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Revista Brasileira de Psicanálise

Print version ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.46 no.3 São Paulo July/Sept. 2012

 

COMENTÁRIOS SOBRE A ENTREVISTA

 

Iminências poéticas - Emergência de outras temporalidades

 

Poetic Imminence(s) - emergence of other temporalities

 

Inminencias poéticas - la emergencia de otras temporalidades

 

 

José Martins Canelas Neto

Psicanalista, membro efetivo e analista didata da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo SBPSP, editor da revista Ide

Correspondência

 

 


RESUMO

O autor comenta e relaciona à psicanálise alguns conceitos importantes trazidos por Oramas na entrevista a este número da RBP. O "anacronismo" é aproximado da visão da temporalidade em psicanálise, isto é, da noção de um tempo heterogêneo governado pela concepção do "après-coup" (heterocronia). A noção de "sobrevivência de formas" (Warburg) abordada no artigo se mostra fecunda para os psicanalistas. Também foram destacados e comentados: a ideia de iminência poética, a importância do mito e da arte como crítica à ilusão ideológica vigente e a relação entre linguagem poética e psicanálise.

Palavras-chave: anacronismo; temporalidade; linguagem poética; formas simbólicas.


ABSTRACT

The author comments on some important concepts brought by Oramas in his interview for this RBP issue, and relates them to psychoanalysis. The "anachronism" is associated with the notion of the quality of time in psychoanalysis, that is, the idea of a heterogeneous time ruled by the conception of the "après-coup"(heterochronicity). The notion of "survival of forms" (Warburg), touched upon in this paper, seems valuable to psychoanalysts. The idea of poetic imminence, the relevance of myth and art as alternatives to the current ideological illusion and the relation between poetic language and psychoanalysis are also emphasized and commented.

Keywords: anachronism; quality of time; poetic language; symbolic forms.


RESUMEN

El autor comenta algunos conceptos importantes evocados por Oramas en la entrevista para este número de la RBP y los relaciona con el Psicoanálisis. Vincula el anacronismo a la visión de temporalidad en Psicoanálisis, es decir, la noción de un tiempo heterogéneo gobernado por la concepción de après-coup (heterocronía). La noción de supervivencia de las formas (Warburg) tratada en el artículo resulta fecunda para los psicoanalistas. En el ensayo son también señalados y comentados los siguientes temas: la idea de inminencia poética, la importancia del mito y del arte como crítica a la ilusión ideológica vigente, y la relación entre lenguaje poético y psicoanálisis.

Palabras clave: anacronismo; temporalidad; lenguaje poético; formas simbólicas.


 

 

A rica entrevista com Luis Pérez-Oramas mostra o quanto a relação entre psicanálise e cultura, expressa pela arte e pela experiência existencial de cada um, é essencial. Penso que a cultura está presente em cada indivíduo, o que implica que ela está no cerne da análise. Por ser uma entrevista, um texto em sua origem proveniente de transmissão oral e não escrita, suas reflexões nos chegam de maneira intensa e concisa. Trata-se de uma reflexão sobre a história e a função da arte, que está no fundamento do trabalho de curadoria da próxima Bienal de São Paulo. Abordarei abaixo os eixos conceituais que me pareceram mais importantes nessa entrevista.

 

Temporalidade, memória e anacronismo

Após nos falar de seu percurso pessoal, que vai da Filosofia Medieval à História da Arte, como aluno de Louis Marin, Pérez-Oramas introduz a noção de "anacronismo"1. Essa noção parte da necessidade de se "pensar os problemas de longa duração", relativizando assim a novidade da modernidade. Trata-se, no anacronismo, de uma "estratégia experimental de sentido". Como podemos perceber, essa estratégia de sentido pode ser aproximada da noção de método analítico. Na entrevista fica evidente a completa integração das descobertas psicanalíticas em seu pensamento, isso tanto no que concerne à concepção da temporalidade, quanto à da importância da linguagem poética e da poesia.

A referência à temporalidade inclui a visão freudiana da temporalidade em psicanálise, em torno do conceito de "après-coup", citado por Pérez-Oramas. No anacronismo ocorre um entrelaçamento entre textos e objetos assim descritos pelo curador da Bienal: "confrontar textos antigos com objetos modernos e confrontar objetos antigos com textos modernos". Desse modo, pela analogia que estou fazendo, ocorreria como na análise uma confrontação entre textos antigos - fantasias, traços mnêmicos, moções pulsionais - com um objeto moderno, o analista, trazendo a questão da transferência como reatualização de um passado. Por outro lado, na análise também se confrontam objetos antigos - objetos parciais e objetos edípicos - com textos modernos, atualizados na transferência sobre a fala (Green) do paciente em sessão.

Na experiência do anacronismo, como explicou Pérez-Oramas, problemas contemporáneos são confrontados a objetos antigos. Eles conversam entre si. A utilização da noção do "après-coup" freudiano introduz uma crítica radical da ilusão de que é possível se ter acesso ao passado e desvelar exatamente os problemas do passado. A descoberta do inconsciente por Freud, com sua atemporalidade, introduz uma heterocronia, um tempo estilhaçado. Este tempo fragmentado é assim descrito por Green (2000, p.11): "O sonho 'demonstra' a existência de um tempo estilhaçado, quer dizer de um tempo que não tem mais nada a ver com a ideia de uma sucessão ordenada segundo a tri-partição passado-presente-futuro". Pensamos, com Green, que Freud nunca parou de refletir sobre o tempo em toda sua obra. A noção do "après-coup" ("Nachtraglichkeit") é descrita com precisão no exemplo do famoso caso de Emma já em 1895! A ideia mais importante desse exemplo é que no caminho entre o sintoma e a lembrança inconsciente não há possibilidade de ligação direta. A lembrança inconsciente só vai se revelar "après-coup", por meio de uma lembrança pré-consciente que abre o acesso a ela. Assim, no caso de Emma, será somente o elemento significante "vestimenta", que é comum às duas cenas, que passará ao Consciente.

Com a introdução da ideia de atemporalidade do Inconsciente, que é atemporalidade de suas marcas e investimentos, Freud abre uma dupla referência à temporalidade psíquica: uma parcela da psique reconhece a passagem do tempo e outra parcela resiste a essa passagem, e por meio da regressão do sono, consegue não levá-la em conta. A "via régia" do sonho introduz simultaneamente a questão de um tipo de pensamento "em imagens". Freud fala de uma diferença de natureza entre esses dois tipos de pensamento. O pensamento do desejo no sonho é realização do desejo e opera na lógica das representações de coisa.

A nova temporalidade introduzida por Freud, com a descoberta do inconsciente, colocou um limite à experiência da origem, abordada na entrevista, pois essa experiência é barrada pelo esquecimento. Como nos mostra muito bem Peréz-Oramas, a "experiência da origem é a experiência da perda da origem". É essa perda que funda o "infantil-sexual-parcial" (Laplanche, 2007), o qual poderá ser reconstruído no "après-coup". Pérez-Oramas fala-nos de uma "epistemologia retrospectiva". O mecanismo do esquecimento e o recalcamento apagarão na amnésia infantil o despertar precoce demais de uma sexualidade presente desde a origem.

Em "Luto e melancolia", Freud (1917/1988) aborda a questão da perda do objeto. Esse texto acrescenta uma nova reflexão sobre a temporalidade ao considerar o efeito da consciência da morte do objeto no inconsciente. No caso da melancolia, a perda do objeto seria ignorada, diz Freud, e isso mostra que o Inconsciente também pode ser afetado pela morte. Quanto a esse ponto, Green chama-nos a atenção para o fato de que se o inconsciente ignora a morte é porque os desejos que nele existem não conhecem a usura do tempo. Com "Recordar, repetir e elaborar" (Freud, 1914/2005), surge outra faceta da memória: o paciente repete ao invés de recordar-se. A repetição é um substituto da memória. Essa noção fundamenta a ideia da transferência como repetição que substitui a rememoração. Com a repetição o caminho foi aberto para a "compulsão de repetição", a qual será estudada no monumental texto de Freud - "Além do princípio do prazer" (1920/2010). É o que Green chamou de "a virada dos anos 20" do pensamento de Freud. A partir daí virá a segunda tópica, com a criação do Id e do Superego. Este apresenta uma temporalidade complexa, uma vez que ele tem raízes no Id e resulta de uma cisão do Ego. O tempo verbal do Superego é o imperativo presente e, sobretudo, o futuro. Por outro lado, ele é fundado sobre a idealização do passado, com a questão do ideal do Ego.

Outro ponto importante da noção de "anacronismo" de Oramas é a importância dada ao aspecto da experiência vivida pelo sujeito diante da obra de arte. Diante de uma obra de arte, o sujeito é afetado, no sentido de que surgem nele afetos. O anacronismo carrega a ideia de um "laboratório", de um método de realização de experiências, para "vincular materiais para ver o que acontece". Essa ideia pode ser aproximada do método e da situação analítica como espaço intermediário de experiências (Winnicott, 1975).

O historiador da arte, assim como o psicanalista, trabalha com uma memória deformada. A importante noção de "lembrança encobridora" de Freud faz emergir dela, com o trabalho analítico, o material mnemônico deformado. O historiador da arte e o psicanalista trabalharão com essa deformação da memória para compreender o presente.

Pérez-Oramas distingue-se dos pensadores da história da arte canônica ao incorporar em seu pensamento ideias fundamentais da psicanálise. Mas é preciso lutar contra o que chama de "pânico da cronologia" (no fundo, pânico da perda da cronologia), o tabu do tempo cronológico e da busca de uma verdade material no passado.

Freud introduz a noção de "construção em análise" somente em 1937 (Freud, 1937/2010). Nesse texto ele vai relativizar a ideia da busca de uma verdade material existente no passado, introduzindo a noção de construção. Em "Moisés e o monoteísmo", Freud (1939/2010) introduz a oposição: verdade material versus verdade histórica. Esta aproxima a análise da experiência criativa e inventiva, uma experiência de reescrita da história do sujeito. No entanto, nessa reescrita não se trata de construir uma nova biografia do sujeito, mas de reatualizar elementos do passado no decorrer do processo analítico. A história do sujeito com "h" maiúsculo não é a história abordada na análise, mas o desenrolar da história da relação transferencial com o analista. É nesse desenrolar que aparecerão as reminiscências do passado.

A questão da construção da verdade histórica pode ser conectada ao que foi dito na entrevista sobre as formas simbólicas. Pareceu-me muito interessante essa ideia de "seres relacionais" como estatuto para as formas simbólicas: "não chegam a ser o que são enquanto não participam de uma relação". Chegamos então à questão da linguagem poética e da poesia.

A marca mnêmica de uma época anterior à aquisição da linguagem não poderia ser rememorada pela imaturidade das estruturas cerebrais da memória de então, sendo somente reproduzida sob um modo alucinatório.

No "Moisés...", Freud enriquece sua argumentação. Desde sua primeira inscrição, a marca mnêmica nunca parou de ser deformada. Com isso, a verdade procurada e postulada é ilusória, pois não reflete as condições que reinavam no momento de inscrição, perdidas para sempre sem reconstituição possível [...]. No entanto, a reativação das marcas traz o retorno, deformado, daquilo que existiu em dado momento e que se tornou inacessível sob sua forma original, mas da qual restam vestígios remanejados (Green, 2000, p.42-43).

Essas ideias psicanalíticas sobre as marcas da memória e a passagem do tempo podem ser aproximadas da noção de "survivance" (sobrevivência) de formas da arte antiga até tempos mais recentes da história da arte. Um filósofo da história da arte que me pareceu próximo das idéias de Oramas, Georges Didi-Huberman, escreveu uma obra monumental sobre a "survivance" (sobrevivência), estudando o pensamento de Aby Warburg - o título do livro já diz muito: A imagem sobrevivente - História da arte e tempo dos fantasmas segundo Aby Warburg.

A ideia de "sobrevivência" ("survivance") elaborada por Warburg introduz uma mudança radical na concepção da história da arte. Assim a caracteriza Didi-Huberman:

O modelo ideal dos "renascimentos", das "boas imitações" e das "belezas serenas" antigas, Warburg substituía por um modelo fantasmático ("fantomal") da história, aonde o tempo não estava mais calcado sobre a transmissão acadêmica de saberes, mas se exprimia por obsessões, "sobre-vivências", remanescências, volta de formas (2002, p.27-28).

Introdução de uma outra temporalidade no quadro da história da arte. Essa concepção também pode ser aplicada à história da psique. Quebra de homogeneidade do tempo, quebra da cronologia, abrindo a um "diálogo" entre os diferentes tempos.

Por outro lado, "a forma sobrevivente, no sentido de Warburg, não sobrevive triunfalmente à morte de suas concorrentes. Ao contrário, ela sobrevive sintomaticamente e fantasmaticamente a sua própria morte..." (Didi-Huberman, 2002, p.67).

 

Iminências poéticas e análise

A escuta de um poema pode produzir poesia ou não. Para Octavio Paz (2008), a poesia é o efeito da escuta do poema. Nessa maneira de ver, um poema pode ser poesia ou não, assim como outras obras de arte, um encontro etc. Para Oramas, o processo criativo de formas simbólicas, que são "seres relacionais", afeta o observador. Ele afirma: "as obras de arte não são ideias, são corpos poéticos, corpos retóricos". Coloca as obras de arte do lado de uma produção marcada por um corpo erógeno.

Concordo com ele e penso que a poesia é a essência do efeito esperado pela obra de arte no observador. Para fundamentar essa hipótese, vamos voltar às origens gregas da poesia, que marcaram nossa tradição ocidental.

A poesia grega arcaica, conhecida por nós por meio das obras de Hesíodo - Teogonia e Os trabalhos e os deuses -, pode ser útil para compreender esse efeito poético e também para abordarmos as relações entre linguagem poética e análise. Na recente tradução da Teogonia, direto do grego, feita por Jaa Torrano (2011), ele nos explica que essa poesia surgiu antes da invenção da moeda, da escrita e da "pólis". O poeta-cantor arcaico ("aedo") teria na palavra cantada dessa poesia "o poder de ultrapassar e superar todos os bloqueios e distâncias espaciais e temporais, um poder que só lhe é conferido pela Memória ('Mnemosyne'), através das palavras cantadas (Musas)" (Torrano, 2011, p.16).

Uma extrema importância era depositada nessa época no poeta, pois ele era, dentro dessa cultura oral, aquele que cultivava a Memória. Além disso, havia então o sentimento de um imenso poder da força da palavra. Esse poder da palavra se perdeu muito, em seguida, com a introdução da escrita. Pérez-Oramas nos cita o Fedro de Platão, no qual aparece a relação da escrita com a perda da memória. No mundo contemporâneo, dominado pelo virtual, Oramas fala dos problemas da ausência de memória.

Do mesmo modo que o aparecimento da escrita levou a certas perdas, podemos nos perguntar: o que a tecnologia da informação e o mundo virtual trarão como perda para nós? A resposta do entrevistado parece ser pessimista quanto à época contemporânea, devido à perda da distância, à eliminação do segredo, do silêncio e da privacidade. Ele nos fala da ilusão da exposição absoluta e imediata ("super-exposure"). Aliado a isso, Oramas traz o mito contemporâneo do "conhecimento global". Parece então que a linguagem poética, ou melhor, a dimensão poética da linguagem perdeu muito de sua importância em nossa época atual.

Os poetas líricos, que surgem quase um século depois de Hesíodo, criaram uma nova forma de manifestação da palavra, nascida com o aparecimento do alfabeto e da escrita, e com o surgimento da pólis. Na mesma época, como nos mostra Torrano, surge a prosa, com os primeiros pensadores jônicos e logógrafos. O pensamento racional começa a abrir novos caminhos, que levarão a novas exigências. Vejamos como Torrano nos apresenta essas mudanças, após o surgimento da escrita:

Com os pensadores a linguagem põe-se a caminho de tornar-se abstrato-conceitual, racional, hipotética e desencarnada [...]. Com os poetas líricos a linguagem perscruta a realidade do indivíduo humano, examina seus sentimentos, valores e motivações, até começar a transmutá-los e transportá-los, de forças divinas e cósmicas que eram [...] para um interiorizado páthos humano (amor, rivalidade, pudor, engano, loucura, furor etc) (2011, p.17).

A poesia se conecta com a interioridade, com o profundo do psiquismo humano. Penso que a proposta dessa curadoria para a próxima Bienal - Iminências poéticas - traz um grande alento para aqueles que consideram importante recuperar a dimensão da poesia na vida da cultura contemporânea.

A ideia de iminência, como aquilo que está a ponto de acontecer, acrescenta à dimensão poética um sentido profundo, pois a iminência é um emergir das profundezas interiores. Talvez pudéssemos falar, na linguagem de Fábio Herrmann, em uma "ruptura de campo". Essa dimensão da iminência caracteriza o emergir de outras temporalidades no observador. Na sessão de análise, aproxima-se para mim do que Green chamou de "transferência sobre a fala". A dimensão importante aqui é a da "passagem", do salto para a palavra na fala em sessão. Podemos supor que a iminência poética promoveria uma passagem de um sistema a outro, instante mítico em que representação de coisa/objeto, inconsciente, liga-se à representação de palavra, pré-consciente, desencadeando o afeto no sujeito. Também me parece válida a analogia com certos momentos privilegiados de uma análise, nos quais um novo e inesperado campo de sentido se abre após uma intervenção do analista, ou mesmo quando, em dado momento, o paciente escuta o que falou de outro modo totalmente novo para ele.

Penso que reencontramos nessa experiência da iminência poética algo próximo da vivência dos gregos antigos com a poesia arcaica e sua força mágica das palavras. Isso aponta para mim para outra ideia de Oramas, da qual me senti muito próximo, a da importância dos mitos. Importância essa também em psicanálise, como por exemplo, o mito da pulsão. Ele nos fala da eficácia dos mitos na arte e no psiquismo, pois produzem coisas.

Vivemos em uma época de excesso. A ideologia que sustenta o "mito do conhecimento global", a "ditadura da representação", como fala Pérez-Oramas, com a fetichização da ciência e sua ilusão de que tudo pode ser conhecido e de que informação é conhecimento, constitui uma ilusão ideológica que não deixa espaço para o não representável, para o mistério e o desconhecido.

Paradoxalmente, ou talvez por causa disso, o que vemos na clínica contemporânea? A chamada "clínica do vazio". Esta, que é para mim a clínica da intolerância ou mesmo do horror ao vazio, lida justamente com a questão do que não pode ser representado, pela falta de constituição no psiquismo de limites estáveis dentro/fora. O vazio, quando pode ser tolerado, é fonte de emergência de sentido, espaço potencial (Winnicott, 1975), é como esse silêncio de que fala Oramas que irrompe no meio da fala, iminência de..., iminência que pode ser poética e apontar para nosso "infinito íntimo" (Murilo Mendes, 1994).

Diante desse quadro do mundo atual, nada melhor do que a arte para desempenhar seu papel político de questionar as ilusões ideológicas vigentes. Dessa maneira, pareceu-me muito pertinente a proposta da curadoria para a Bienal de trazer obras que reivindiquem a demora, a distância, a fragmentação. Diria, usando a linguagem de Pérez-Oramas: com o intuito de criar "experiências do vazio como potencialidade da iminência".

Também devemos louvar a iniciativa de trazer a arte da "ausência da linguagem", um discurso antipsiquiátrico na arte para essa Bienal. "O que acontece quando a linguagem não é e a imagem não fala?", pergunta Oramas. No caso de Bispo do Rosário, é falado do sentido da "costura" que aparece em suas obras. Para Oramas, seria o de suturar a cisão entre a linguagem e a realidade. Talvez pudéssemos falar aqui, em uma visão lacaniana, da sutura, feita no real, do imaginário com o simbólico, que estariam desconectados, rasgados na psicose.

Enfim, penso que devemos agradecer a Perez-Oramas por essa entrevista de grande riqueza para nós, psicanalistas, e à Revista Brasileira de Psicanálise pela audaz iniciativa de mostrar que a arte pode aportar muitas reflexões inovadoras para os analistas, e que a psicanálise longe da cultura perderia sua força de vida e se tornaria mais uma disciplina da "ditadura dos especialistas".

 

Referências

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Winnicott, D.W. (1975). O brincar e a realidade. Rio de Janeiro: Imago.         [ Links ]

 

 

Correspondência:
José Martins Canelas Neto
Rua Baltazar da Veiga, 24
04510-000 São Paulo, SP
Tel: 11 3842-4769
josecanelas@uol.com.br

Recebido em 16.7.2012
Aceito em 31.7.2012

 

 

1 As citações das palavras empregadas por Pérez-Oramas virão sempre entre aspas. Todas as traduções das citações foram feitas pelo autor do artigo.

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