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Revista Brasileira de Psicanálise

Print version ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.46 no.2 São Paulo Apr./June 2012

 

RESENHAS

 

A construção da parentalidade em mães adolescentes: um modelo de intervenção e prevenção

 

 

Ana Maria Stucchi Vannucchi

Membro efetivo da Sociedade Brasileira de Psicanálise SBPSP, docente do Instituto e coordenadora do Laboratório de Adolescentes da SBPSP

Correspondência

 

 

Autora: Maria Cecília Pereira da Silva
Editora: Honoris Causa, Curitiba, 2011, 202p.
Resenhado por: Ana Maria Stucchi Vannucchi

Ao descer de elevador para o subsolo do edifício onde tenho meu consultório, um senhor aproximou-se de mim, “esticou o pescoço” e perguntou: “O que a senhora está lendo?” Mostrei-lhe o título, e ele continuou: “A senhora é psicóloga? fiquei curioso pelo título”.

Senti-me estimulada a contar-lhe um pouco sobre o livro que trazia e, dessa forma, pude “resenhá-lo” ali mesmo, de maneira viva e informal. “Esse livro é resultado de uma tese de pós-doutorado, desenvolvida à luz de consultas terapêuticas com mães adolescentes de 13 a 18 e com alguns pais e seus bebês recém-nascidos no Hospital Municipal de Campo Limpo Doutor Fernando Mauro Pires da Rocha, entre 2006 e 2008”. A pesquisa voltou-se para mães e bebês de uma camada social e economicamente desprivilegiada, com baixo grau de escolarização, cujas questões identitárias eram ligadas à adolescência e à maternidade precoce, acrescidas de privações sociais e econômicas, fatores agravantes da situação vivida, que constitui um indicador de risco sob o ponto de vista da saúde pública.

Fundamentada em extensa bibliografia, a pesquisa procurou considerar diferentes aspectos do assunto. Há autores que definem a gravidez precoce na adolescência como um “problema”, bem como há quem sugira que a gravidez precoce pode expressar vivências reparatórias inconscientes da mãe adolescente em relação à própria infância, uma busca de “consolidar” e “completar” o processo de elaboração de sua identidade, tarefa fundamental da adolescência. Ao alcançar o “status de mãe”, a adolescente adquire uma identidade social e uma rede de solidariedade das quais ela poderia ser privada no seu desenvolvimento, se não se tornasse mãe. No entanto, o conflito aparece entre ser mãe e ser adolescente, ponto essencial do trabalho desenvolvido pela autora.

A pesquisa também é uma forma de chamar a atenção do leitor para os aspectos inconscientes presentes na gravidez precoce, iluminando o desejo inconsciente da mãe adolescente de engravidar, ampliando nossa percepção a respeito do desamparo e da gravidez “não desejada”, que expressaria fantasias idealizadas de autonomia e desenvolvimento ao lado de necessidades inconscientes de dependência e cuidado, conflito, em última instância, definidor da situação adolescente ou do estado mental adolescente.

A noção de parentalidade é entendida como “tornar-se” pai ou mãe, o que compreende uma rede complexa de fatores conscientes e inconscientes, intergeracionais e transgeracionais, e caminha, portanto, bem além de “ter um filho”.

O modelo de trabalho é o da consulta terapêutica, termo utilizado para nomear o trabalho de observação pluridimensional e de intervenção direta no campo intersubjetivo formado entre analista, pais e bebês, incluindo trocas, brincadeiras, interações e repercussões terapêuticas, que, por sua vez, podem vir a interromper círculos viciosos paralisantes. Esse conceito é empregado de forma ampliada nesse contexto, bem como é enriquecido com a contribuição de vários autores de linhagens psicanalíticas diferentes, tais como Winnicott, Lebovici e Baranger (p. 32, 33, 47).

A modalidade de pesquisa é a de “pesquisa ação”, onde além da coleta de dados, promove transformações mediante intervenções clínicas, constituindo-se dessa forma um trabalho preventivo cujo objetivo é evitar os transtornos globais do desenvolvimento do bebê.

Somem-se a isso, gravações de consultas em vídeo - doadas às mães adolescentes ao final do trabalho -, que favoreceram bastante a observação de determinados aspectos que emergiam na interação mães/bebês. Recorreu-se também ao método de observação de bebês criado por Ester Bick. A avaliação do grau de desenvolvimento desses bebês foi feita com base no método de “janelas clínicas de D. Stern”. Na análise dos dados privilegiaram-se os aspectos inconscientes do relato, confrontando-se conteúdo latente e manifesto, e indicando também aspectos transge-racionais presentes.

Meu interlocutor pergunta: “e as mocinhas? quem eram?”

“Apresento-lhe” as duplas de mães adolescentes com seus bebês: Maria Lidia e Lucas, Mariana e Guilherme, Maria Lúcia e Laura, Katia e Odylon, Maria de Fátima e Ana, Marisa e Mariana, Maria Luiza e Maria Mariana, Maria Rita e Ana Lúcia. Apenas dois bebês contavam com a presença do pai: Greyce, filha de Maria Elisa e Jayme; e Maria Rosa, filha de Glória e Marcos.

Os relatos são pungentes, vemos emergir vivências dramáticas e trágicas, esperança e criatividade, solidão e desamparo, mesclados com tentativas de parceria e solidariedade.

A autora enfatiza o corte abrupto que a gravidez representa no mundo onipotente da adolescente, ao colocá-la em contato com as dificuldades e a responsabilidade de criar e acolher o bebê recém-nascido. “Depois que ela crescer, eu vou virar adolescente”, comenta Maria de Fátima (p. 67).

Paralelamente à necessidade de individuação, a gravidez adolescente oferece uma “oportunidade” de amadurecer “à força”; causa interrupção dos estudos, bem como lhe oferece uma “carta de alforria”, mediante a qual a adolescente se sente “adulta” e, portanto, autônoma para decidir sobre sua vida e como criar seu filho, mas muitas vezes sem ter recursos psíquicos para isso. Há também a expectativa de que o bebê possa unir a família desagregada (especialmente a própria família da mãe adolescente).

A autora menciona as fantasias reparatórias relacionadas à possibilidade de criar uma família harmoniosa e feliz, para reparar a família fragmentada e conflituosa de origem. Nos relatos surgem também aspectos transgeracionais evidentes, relacionados à necessidade inconsciente de repetir histórias trágicas e traumáticas vividas pelos antepassados, especialmente pela mãe e pelos avós.

Outro aspecto destacado diz respeito à gravidez como fruto da necessidade da adolescente de preencher um vazio interior, que dá origem à percepção de que o bebê vai completar esse vazio ou ainda como “objeto transicional negativo”, quando a mãe projeta no bebê a função de cuidar dela.

Surgem também aspectos relacionados à elaboração da feminilidade e da maternidade, expressos por conflitos identificatórios da adolescente com a mãe, bem como aspectos fusio-nais relativos à figura materna, que revelam a presença do mundo infantil na mente adolescente, quando, muitas vezes, o bebê é equiparado a um brinquedo.

A autora volta sua atenção para as “duplas mensagens” na comunicação entre mãe e bebê, notadamente as que envolvem conflitos entre aspectos conscientes e inconscientes. Por exemplo: querer o bebê e amá-lo e ao mesmo tempo ter desejado abortá-lo. “A gente pode falar de raiva porque tem muito amor, né?” (p. 153) - sinal de quem busca uma atenuação dos sentimentos de culpa envolvidos.

O bebê pode então ser percebido como fruto do desejo edípico - ser “filho” do pai da jovem - ou um “presente” para a avó materna, quando a discriminação entre filha e mãe torna-se confusa. Há casos em que a própria avó é convocada ou se “oferece” para ser considerada a mãe do bebê.

As intervenções clínicas são sempre pautadas pelo favorecimento da discriminação dos aspectos inconscientes envolvidos, especialmente as projeções inconscientes da mãe, o que per-mitiria um melhor desenvolvimento psíquico de ambos. “Ao conversarmos sobre as necessidades do bebê e sobre o que as mães adolescentes sonham para seu filho, pudemos aproximá-las da função materna, discriminado o bebê real das projeções narcísicas da mãe e dos aspectos obstaculizantes para a subjetivação do bebê” (p. 132). Elas visam favorecer a disponibilidade emocional da mãe, necessária para o cuidado do bebê, e a identificação das suas necessidades físicas e emocionais, assegurando a amamentação, apontando as competências da jovem mãe e legitimando sua função materna.

- Mas como é que se pode fazer isso? - pergunta-me o interlocutor.

- Olha, vou te dar alguns exemplos de como a pesquisadora dirigia-se à jovem mãe.

- “Olha só como você conseguiu fazer ele se acalmar (p. 140); você sabe cuidar dela, nem sempre precisa da sua mãe” (p. 140).

A autora esclarece a importância de trabalhar “na potência”, não “na falha” - naquilo que a jovem mãe mostra-se incompetente. As intervenções buscam apontar as potencialidades, realizando assim um trabalho de subjetivação da mãe.

O trabalho de subjetivação do bebê visa possibilitar que a mãe identifique as demandas físicas e emocionais do bebê, considerando sua alteridade, como, por exemplo, identificar o tipo de choro que ele manifesta.

Menciona-se também a necessidade do desenvolvimento da função paterna, identificando-a como “propulsora do desenvolvimento, socialização e simbolização, propiciando distância e diferença, elementos fundadores do psiquismo” (p. 155).

Ao final do livro, a autora oferece um modelo “multiplicativo” da intervenção proposta, mediante conversas com a equipe de profissionais de saúde - enfermeiras, assistentes sociais e psicóloga -, com a qual foram realizadas três reuniões. A UTI neonatal, fator fundamental desse trabalho, era composta de médicos, fisioterapeutas, psicólogos e enfermeiros.

Nessas reuniões, o trabalho essencial realizado foi a “desconstrução” do preconceito da equipe de que as adolescentes engravidam porque são desligadas e irresponsáveis. A conversa sugere ideias novas e férteis, como a de que a gravidez na adolescência pode ser a “única alternativa para suas vidas” (p. 159), ampliando assim a capacidade empática desses profissionais com essas jovens.

Graças a essas reuniões, também foram sugeridas intervenções e mudanças de atitude no trabalho da equipe, especialmente o favorecimento da empatia e da parceria com as jovens, o que diminuiria seu sentimento de solidão e desamparo, “autorizando” sua função materna ou mesmo prorrogando, quando necessário, o período de internação.

Com a equipe da UTI, a autora privilegiou a importância de lidar com o sentimento de culpa das jovens, que muitas vezes associam inconscientemente a situação de prematuridade e sequelas do bebê às tentativas de aborto realizadas durante a gravidez. Além disso, a equipe foi sensibilizada para a necessidade de dar continência e suporte emocional para que a jovem mãe acolha o “bebê real”, que está em descompasso com o “bebê sonhado”, e torne-se disponível para os cuidados médicos necessários para o restabelecimento do bebê. Sublinha a importância de “humanizarmos os atendimentos da UTI”, mediante “conversas com o bebê”, que ela “apelida” de “mamanhês” (p.171). Sugere ainda grupos de reflexão e conversas permanentes entre os membros da equipe de profissionais, com a finalidade de processar e “digerir” as angústias de morte vividas por eles no seu trabalho diário, uma vez que é necessário que o “cuidador também seja cuidado”, (p. 179).

As intervenções junto à equipe têm também a função de valorizar o trabalho do profissional, promovendo nele a percepção de sua importância: “vocês são a 'alma' da possibilidade de ele se recuperar...” (p. 172).

Propõe que as jovens mães sejam acompanhadas depois do parto em unidades básicas de saúde, incluindo nesse acompanhamento a possibilidade de interromper o “círculo vicioso” de várias gestações seguidas. Esse trabalho mostrou-se possível no período em que as jovens mães foram acompanhadas pela equipe formada pela autora e por duas entrevistadoras: Denise Serber e Patrícia Oliveira de Souza.

A autora também sugere que esse tipo de acompanhamento possa constituir-se um fator de prevenção contra a violência. Ao lidar com as vivências de desamparo das mães e dos bebês, é possível, a médio prazo, alterar a correlação de forças entre desamparo e violência, tão bem conhecida, bem como tão difícil de se transformar.

Dessa forma, a proposta do trabalho é ampliar essas intervenções para políticas públicas de saúde e educação, o que inclui a formação de profissionais do Programa de Saúde da Família, pediatras, obstetras, enfermeiras, psicólogos, voltados para a “clínica da parentalidade” para mães adolescentes; bem como zelar pelo alcance social e comunitário dessas intervenções, a fim de que se constituam “facilitador(es) para o desenvolvimento de crianças que se tornarão adultos no século XXI” (p. 184).

Ao final, meu interlocutor disse:

- Fiquei com vontade de ler o livro, achei comovente esse tipo de trabalho!

Boa leitura!

 

 

Correspondência:
Ana Maria Stucchi Vannuchi
Rua Urussui, 71, 51
04542-050, São Paulo, SP
Tel: 11 30712456
anavannucchi@gmail.com

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