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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.46 no.3 São Paulo jul./set. 2012

 

EDITORIAL

 

Editorial

 

 

Bernardo Tanis

Editor

 

 

Passagens II: Entre o moderno e o contemporâneo

[...] contemporâneo não é apenas aquele que, percebendo o escuro do presente, nele apreende a resoluta luz; é também aquele que, dividindo e interpolando o tempo, está à altura de transformá-lo e colocá-lo em relação com outros tempos, de nele ler de modo inédito a história, de "citá-la", segundo uma necessidade que não provém de seu arbítrio, mas de uma exigência à qual ele não pode responder.
(Agambem, 2009, p.72).

A perspectiva de diálogo que inauguramos em nosso número anterior, Passagens I - entre o moderno e o contemporâneo com o tema do XXIX Congresso da Fepal: Tradição -Invenção, é aprofundada neste que aqui apresentamos, cujo foco principal trata da clínica atual e da possibilidade da instauração de um pensamento clínico contemporâneo.

No primeiro número direcionamos nossa atenção ao estreito vínculo que liga a psicanálise ao questionamento dos ideais da Modernidade, sua ligação com o Modernismo e as vanguardas europeias do início do século XX, que deixaram sua marca indelével na implantação de nossa disciplina no Brasil.

Agora colocamos em perspectiva a ideia do contemporâneo na clínica atual, dialogando com a proposta curatorial da 30ª Bienal de Artes de São Paulo: Iminência das poéticas, cuja inauguração em setembro de 2012 antecede o Congresso da Fepal. Seu curador, Luis Pérez-Oramas, escreve sintetizando sua proposta para a exposição: "A ideia é ver como o presente projeta sua sombra sobre o passado e transforma um legado histórico em elemento da contemporaneidade". A rica entrevista que publicamos abre um amplo leque de questões. Desde os limites da representação, passando pela função política da arte que visa a partir de sua perspectiva colocar em xeque certas ilusões contemporâneas, privilegia a distância, o fragmentário e o silêncio, reivindicando a demora em contraposição ao excesso de informação em uma urgência que encurta o tempo. Destacam-se em sua proposta recursos solidários, montagem e anacronismo, inspiradas nas propostas de Walter Benjamin, que vê a montagem1 como estratégia metodológica, que ao retirar os objetos/textos/imagens de seus contextos, possibilita o surgimento de uma nova constelação na qual as noções de temporalidade são transformadas, assim como se possibilita a emergência de novos sentidos históricos. Dialoga, deste modo, com o trabalho de Didi-Huberman, filósofo e historiador da arte, A prova pela imagem, no qual procura nos mostrar como este método privilegiado por Bertold Brecht em seu diário - escrito em parte durante a Segunda Grande Guerra, valendo-se da montagem de imagens, desorganizando a ordem cronológica, ignorando ordem de grandezas e hierarquias, dispondo as diferenças, em um "choque das heterogeneidades" - produz efeitos de sentido, assim como a atenção flutuante por parte do analista. A montagem, diz Huberman, consegue expor a verdade das coisas.

Os psicanalistas José Canelas Neto e Henrique Honigsztejn encontram em seus apurados comentários importantes pontos de intersecção com questões com as quais nos defrontamos como psicanalistas. Propiciam, assim, um diálogo com essas teses representativas do conjunto dos trabalhos publicados neste número.

Dois textos se fazem presentes como homenagem póstuma a André Green, analista que representa a busca incansável da construção de uma matriz dialógica para o pensamento clínico contemporâneo. Fernando Urribarri, analista argentino que o acompanhou intelectualmente e como amigo nos últimos anos da sua vida, ofereceu-nos gentilmente uma entrevista com André Green, fruto de um trabalho de parceria com esse psicanalista e pensador, que muitos no Brasil tiveram oportunidade de conhecer. Também publicamos um trabalho do próprio Urribarri, no qual procura mapear questões que apontam as transformações que balizam "o pensamento clínico" (assim nomeado por Green), destacando o trabalho interno do analista, o funcionamento mental como campo heterogêneo, em que se conectam o intrapsíquico e o intersubjetivo, a complexidade e a importância do enquadre interno do analista, o que nos possibilita concluir, pela atenção à diversidade de lógicas em jogo, que a posição atual do analista não pode ser fixa, mas múltipla e variável.

Os primorosos trabalhos de Ruggero Levy e Lourdes Tisuca Yamane são um exemplo da sutileza e cuidado no trabalho clínico com analisandos, cuja precariedade simbólica demanda esse trabalho fino e singular do analista contemporâneo. A ideia fecunda de pensamento-prótese, aporte de Levy como degrau rumo à simbolização, assim como os movimentos na direção de humanização no encontro com o outro, que puderam auxiliar o jovem analisando de Yamane a se deslocar de um lugar fusional, permitindo "celebrar um rito de passagem à cultura humana", testemunham tanto o rico trabalho como o pensamento clínico vivo e complexo desses analistas, que encontram na pluralidade de suas referências recurso para avançar em regiões turbulentas e opacas da subjetividade.

Um retorno à teoria gera uma tensão criativa com o "pensamento clínico". Publicamos postumamente um trabalho inédito de Fábio Herrmann, com introdução de Leda Herrmann, no qual analisa o grau de desenvolvimento da psicanálise como ciência geral da psique, destacando a tensão dialética entre I (invenção) e D (descoberta), condição necessária para a criação científica, abertura para o sentido da verdade (V).

"Tempo, tempo, tempo, tempo/ Compositor de destinos/ Tambor de todos os ritmos", assim canta Caetano Veloso em sua Oração ao tempo (1979). Compartilhamos com Caetano a reverência que percorre ora silenciosa ora mais ruidosamente toda a obra freudiana, e que movimenta os bastidores do pensamento clínico nos diferentes textos que compõem este número. Serão os trabalhos de Gabriel Sapisochin, Yudith Rosenbaum e Janine Altounian que avançarão da direção da atualização das temporalidades arcaicas e traumáticas da experiência histórica e subjetiva. Sapisochin retoma explicitamente, em um exame rigoroso, a ideia central de regressão e a investiga à luz das transformações, que permitem criar condições de apropriação do arcaico não integrado na experiência analítica. Já Rosenbaum, a partir de uma análise da obra de Oswald de Andrade, ilustra com um breve, mas paradigmático, exemplo o efeito que produz o deslocamento em um texto de Pero Vaz de Caminha, potencializando novas relações de sentido outrora preso em uma temporalidade arcaica. Por outro lado, Altounian - em um comovente depoimento - resgata, por meio da exumação do traço, o tempo psíquico, assim como o tempo histórico de acontecimentos sócio-políticos vinculados ao genocídio armênio.

Completam este número os trabalhos de Salvitti, Barison, Lottenberg Semer e Bellochio Thones & Follo da Rosa Jr., com significativas contribuições em torno da clínica e da teoria psicanalítica.

Esperamos que a complexa trama simbólica que a riqueza deste número contempla contribua para a busca de interlocução e abertura em torno dos problemas e perspectivas que desde a clínica nos interrogam, e possam ter valor de estímulo para os debates que terão lugar - seja no contexto do Congresso da Fepal, como no próximo Congresso Brasileiro de Psicanálise, no qual o Ser contemporâneo estará em discussão em seus vários vértices.

Grato, mais uma vez, ao empenho de toda equipe editorial, que com muito afinco dedicou-se à tarefa de elaboração destas Passagens I e II, uma tentativa de apreender permanências e iminência de novos movimentos que operam na clínica atual.

Boa e prazerosa leitura!

 

Referências

Agambem, G. (2009). O que é o contemporâneo? e outros ensaios. (V.C. Honesko, Trad.). Chapecó, SC: Argos.         [ Links ]

Veloso, C. (1970). Oração ao tempo. In C. Veloso, Cinema transcendental. [CD]. [s.l.]: Philips.

 

 

1 O recurso da montagem como metodologia epistemológica de investigação implica, para W. Benjamin, uma nova abordagem da história que se contrapõe ao historicismo linear.

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