mais uma ficção - uma invenção mágica da própria mente, uma construção dissociada da realidade externa.

Nada, nem ninguém, pode ser construído sobre ou com um pensamento mágico porque à “realidade” criada de modo onipotente falta a alteridade absoluta e imutável da realidade fatual externa. Ora, a experiência da alteridade da realidade externa é necessária para criar uma verdadeira experiência de si. Sem não eu não pode haver eu. Sem um outro diferenciado, a pessoa é todo mundo e ninguém.

Uma implicação dessa compreensão do papel central do reconhecimento da alteridade no desenvolvimento do self é a ideia de que, se é muito importante que o analista entenda o paciente, é igualmente importante que seja uma pessoa diferente do paciente. A última coisa de que qualquer paciente precisa é de uma segunda versão de si mesmo. Os aspectos solipsistas do pensamento de um paciente - a natureza autossustentada dos seus vínculos às suas crenças inconscientes - levam a uma limitação da habilidade do paciente de pensar e crescer psicologicamente. O paciente pede, inconscientemente, ao analista -mesmo quando alega explícita ou implicitamente não precisar dele - uma conversa com uma pessoa outra que não ele mesmo, uma pessoa assentada numa realidade que não foi criada pelo paciente (Fairbairn, 1944/1952; Ogden, 2010).

 

Uma paciente que era reduzida à onipotência2

Na entrevista inicial, para explicar porque havia me procurado, a Senhora Q declarou: “Tenho um talento incrível para estragar tudo: o meu casamento, as relações com os meus filhos e a maneira como faço meu trabalho”. Apesar da ironia proposital da afirmação, achei que estivesse mais se gabando do que admitindo seus fracassos ou pedindo ajuda. Senti que estava me avisando que não era uma pessoa comum - “tenho um talento incrível”.

Na primeira semana de uma análise com cinco sessões por semana, ocorreu algo bastante surpreendente. A Senhora Q deixou uma mensagem telefônica avisando que os seus horários de trabalho haviam mudado e que só conseguiria chegar para o horário seguinte, ou seja, com uma hora de atraso. O recado terminava assim: “se não me retornar, é que estamos combinados”. Não tive outra escolha a não ser chamá-la de volta. No meu recado, disse que a esperava na hora marcada, não depois. Se não tivesse feito isso, ela teria chegado na mesma hora que o meu paciente seguinte. Se nós três nos encontrássemos na sala de espera, teria ocorrido uma situação de intrusão para com o outro paciente e para comigo mesmo.

A Senhora Q chegou vinte minutos atrasada à sessão cujo horário queria mudar. Deu-me desculpas e explicações baratas. Disse-lhe: “Acho que não acredita que lhe reservei um lugar de verdade aqui e que, portanto, sente que precisa roubar um. Mas não penso que essas coisas possam ser roubadas”. Eu desconfiava seriamente que a ansiedade de não ter lugar próprio a acompanhava desde sempre, mas não disse isso a ela.

Ela respondeu que não pensava que as coisas fossem tão complicadas assim e passou a me falar dos acontecimentos no seu trabalho. Disse-lhe: “Acho que não terei um lugar aqui com a senhora a não ser que eu lute para tanto”. A paciente fez de conta que nada havia ouvido.

Falava da própria vida de modo bastante leviano. A respeito da sua “juventude”, disse que tivera uma “infância perfeitamente normal” e que seus pais, universitários de sucesso, eram “perfeitamente razoáveis”. “Não posso culpá-los por tudo”. Imaginava que a paciente estava certa, mas de um modo que ela estava longe de suspeitar. Isto é, ela fora uma criança “perfeitamente” comportada - obediente e temerosa de suas emoções -, e seus pais foram “perfeitamente razoáveis”, no sentido de que eram pouco dados a receber ou exprimir sentimentos. Essa inferência foi confirmada com o tempo, tanto na transferência/contratransfe-rência quanto nos relatos da paciente sobre a própria infância.

Os esforços da Senhora Q para me controlar e roubar a mim e a meus outros pacientes estavam estreitamente vinculados à sua crença de que eu tinha as respostas para os seus problemas - a incapacidade de ser mãe, esposa, amiga ou uma pessoa produtiva profissionalmente. A minha “teimosia” em não lhe dar soluções para os problemas desnorteava-a tanto quanto a enfurecia.

Com o tempo, comecei a perceber que, desde o início da análise, um aspecto estava se tornando cada vez menos disfarçado e mais provocador na minha relação com a paciente. Deturpava regularmente sentimentos e comportamentos assim como acontecimentos que ocorriam dentro ou fora do consultório. Isso era mais notável quando distorcia alguma coisa que ela ou eu havíamos dito durante a sessão em curso ou em uma sessão recente. Depois de quase dois anos sentindo-me controlado deste modo, disse: “Penso que, apresentando a mim e à senhora todas essas histórias que sabe serem falsas ou enganadoramente incompletas, garante que tudo o que eu diga ou pense não tenha interesse ou valor para a senhora. A realidade é apenas uma história que cria e recria como quer. Não há eu real ou você real que esteja fora do seu controle. Como pode criar qualquer realidade que lhe sirva, não precisa fazer realmente seja o que for para realizar as mudanças na sua vida que disse querer fazer”.

Enquanto dizia isso à Senhora Q, sentia-me bravo por ela estar solapando tanto a mim quanto ao trabalho analítico. Também tinha consciência de que, ao salientar que não aprovava o modo como ela se conduzia, eu a forçaria, provavelmente, a entrar em um estado ainda mais defensivo, o que, de fato, aconteceu. Entretanto, não era a minha raiva o que mais me perturbou nessa ocorrência, mas o fato de falar-lhe de um modo repreensivo, o que sentia como algo alheio a mim.

Durante algumas sessões posteriores, fechei os olhos por alguns minutos em minha poltrona, atrás do divã, como costumo fazer enquanto analiso pacientes. Depois de um momento, fiquei subitamente muito ansioso. Abri os olhos e durante alguns instantes não sabia mais onde estava, o que estava fazendo ou quem estava comigo, se é que havia alguém. Meu desnorteamento não passou nem quando vi que havia alguém no divã. Levei mais uns segundos para deduzir onde estava, quem era a pessoa no divã e o que eu estava fazendo ali - ou seja, quem eu era. Minutos depois, esse pensamento dedutivo foi seguido de um sentido mais sólido de mim mesmo como pessoa e analista da Senhora Q.

Com o tempo, essa experiência inquietante levou-me a tomar consciência do meu próprio medo de me perder na experiência psicológica e interpessoal em que a Senhora Q reinventava continuamente não apenas a realidade, mas também a ela mesma e a mim. Pareceu-me que ela estava mostrando o que não conseguia me dizer - ou dizer a si - ou seja, qual era a sensação de se inventar e reinventar e de ser inventada e reinventada por outra pessoa. Isto me lembrou a exigência dos pais da Senhora Q, bem como os próprios esforços para ser “uma criança perfeita”, que não exige nada, emocionalmente, dos pais, ou seja uma criança que não é uma criança.

Disse à Senhora Q: “Creio que as suas distorções da realidade e particularmente as invenções a seu e a meu respeito são esforços para me mostrar o que não consegue me transmitir em palavras. Parece-me que, quando criança, a senhora sentiu que era a invenção da mente de outra pessoa e que continua se sentindo assim. Acredito que tem tido medo de dizer a verdade a mim ou a si mesma porque isso ameaçaria o pouco de si mesma que sente como real. Dizer-me a verdade seria como abrir-se para que eu pudesse tomar o que sente ser e haver de mais real dentro da senhora e substituísse-o com a minha própria versão da senhora”. A Senhora Q não descartou com uma tirada sardônica ou rejeição desdenhosa como costumava fazer. Antes, ficou quieta durante uns poucos minutos que faltavam para o fim da sessão.

Na sessão do dia seguinte, a Senhora Q contou-me um sonho: “Estava jogando tênis -na realidade não sei jogar tênis - e a bola rolou até um canto bem longe do complexo de quadras onde estávamos jogando. Naquele canto havia um recipiente cheio de bolas novinhas, mas não havia como eu levar mais do que uma ou duas. Não consigo lembrar o que ocorreu depois. De manhã, quando acordei, estava me sentindo bem - nem ótima, nem péssima”.

“Ao me contar esse sonho”, disse-lhe eu, “começou dizendo a mim e a si mesma que, no sonho, estava jogando tênis, mas que na realidade não sabe jogar. Pareceu-lhe importante que ambos saibamos o que é real e o que não é. A bola rolou até um canto afastado onde havia um recipiente cheio de bolas novas - parecia um tesouro atraente, mas podia levar apenas uma ou duas. No entanto, as bolas de tênis que a senhora tinha já bastavam. Quando acordou, não se sentiu como quem perdeu um tesouro, nem como uma ladra, como costumava ocorrer antes. A senhora se sentiu bem”.

“Verdade, não me importei mesmo por não poder levar todas as bolas. Não queria, não precisava delas. Encontrar as bolas não foi como descobrir um tesouro, apenas me pareceu estranho. Quando pequena, ainda no colégio... roubei de uma loja coisas que não queria; assim que saí joguei-as fora. Sinto nojo quando lembro disso. Mesmo sem querer aquelas coisas, não consegui resistir”.

Durante o ano seguinte a essa sessão, a Senhora Q inventou muito menos a própria realidade. Às vezes, quando começava a distorcê-la, parava e dizia: “Não adianta eu continuar falando porque eu estou deixando de lado uma parte importante do que aconteceu por vergonha de lhe dizer”.

Nos trechos que comentei, a paciente estava profundamente arraigada no pensamento mágico que a levava a um esforço de inventar (e destruir) realidades dela mesma e minhas. Para ela, a alternativa de inventar realidade não era apenas uma experiência de desamparo, mas um sentimento de perda de si mesma, um sentimento de que ela estava sendo roubada por alguém. Além do mais, sentia vergonha porque não era capaz de se agarrar a um sentido de si mesma que pudesse perceber como real e verdadeiro.

As distorções da realidade da paciente - a criação mágica da própria realidade -irritaram-me, uma vez que contribuíam para o que parecia um roubo da significação do diálogo analítico e um roubo do meu sentido de self. No começo, eu disse à paciente que seu pensamento mágico era excessivamente acusador e, consequentemente, inútil para ela. Contudo, útil para mim, uma vez que me alertou para o fato de que ela não me reconhecia na maneira como havia falado. Essa compreensão, por sua vez, criou um espaço psicológico em que foi gerada uma experiência de reverie - por ela e por mim mesmo -, mediante a qual vivenciei um sentimento assustador de que não sabia mais quem era eu, onde estava ou quem estava comigo.

O fato de falar com a Senhora Q sobre o que acreditava ser os seus sentimentos de perder-se em suas infinitas reinvenções da realidade ofereceu-nos um contexto emocional -modo continente de pensar - que permitiu a ela e a mim sonhar com uma experiência de ela ser ela mesma no mundo sem necessidade de magia. Tanto no sonho quanto nas conversas comigo sobre as bolas de tênis, a paciente foi capaz de se aceitar tal como era. A realidade não era uma ameaça; serviu de alteridade fundadora. Minha alteridade e a da realidade externa tornaram-se mais imediatamente presentes quando lhe “recontei” o sonho com as bolas de tênis de outra maneira que a dela. Ao me ouvir contar o sonho, acredito, a Senhora Q viu algo como ela mesma - ela mesma a uma distância considerável - no “meu sonho”. Serviu-se da realidade externa - da alteridade - da minha versão do sonho de modo autodefinidor, como revelou ao corrigir tranquilamente a minha versão do sonho quando percebia não se reconhecer nele. Por exemplo, disse que encontrar todas essas bolas de tênis “não era como descobrir um tesouro”; antes achou “estranho” - isto é, alheio à pessoa que ela estava se tornando.

Embora esta seção do artigo tenha enfocado o pensamento mágico, o trabalho de vir a compreender algo sobre o que estava ocorrendo na relação analítica envolveu muito pensamento onírico da paciente e meu. Na próxima seção do texto vou descrever esse aspecto da análise. (Como disse acima, os pensamentos de uma pessoa sempre envolvem todo o espectro das formas de pensar. O que varia é a proeminência de uma forma, ou a combinação de várias delas, num dado momento.)

 

O pensamento onírico

O pensamento onírico é o trabalho psicológico predominantemente inconsciente que realizamos durante o sonho. Sonhamos continuadamente, estejamos acordados ou dormindo (Bion, 1962a/1977). Assim como a luz das estrelas é ofuscada pelo brilho do sol durante o dia, o sonho continua enquanto estamos acordados, embora esteja obscurecido pelo brilho da vida da vigília. O pensamento onírico é a nossa forma de pensar mais abrangente, penetrante e criativa. Somos insaciáveis em nossa necessidade de sonhar nossas experiências de vida, de esforçar-nos para criar significações psicológicas pessoais - organizadas e representadas em forma de imagens visuais, símbolos verbais, impressões cinestésicas organizadas etc. (Barros & Barros, 2008).

No pensamento onírico, enxergamos nossas experiências de vida sob muitos pontos de vista ao mesmo tempo, o que nos permite adentrar um conjunto rico e não linear de conversas inconscientes com nós mesmos sobre essas experiências. Entre esses pontos de vista estão as perspectivas dos processos de pensamento primário e secundário; do continente e do contido; das posições esquizo-paranoide, a depressiva e a autista contígua (Ogden, 1989); do self maduro e do self infantil; do mágico e do real; das partes “psicóticas” e “não psicóticas” da personalidade (Bion, 1957/1967); de conseguir saber o que está sendo vivenciado - o “K” de Bion (1970/1977) - e de torná-lo verdade (“O”); do “projetor” e do “receptor” da identificação projetiva etc. As “conversas” não lineares e em camadas que constituem o pensamento onírico ocorrem entre aspectos inconscientes da personalidade, o que Grotstein (2000) chamou de “o sonhador que sonha o sonho” e “o sonhador que entende o sonho”, e Sandler (1976), de “o trabalho do sonho” e “o trabalho de compreensão”. Esse pensamento resultaria numa confusão maciça se ocorresse conscientemente enquanto estamos cuidando das tarefas da vida de vigília.

A riqueza da experiência onírica e do pensamento onírico foi capturada por Pontalis (2003) quando descreve o acordar do sono:

Devo me separar brutalmente do mundo noturno, desse mundo onde senti e vivenciei mais incidentes do que em qualquer outro lugar, onde fui extraordinariamente ativo, onde estive mais acordado do que se pode estar no chamado “estado de vigília” (p. 15). Os sonhos pensam e pensam por mim... Ao acordarmos, gostaríamos de resgatar as imagens comoventes, belas, inquietantes que nos visitaram de noite, mas já estão desvanecendo. [...] Contudo, pressentimos também que o que estamos perdendo então é muito mais do que imagens, é um regime inteiro do pensamento, de um pensamento que, incessantemente, de sequência em sequência, progride. (p. 18). O sonho - e, acrescentaria eu, o pensamento onírico - se desdobram em todas as direções (p. 50), ... não conscientes do seu destino,. levados unicamente pelo poder do seu movimento (p. 19).

Como visto, o problema com o pensamento mágico é que ele não funciona: substitui a realidade de quem o indivíduo é e as circunstâncias emocionais em que ele está vivendo por uma realidade inventada. Em consequência, nada de substancial muda na pessoa. A força do pensamento onírico reside no fato de que ele funciona mesmo: permite um crescimento psicológico que se reflete, por exemplo, na maneira como um indivíduo, consciente e inconscientemente, vai mudando sua maneira de se relacionar com os outros e com o verdadeiro mundo externo. Nesse sentido, vejo o pragmatismo como um meio essencial de apreciar o valor de qualquer aspecto dos funcionamentos da mente - o que também vale para os funcionamentos do corpo. A propósito de qualquer forma de pensar, uma questão sempre fundamental é: funciona? Ela contribui para desenvolver um sentido de pessoa consciente de si, criativa, emocionalmente viva, fundamentado na realidade tanto de si mesma quanto do mundo externo?

Desde a prima infância e durante a vida toda, o indivíduo é limitado, em grau variável, na sua capacidade de sujeitar a própria vivência ao pensamento onírico, ou seja, de realizar um trabalho psicológico inconsciente durante os sonhos. Quando alcança os limites da própria habilidade de sonhar suas experiências perturbadoras, precisa que outra pessoa o ajude a sonhar seus sonhos não sonhados (Ogden, 2004b, 2005). Em outras palavras, é preciso ter (pelo menos) duas pessoas para que alguém possa sonhar suas experiências mais perturbadoras.

Numa fase precoce da vida, o fenômeno psicológico e interpessoal que estou descrevendo consiste na mãe e na criança pequena sonhando juntas a experiência perturbadora desta criança (bem como a resposta emocional da mãe ao desamparo dessa criança). A mãe, em estado de reverie, aceita os pensamentos impensáveis e os sentimentos insuportáveis da criança - que são inseparáveis da sua resposta ao desamparo dessa criança (Bion, 1962a/1977, 1962b/1967; Ogden, 1997a, 1997b). Desse modo, a mãe, que entra numa subjetividade cocriada com a criança - a “preocupação materna primária” de Winnicott (1956/1975); a versão intrapsíquica e interpessoal da identificação projetiva de Bion (1962a/1977) e Rosenfeld (1987); o “campo bipessoal” de Ferro (1999); ou o que chamo de “terceiro intersubjetivo” (Ogden, 1994a, 1994b), - pensa sobre a experiência impensável da criança, sobre a sua personalidade maior e a sua maior capacidade de sonhar. Nisso, ela e o filho sonham juntos algo parecido com a experiência perturbadora da criança. A mãe comunica-lhe a própria experiência antes não sonhável/impensável sob uma forma que a torna, agora, mais capaz de ser sonhada sozinha. Um processo intersubjetivo semelhante ocorre na relação analítica e em outras relações íntimas, como entre pais e filhos, no casamento, nas amizades íntimas e no relacionamento entre irmãos.

Quando digo que é preciso ter (pelo menos) duas pessoas para pensar a experiência emocional mais perturbadora de alguém, não significa que os indivíduos sejam incapazes de pensar sozinhos, mas que chegam inevitavelmente a um limite que o seu pensar/sonhar não pode ultrapassar. Nessa altura, ou desenvolvem uma sintomatologia, num esforço - geralmente fútil - de ter algum controle sobre as próprias dificuldades psicológicas - o que não significa resolvê-las -, ou então arrolam outra pessoa para ajudá-los a sonhar a própria experiência. Como disse Bion (1987), “a unidade humana é um par; são necessários dois seres humanos para fazer um” (p. 222).

Não nos esqueçamos de que nem todas as formas de atividade mental que se parecem com sonhos - como, por exemplo, as imagens visuais e as narrativas experimentadas no sono - merecem o nome de sonhos. Os pesadelos pós-traumáticos que se repetem noite após noite não realizam praticamente nenhum trabalho psicológico inconsciente e, consequentemente, não constituem um verdadeiro sonhar (Bion, 1987). Em outras palavras, tais “sonhos” não são sonhos, uma vez que não mudam psiquicamente o sonhador. De novo, a medida para avaliar se um sonho é um sonho é a de se ele “funciona”, ou seja, se ele permite uma mudança e um crescimento psicológicos reais.

 

O ordinário resgatado do mágico

Como mencionei em relação ao meu trabalho com a Senhora Q, ocorreu pensamento onírico em vários pontos críticos da análise. Quero me deter num exemplo: o uso que fiz da experiência de reverie que ocorreu durante uma sessão em que, de olhos fechados, escutava a paciente. Nesse estado de reverie, num sentido importante, estava sonhando junto com a Senhora Q uma experiência que ela fora incapaz de sonhar sozinha - e muito menos de traduzir em palavras para si mesma ou para mim. A reverie em si era uma forma de sonho acordado em que não apenas vivi a experiência, mas - mesmo quando estava sob o efeito dele - pude formular perguntas a respeito da essência da situação emocional: onde estou? quem sou eu? com quem estou?

Ao “acordar” da reverie, consegui me envolver em aspectos mais conscientes do pensamento onírico. Eles abarcavam minha concepção da experiência de ter me perdido momentaneamente como versão inconscientemente cocriada da experiência da Senhora Q de perder-se em consequência do uso que faz da fantasia de onipotência para inventar e reinventar a si mesma e a mim.

O pensamento que acabo de descrever pressupõe apreender e traduzir em palavras múltiplos níveis de significação que estavam vivos na experiência emocional. Tratei minha experiência de reverie tanto como uma experiência de ter cocriado um sonho com a Senhora Q quanto como uma experiência cujas significações pessoais são únicas para cada um de nós. Minha experiência de reverie levou-me a perder brevemente contato com o sentido de quem eu era, ao passo que a experiência de perder-se da Senhora Q sempre a acompanhou e, às vezes, era quase delirante.

Vejo o pensamento onírico como uma forma de pensar fundamentalmente inconsciente, embora opere em conjunto com os pensamentos preconscientes e conscientes. A cocriação da experiência de reverie, em si, foi, principalmente, um fenômeno inconsciente, que gerou imagens preconscientes e conscientes - como os sonhos de que nos lembramos depois de acordar. Ao relacionar minha experiência de reverie à experiência de si mesma da Senhora Q, estava principalmente envolvido em um processo de pensamento secundário consciente, se bem que esse tipo de pensamento teria sido, acredito, obsoleto e vazio, se eu não estivesse falando a partir da minha experiência como participante da reverie.

Uma medida importante para saber se o pensamento da Senhora Q e o meu foram mesmo um pensamento onírico é avaliar se ele facilitou o trabalho de ajudar a paciente a se tornar mais viva e responsiva à sua experiência no mundo real, mais capaz de se aceitar como é e de pensar e falar a respeito da sua experiência consigo mesma e comigo. Parece-me que o uso da minha experiência de reverie para falar com a Senhora Q a respeito da sua experiência de perder-se refletia uma mudança psicológica em mim, ou seja, na minha própria capacidade aumentada de conter a experiência impensável/não sonhável da paciente - em vez de evacuá-la, por exemplo, numa forma de intervenção castigadora. O fato de eu falar com a Senhora Q a respeito da sua experiência de perder-se contribuiu, creio eu, para que ela tivesse o sonho com as bolas de tênis, no qual teve pouco interesse ou uso para o pensamento mágico. O crescimento psicológico dela refletiu-se na capacidade de ter esse sonho e na melhora da sua capacidade de falar e pensar comigo - e consigo mesma - a respeito dele.

O tipo de pensamento onírico que descrevi compreende uma forma de autorrefle-xão em que relacionei minha própria experiência à minha concepção da experiência da paciente, ou seja, usei minha experiência de me perder para fazer uma inferência a respeito da experiência de perder-se da paciente. A categoria de significação - a experiência de se perder- permaneceu relativamente constante. Na próxima seção, vamos examinar o pensamento onírico que envolve, por vezes, uma mudança radical na estrutura do pensamento do paciente e do analista. Essa forma de pensamento onírico, que chamo de pensamento transformativo, pode precipitar o que Bion (1970/1977) chamou de “mudança catastrófica” (p. 106), uma mudança em nada menos do que em tudo.

 

O pensamento transformativo

A ideia de pensamento transformativo ocorreu-me em resposta a um trecho da tradução do Rei James do Evangelho segundo São João comentado num ensaio de Seamus Heaney (1986/1988). Vou tratar a escrita desse trecho como um texto literário, não como um texto religioso e, desse modo, vou considerar as figuras e os acontecimentos descritos na história não como expressões com significado teológico, mas como expressões de verdades emocionais a que é possível chegar mediante uma forma particular de pensamento. Como o pensamento está na escrita, vou citar o trecho inteiro:

Os escribas e fariseus trouxeram até Ele uma mulher surpreendida em adultério. Forçaram-na a ficar em pé no meio de todos e disseram a Ele: “Mestre, esta mulher foi apanhada em flagrante ato de adultério. Assim sendo, Moisés, na Lei, nos mandou que tais mulheres sejam apedrejadas. Todavia, tu, que dizes a este respeito?” Eles falavam assim para prová-lo e terem alguma coisa de que acusá-lo. Mas Jesus, inclinando-se, escrevia na terra, com o dedo, como se não tivesse ouvido. Porque insistiram na pergunta, Ele se levantou e lhes disse: “Aquele que dentre vós estiver sem pecado seja o primeiro a lhe atirar uma pedra”. E novamente inclinou-se e escrevia na terra. Então, aqueles que ouviram isso, sendo condenados por sua consciência, foram se retirando um por um, começando pelos mais velhos até o último. Jesus foi deixado só, e a mulher ficou de pé onde estava. Quando Jesus se ergueu, não vendo a ninguém mais além da mulher, disse a ela: “Mulher, onde estão aqueles teus acusadores? Ninguém te condenou?”. Disse ela: “Ninguém, Senhor!”. E assim lhe disse Jesus: “Nem Eu te condeno. Podes ir e não peques mais” (Evangelho segundo São João, 8:3-11).

Nessa história, Jesus é posto frente a uma situação em que uma mulher foi apanhada “em flagrante ato” de adultério. Perguntam-lhe se vai obedecer à lei - que exige que a mulher seja apedrejada - ou infringi-la - acabar com o apedrejamento que está por acontecer.

Em vez de responder à pergunta, Jesus, “inclinando-se, escrevia na terra, com o dedo, como se não tivesse ouvido”. Não aceitando os termos tais como lhe foram apresentados -vai obedecer ou violar a lei? -, Jesus abriu um espaço psicológico para poder pensar no ato de escrever. O leitor não fica sabendo o que escreveu. A escrita de Jesus no chão quebra o poderoso movimento para frente rumo à ação e, ao fazer isso, cria um espaço para o pensamento tanto das personagens da história quanto do leitor/ouvinte.

Quando se ergue, Jesus não responde à pergunta. Diz algo totalmente inesperado, com as palavras mais simples - uma frase em que apenas duas das quinze palavras não são monossilábicas: “he that is without sin among you, let him first cast a stone at her” (“Aquele que dentre vós estiver sem pecado seja o primeiro a lhe atirar uma pedra”). Jesus ignora a pergunta de saber se vai ou não obedecer à lei. Antes, responde com outra pergunta altamente enigmática: como lidar com a própria experiência de ser humano, que inclui os próprios atos pecaminosos cometidos, quando se trata de avaliar o comportamento de outra pessoa? Além do mais, o trecho coloca a questão de saber se qualquer pessoa tem o direito de se erigir em juiz de outrem. No fim do trecho, o próprio Cristo renuncia a qualquer intenção de se erigir em juiz da mulher: “nem Eu te condeno”.

As palavras finais do trecho, “podes ir e não peques mais”, são ternas, embora, ao mesmo tempo, exijam uma autocrítica honesta. A linguagem em si foi alterada: a significação da palavra pecado transformou-se radicalmente ao longo da história, mas em quê? Em relação a que ordem moral o pecado deve ser definido? A mulher estará livre para cometer adultério se a sua moralidade não o vir como pecado? Todos os sistemas de moralidade são iguais em sua capacidade de prescrever, proscrever e avaliar como os seres humanos se conduzem em relação a si mesmos e aos outros?

Ao comentar esse trecho de literatura, meu objetivo é apenas o de transmitir o que o pensamento transformativo significa para mim. É uma forma de pensamento onírico que envolve o reconhecimento das limitações das categorias de significação consideradas, até então, como as únicas - por exemplo, obedecer ou não à lei - e, em seu lugar, criar categorias fundamentalmente novas - um modo radicalmente diferente de ordenar a experiência -, antes inimagináveis.

A história bíblica que acabei de comentar constitui uma das mais importantes narrativas - e um dos mais importantes exemplos de pensamento transformativo - desses últimos dois mil anos. Sem dúvida teria sido esquecida há muito se tivesse sido menos enigmática, menos irredutível a outros termos - como os princípios de um novo conjunto de leis seculares ou religiosas que devem ser obedecidas ou desobedecidas -, ou mesmo a princípios abstratos tais que: ninguém tem o direito de julgar o outro. Se a história tivesse meramente substituído uma escolha binária por outra, ou introduzido uma nova prescrição, o pensamento alcançado na escrita não teria nada de transformador e, especulo, não teria sobrevivido como narrativa fundamental da cultura ocidental. Como um poema, a história não pode ser parafraseada, nem se pode garimpá-la em busca de significados fixos.

Como psicanalistas, pedimos a nós mesmos e a nossos pacientes nada menos do que pensamentos transformativos, mesmo reconhecendo quão difícil é consegui-los. Nosso trabalho teórico e clínico torna-se estagnado, caso nunca os alcancemos. É essa luta por pensamentos transformativos que faz da psicanálise uma atividade subversiva, uma atividade que solapa inerentemente a gestalt - os termos silenciosos, que se autodefinem - das culturas sociais, interpessoais e intrapsíquicas em que paciente e analista vivem.

Cada um dos maiores teóricos analíticos do século XX introduziu a própria concepção de transformação - a mudança na maneira como pensamos e sentimos o fato de estarmos vivos -, que seja a mais central para o crescimento psicológico. Para Freud (1900, 1909), significava tornar o inconsciente consciente, e nos seus trabalhos ulteriores (1923, 1926, 1933), fazer-se mover a estrutura psíquica do id para o eu (“Onde era o Id, o Eu deve advir”, 1933, p. 80). Para Klein (1948/1975, 1952/1975), a transformação central é o movimento da posição esquizoparanoide para a depressiva; para Bion (1962a/1977), é um movimento de uma mentalidade baseada na evacuação de uma experiência emocional perturbadora, não mentalizada, para uma mentalidade que tenta sonhar/pensar a própria experiência, e mais tarde (Bion, 1965/1977, 1970/1977), um movimento que vai de conseguir conhecer a realidade da própria experiência (K) a se tornar a verdade da própria experiência (O). Para Fairbairn (1944/1952), a transformação terapêutica compreende um movimento da vida vivida em relação a objetos internos para a vida vivida em relação a objetos externos reais. Para Winnicott (1971), o que é crucial para a saúde psicológica é a transformação psíquica em que a pessoa passa de um fantasiar inconsciente a uma capacidade de viver de forma imaginativa num espaço intermediário entre realidade e fantasia.

Nesta seção do artigo não busco enfocar a validade ou utilidade clínica de cada uma dessas concepções da transformação psíquica, mas a natureza do pensar/sonhar intrapsí-quico e intersubjetivo que medeia essas transformações. Como veremos com a próxima ilustração clínica, alcançar o pensamento transformativo raramente é uma experiência de avanço súbito, um fenômeno do tipo “eureca”. Na minha experiência anterior e na maioria das vezes, é o resultado de anos de trabalho analítico lento e meticuloso, que compreende ampliar a capacidade do par analítico para sonhar aspectos da experiência antes não sonhá-vel do paciente.

O pensamento transformativo - o pensamento que altera radicalmente os termos segundo os quais alguém ordena a própria experiência - está bem próximo a uma extremidade de um espectro de graus de pensamentos geradores de mudanças - pensamento onírico. O exemplo clínico seguinte provém de um trabalho com uma paciente que vivenciou pensamentos psicóticos exuberantes, tanto antes quanto durante a análise. Escolhi trechos desse caso porque o pensamento transformativo exigido tanto da paciente quanto de mim é mais clara e notavelmente aparente do que na maior parte do meu trabalho com pacientes mais saudáveis. Nem por isso podemos esquecer que o pensamento transformativo é um aspecto de todos os pensamentos. Como tal é uma dimensão do meu trabalho com todo tipo de pacientes.

 

Uma mulher que não era ela mesma

A Senhora R sentou-se rigidamente na sua cadeira e evitou todo contato visual durante a primeira sessão. Estava bem vestida, se bem que de uma maneira artificial, apesar da perfeição. Começou dizendo: “Estou desperdiçando o seu tempo. Não creio que o que há de errado comigo possa mudar. Não sou uma pessoa que deveria estar no consultório de um analista”. Respondi-lhe: “A primeira coisa que quer que eu saiba a seu respeito é que este não é o lugar para você. Penso que, sem dúvida, está me avisando que ambos vamos nos arrepender por ter entrado em contato um com o outro”.

“Exato”, ela respondeu. Depois mais ou menos de um minuto acrescentou: “Devo lhe dizer algo a meu respeito”. “Se quiser, pode, mas, a seu modo, já está me dizendo muito sobre quem sente ser e o que mais a assusta”.

Por falta de espaço, não vou entrar em detalhes dos primeiros anos de análise. Resumidamente, a Senhora R falava com muita vergonha e constrangimento sobre o quanto se sentia repulsiva e preparava-se continuadamente para que eu lhe mandasse embora. À medida que falávamos desses sentimentos, ganhava a confiança dela. Na sua simplicidade, revelou-se uma pessoa altamente inteligente, articulada e agradável.

Depois de quase três anos de análise com cinco sessões por semana, a Senhora R disse: “Tenho medo de lhe dizer algo, pois poderia me dizer que estou doente demais para seguir uma análise. Mas o senhor não vai conseguir me ajudar se não souber isso sobre mim, por isso vou lhe contar”. Hesitantemente, a Senhora R prosseguiu dizendo que, quando tinha trinta anos, havia tido “um colapso nervoso” durante uma viagem à Europa. Ficou hospitalizada por um mês e nessa ocasião teve uma alucinação que durou vários dias. “Nela, um barbante saía de minha boca. Para mim, é muito difícil falar disso porque estou com medo de ser enredada por ela novamente. Estava aterrorizada e ficava puxando o barbante, que era infinito, de dentro de mim. Enquanto puxava, descobri que meus órgãos internos estavam presos nele. Sabia que se não tirasse o barbante de dentro de mim morreria; mas também sabia que se puxasse mais o barbante seria o meu fim; não poderia viver sem minhas entranhas”. A Senhora R disse que se sentira insuportavelmente solitária durante a hospitalização e que era tomada por pensamentos suicidas.

Conversamos longamente sobre esse período, do nível experiencial da alucinação e do seu medo de que a alucinação me assustasse, me alienasse e, de novo, a prendesse na armadilha. Limitava-me a traduzir o que ela estava dizendo com minhas palavras para que soubesse que agora não estava sozinha como antes. A alucinação me parecia um evento importante demais para correr o risco de encerrá-la em compreensões prematuras.

A Senhora R também sentiu que eu deveria saber mais sobre sua infância para poder ajudá-la. “Sei que tenho sido muito vaga em falar a respeito da minha infância e dos meus pais. Tenho certeza de que percebeu, mas eu não conseguia fazê-lo; pensar nisso faz com que me sinta fisicamente doente. Outra coisa em que não quero ficar presa...”.

A Senhora R contou que, quando criança, “adorava” a mãe: “Tinha uma beleza deslumbrante, era extraordinariamente inteligente, mas eu tinha medo dela porque a idolatrava. Estudava o seu jeito de andar, como mexia a cabeça e como falava com amigos, com o carteiro, com a empregada. Queria desesperadamente ser como ela, mas nunca cheguei a seus pés. Eu percebia que ela achava que eu ficava muito aquém mesmo. Nem precisava falar nada, a frieza do seu olhar e do seu tom de voz deixavam isso bem claro”.

O pai da Senhora R mergulhava de cabeça nos negócios da família e pouco ficava em casa. Certa noite, deitada, tentava não dormir para poder ouvir a voz do pai e os barulhos que fazia quando chegava. Não ousava levantar-se de medo de desagradar à mãe, porque, como dizia ela, vai “cansar o pai depois de uma longa jornada de trabalho”. Gradualmente, à medida que crescia, a paciente foi entendendo que a mãe não tolerava compartilhar a atenção do pai. Desde criança achava que ambos haviam acordado tacitamente que ele poderia passar o tempo que quisesse no trabalho e, em troca, ela cuidaria da casa e da família como bem entendesse.

A essa altura do trabalho analítico, o sentimento visceral de desgosto de si mesma como pessoa e do próprio corpo - particularmente das suas “excreções femininas” -, que a acompanhara a vida toda tornou-se muito intenso. Na medida do possível, a Senhora R evitava chegar perto de outras pessoas, temendo que o seu odor as repelisse. Estar no meu consultório comigo era-lhe quase insuportável. Enquanto falava do “corpo repulsivo” durante uma das sessões, minha mente divagou e lembrei-me de um livro que estava lendo, em que o narrador comentava o cheiro que grudava em seu corpo e no corpo dos outros prisioneiros no campo de concentração onde ele havia passado mais de um ano. Naquele momento da sessão pensei que não ser maculado pelo odor teria sido muito pior, uma vez que significaria fazer parte dos perpetradores de atrocidades impensáveis. Por mais que o terrível odor pudesse obliterar a identidade do prisioneiro, deixava claro, pelo menos, que ele não era um “deles”.

À medida que conseguia falar comigo da sua repugnância por si mesma e por seu corpo, a Senhora R acabou reconhecendo gradualmente a profundidade e a gravidade do “desgosto” da sua mãe para com ela. “Era como se ser criança fosse uma patologia da qual tentava me curar. Apenas hoje percebo a loucura que foi ela querer me ensinar como ser 'uma moça de cultura'. Consegui até me convencer de que era o que as mães faziam. Livrei-me sozinha do sotaque [regional] das outras crianças”.

Quando, com doze anos, a paciente começou a menstruar, a mãe deixou uma caixa de absorventes e uma carta detalhada explicando “como se manter limpa”. Não trocaram nenhuma palavra sobre o assunto. Entretanto, a mãe tornou-se significativamente mais fria e desaprovadora com ela depois que a paciente entrou na puberdade.

Depois de mais alguns anos de um trabalho considerável, por parte da paciente, com as compreensões mencionadas, ela começou a sentir uma dor abdominal do lado esquerdo, que para ela era um sintoma de câncer. Os exames médicos abrangentes não acusaram uma fonte fisiológica para a dor, o que levou a paciente a ficar extremamente desamparada: “Não acredito neles nem nos seus testes. Não são médicos de verdade: são pesquisadores, não médicos”. Pela primeira vez soluçou convulsivamente.

Minutos depois eu disse: “É aterrador sentir que os médicos não são médicos de verdade. A senhora pôs a própria vida nas mãos deles. Mas não é uma experiência nova para a senhora. Acho que sentiu que a sua mãe não era uma mãe de verdade, embora sua vida estivesse totalmente nas mãos dela. Assim como se sentiu cobaia na suposta pesquisa dos médicos, penso que se sentiu uma mera personagem na louca vida interna da sua mãe”.3

A Senhora R me escutou atentamente, mas não respondeu ao meu comentário com palavras. Parou de soluçar e sua tensão havia diminuído visivelmente.

Tanto dentro quanto fora da análise, os meses seguintes da vida da Senhora R foram profundamente atormentados. Voltou a se preocupar com a alucinação do barbante. Disse que continuava sentindo a sensação física de ter a mãe, que, dentro de si, confundia-se com o barbante, embora a experiência sensorial não apresentasse mais o aspecto de realidade não mediada de uma alucinação. Começou a ver o seu medo - e a sua convicção - de que um câncer estava crescendo dentro dela como uma nova versão da alucinação do barbante.

A essa altura da análise, a Senhora R também começou a corrigir meus erros gramaticais - por exemplo, quando eu dizia: “pessoas quem” em vez de “pessoas que”, ou quando errava o emprego do subjuntivo. Na sua sutileza, repetia a essência da frase, mas com o erro corrigido. Não tenho certeza de que tinha consciência do que fazia. Não media palavras contra jornais na televisão e o New York Times, “açougueiros da língua inglesa”. Comecei a reparar tanto na correção gramatical da minha fala que me senti com a língua amarrada e limitado na minha habilidade de falar espontaneamente. Com o tempo, entendi que isso se devia ao jeito como, inconscientemente, a paciente me forçava a sentir parte de como era, para ela, ter a mãe dominadora dentro de si.

Numa sessão em que a Senhora R estava se sentindo desesperada para saber se um dia conseguiria livrar-se da presença física e emocional da mãe dentro dela, eu disse: “Penso que hoje sente quase tão intensamente quanto experimentou a alucinação do barbante e que tem apenas duas escolhas: pode tentar puxá-lo para fora - o que implica a saída das suas próprias entranhas junto com sua mãe, o que mataria as duas; ou pode escolher não puxar o barbante, o que significa abrir mão da chance de removê-lo de dentro de si e de abandonar a esperança de um dia tornar-se uma pessoa separada dela”.

Enquanto eu dizia isso, tive a forte impressão de estar emergindo de um estado psíquico no qual me sentira habitado de modo sufocante pela Senhora R. Algo muito novo e bem-vindo estava ocorrendo entre nós dois nesse ponto da sessão, mesmo que não tenha conseguido traduzi-lo em palavras ou imagens para mim mesmo ou para a paciente.

“Enquanto o senhor estava falando, lembrei de algo que me obcecava quando estava nas últimas séries do ensino fundamental e no ensino médio. Vivia num mundo de desastre iminente. Por exemplo, tinha de adivinhar exatamente - o erro máximo que me permitia era de um terço de litro - quantos litros de gasolina cabem no tanque de um carro. Tinha certeza de que se errasse, minha mãe ou meu pai morreria. Mas o pior de tudo é que havia uma pergunta que não me saía da cabeça. Há anos não me lembrava disso. A pergunta era: se a minha família e eu estivéssemos num barco afundando, que, no entanto, não afundaria desde que alguém de nós fosse jogado ao mar, decisão que caberia a mim tomar. Quem eu escolheria? Sabia de antemão que escolheria a mim mesma, mas essa resposta era 'errada' -era contra as regras. Então voltava a me fazer essa mesma pergunta e nunca parava, às vezes durava meses”.

“Quando menina, você era jovem demais para saber que sua resposta não estava errada nem contra as regras. Errado era o próprio fato de fazer uma pergunta como essa; quero dizer que havia algo terrivelmente errado ocorrendo na sua vida e na da sua família. Penso que, virtualmente, sentiu durante toda sua vida, desde muito criança, que tinha de decidir a quem matar: à senhora ou à sua mãe”.

“Era horrível demais - impossível -, quando criança, me permitir sequer saber disso. Havia apenas como sentimento presente, sem palavras para descrevê-lo. Sentia que minha mãe era tudo. Sabia que se eu a tirasse de mim, iria matá-la e não queria isso; mas tinha de tirá-la para fora porque não queria morrer. Estou tão confusa. Sinto-me como se estivesse num labirinto, sem saída. Tenho de sair dele. Não posso ficar.”

“A primeiríssima coisa que quis que eu soubesse a seu respeito, no nosso primeiro encontro, foi que a senhora e eu não cabíamos aqui juntos. Hoje em dia, percebo que, apesar de não ter conseguido traduzir isso em palavras, estava tentando nos proteger a ambos de si mesma. Se me permitir ajudá-la, vou estar dentro da senhora e terá de matar um de nós ou os dois. Quando criança, estava sozinha com esse problema, mas agora não é mais o caso.”

“Às vezes, quando estou aqui, sei que existe um mundo completamente diferente daquele em que tenho vivido. Constrange-me dizer isso - devo estar corando, não é? -, mas é um mundo em que o senhor e eu conversamos assim. Sinto muito por ter dito isso, não quero estragar tudo. Estou me sentindo uma menininha. Esqueça o que disse.”

“O seu segredo está seguro comigo.” A essa altura da análise, já sentia muita afeição pela Senhora R, e ela sabia disso.

Foi com a ajuda da paciente - que disse estar se sentindo uma menininha - que consegui traduzir em palavras para mim mesmo parte das emoções que já havia sentido em sessões anteriores e que, nesse momento, sentia com muito mais intensidade. Estava percebendo a Senhora R como a filha que nunca tive, uma filha pela qual sentia certa ternura e certa perda - à medida que ela crescia -, característica do vínculo entre pai e filha. Não era simplesmente um novo pensamento, era um novo modo de me sentir e de sentir a Senhora R; era um modo de me sentir vivo, ao mesmo tempo carinhosa e tristemente, e era novo para mim.

Na sessão seguinte, a Senhora R disse: “Havia muito tempo que não dormia tão profundamente quanto ontem à noite. Foi como se o espaço tivesse se aberto em todas as direções, inclusive para baixo, no sono”.

À medida que a análise progredia, a Senhora R conseguia experimentar tipos de sentimento e qualidades de relacionamento humano novos para ela: “A vida toda ouvi a palavra bondade ser usada pelas pessoas, mas não tinha ideia do que significava. Sabia que nunca sentira isso que falavam: bondade. Agora sei qual é a sensação que tenho dela. Posso sentir sua bondade para comigo. Choro quando vejo uma mãe carregar seu bebê ternamente nos braços ou segurar o filho pela mão enquanto andam”. Acrescentou que também chorou porque pode sentir que recebera pouquíssima bondade quando criança. Contudo, o pior foi a profunda tristeza que sentiu por ter sido tão pouco bondosa com os filhos. Até então, a Senhora R havia falado deles apenas ocasionalmente, apesar de todos terem passado por dificuldades emocionais.

Com o tempo, a mudança psicológica interpessoal da Senhora R, que descrevi, estabilizou-se como um modo de ser e perceber. Isso se evidenciou no sonho seguinte. “Estava chegando em casa e percebo que muitas pessoas haviam se mudado para lá. Havia gente em todos os cômodos - estavam preparando comida na cozinha, vendo TV na sala, estavam em todo canto. Fiquei furiosa e gritei: 'deem o fora daqui, porra! (Nunca tinha ouvido um palavrão da Senhora R.). Esta é a minha casa, não têm o direito de estar aqui'. Senti-me bem quando acordei. No sonho, não senti medo das pessoas que haviam invadido a minha casa, estava irada”.

“A casa é o lugar em que mora, um lugar seu, e apenas seu”.

A Senhora R e eu comentamos como o sonho refletia sua crescente capacidade de reivindicar firmemente um lugar onde viver que fosse inteiramente dela, um lugar onde não precisasse escolher entre matar a si mesma ou a alguém que a houvesse invadido. “No sonho, as pessoas que haviam se mudado para a minha casa não iam morrer se as mandasse embora. Só teriam de achar outro lugar para morar”.

A Senhora R tinha vivido num mundo psicótico gerado por e com sua mãe - com a ajuda do pai -, um mundo em que estava sentindo inconscientemente, a todo momento, que tinha de escolher entre matar a si mesma - resignando-se a ser uma projeção dos sentimentos da mãe, da própria indignidade - ou matar a mãe ao insistir em se tornar uma pessoa por si mesma - embora uma pessoa que não tivesse tido mãe de verdade nem mundo que fizesse sentido para ela.

O pensamento que considero transformativo no meu trabalho com a Senhora R foi o que a paciente e eu estivemos juntos ao longo dos anos de análise - um pensamento que acabou levando a uma transformação radical na maneira como ela e eu ordenávamos as experiências, criando uma gestalt que transcendeu os termos do mundo emocional em que ela e eu havíamos vivido. Nessa nova maneira de gerar e ordenar a experiência, a Senhora R conseguia manifestar sentimentos como bondade, amor, ternura, tristeza e arrependimento, que, até então, nunca haviam passado de palavras que outros usavam para designar experiências que nunca conseguira sentir. A intimidade e a afeição que a Senhora R e eu hoje somos capazes de compartilhar ficaram claras para nós dois quando ela falou de um mundo em que “o senhor e eu conversamos assim”. O fato de a paciente ter usado as palavras “o senhor e eu” em vez de “nós” transmitia um sentimento de separação amorosa, em oposição a uma união engolfante, aniquiladora. Essa simples diferença no uso da linguagem mostra a transformação radical no pensamento e no ser da paciente.

Os termos de natureza emocional fundamentalmente novos que foram criados não derivavam do ódio por si mesma nem de uma dependência mútua patológica, mas do desejo e da necessidade de se tornar uma pessoa por si mesma, uma pessoa capaz de dar e receber uma forma de amor que nunca soubera existir. Um amor que, paradoxalmente, obtém prazer e forças da alteridade da outra pessoa. Nesse novo conjunto de termos, nessa nova maneira de estar viva, a separação não implica esforços tirânicos para incorporar outra pessoa ou ser incorporada por ela; antes, gera uma verdadeira apreciação da surpresa, da alegria, da tristeza e do medo gerenciável que derivam do firme conhecimento da própria independência e da independência da outra pessoa.

Embora eu acredite que o pensamento transformativo, nesse relato clínico, tenha resultado de todo o trabalho com a Senhora R, também penso que houve momentos em que senti que ela e eu estávamos envolvidos em algo diferente do pensamento onírico “ordinário”. Por exemplo, um desses momentos ocorreu na sessão em que falei à paciente do seu desespero pela possibilidade de se livrar, um dia, da necessidade de fazer uma escolha impossível: quem matar, ela mesma ou a mãe? Embora pudesse sentir que uma mudança expressiva - e bem-vinda - estava ocorrendo, não fui capaz de traduzir em palavras o que estava sentindo ou mesmo de tê-lo claro para mim mesmo. À medida que a sessão prosseguiu - sessão em que um grande trabalho psicológico foi realizado -, a paciente me ajudou - inconscientemente - a sentir que a havia percebido, terna e tristemente, como a filha que nunca tive e nunca terei. Paradoxalmente, no próprio ato de conscientização desse meu vazio emocional, estava vivenciando com a Senhora R sentimentos de um pai para a filha, de amor e perda (separação), que constituíam para mim - e, acredito, que para a Senhora R, também - um novo modo de ela estar consigo mesma e com outra pessoa.

Esse pensamento transformativo era inseparável de outro nível de pensamento transformativo em que a paciente e eu nos envolvemos durante essa sessão. O fato de a Senhora R conseguir sentir e entender, em nível psicológico profundo, o seu autoaprisionamento num mundo forjado quase exclusivamente em termos de que tinha de se enfrentar com o dilema de, para se tornar uma pessoa separada da mãe, exigir quer um assassinato, quer um suicídio. A paciente conseguiu começar a experimentar um modo de ser criado em bases radicalmente diferentes. Começou a vivenciar a separação - tornando-se uma pessoa por si mesma -, não como um assassinato, mas como um ato que criava um lugar dentro dela mesma - e entre ela e eu -, um lugar onde conseguia experimentar um sentido, previamente inconcebível, do que era e do que estava se tornando.

 

Observações finais

A mudança de ênfase na psicanálise contemporânea, do que o paciente pensa para como pensa, alterou significativamente, acredito, a maneira como nós, analistas, abordamos o trabalho clínico. Discuti três formas de pensar que se destacam nos trechos das duas análises que apresentei. A primeira, o pensamento mágico, só tem o nome de pensamento, uma vez que, em vez de gerar verdadeiras mudanças psíquicas, subverte o pensamento e o crescimento psicológico ao substituir uma realidade externa perturbadora por uma realidade inventada. O fantasiar onipotente subjacente ao pensamento mágico é de natureza solipsista e contribui para preservar a estrutura atual do mundo de objeto interno inconsciente. Além do mais, também limita a possibilidade de aprendizagem a partir da própria experiência com objetos externos reais.

O pensamento onírico, por sua vez, é a nossa forma de pensar mais profunda. Envolve ver e processar a experiência sob muitos pontos de vista ao mesmo tempo, inclusive sob a perspectiva dos processos de pensamento primário e secundário; do continente e do contido; das posições esquizoparanoide, depressiva e autista contígua; do mágico e do real; do self infantil e do self maduro etc. Diferentemente do pensamento mágico, o pensamento onírico “funciona”, no sentido de que facilita um crescimento psicológico verdadeiro. Embora o pensamento onírico possa ser gerado por um indivíduo sozinho, existe sempre um ponto além do qual duas pessoas (ou mais) são necessárias para poder pensar/sonhar a sua experiência emocional mais perturbadora.

O pensamento transformativo é uma forma de pensamento onírico em que ocorre uma mudança psicológica radical - um movimento psicológico da gestalt conceptual/expe-riencial atual para uma nova ordenação, antes inimaginável, da experiência. Esse movimento cria o potencial para gerar tipos de sentimento, formas de relacionamento com o objeto e qualidades de vida que o indivíduo nunca experimentou antes. Esse tipo de pensamento sempre exige as mentes de pelo menos duas pessoas, uma vez que um indivíduo isolado dos outros não pode alterar radicalmente as categorias fundamentais de significação com as quais ordena a própria experiência.

 

Referências

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Correspondência:
Thomas H. Ogden
306 Laurel Street
San Francisco, CA 94118
thomas.ogdenmd@gmail.com

Recebido em 16.3.2012
Aceito em 3.4.2012

 


1 Sobre a inseparabilidade das formas de pensar, Freud (1900) escreveu: “é verdade que, até onde sabemos, não existe nenhum aparelho psíquico que possua apenas o processo primário [ou seja, sem processo secundário] e, nessa medida, tal aparelho é uma ficção teórica” (p. 603).
2 Certa vez, Bion disse ao seu analisando, James Grotstein: “Que vergonha você ter sido reduzido à onipotência” (Grotstein, comunicação pessoal, 2001). A conexão sutil entre vergonha e pensamento onipotente que Bion traz nesse comentário é altamente significativa: a vergonha inconsciente e irracional é uma força poderosa que impele a pessoa a desistir do mundo real e a criar, em seu lugar, outro que esteja totalmente sob seu controle.
3 Também pensei que a Senhora R sentiu, inconscientemente, que eu era mais um médico que a usava para os próprios fins - talvez como assunto para uma palestra ou um artigo -, mas decidi esperar para abordar esse aspecto do que senti estar acontecendo na transferência/contratransferência até esse conjunto de pensamentos e sentimentos ficarem mais perto da sua experiência consciente de mim. Acredito que a paciente teria experimentado essa interpretação da transferência como uma substituição da sua história pela minha.

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