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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.46 no.3 São Paulo jul./set. 2012

 

COMENTÁRIOS SOBRE A ENTREVISTA

 

Se deixando levar pelas Passagens

 

Allowing oneself to be taken by the Passages

 

Dejándose llevar por los Pasajes

 

 

Henrique Honigsztejn

Membro efetivo da Sociedade Brasileira de Psicanálise do Rio de Janeiro SBPRJ

Correspondência

 

 


RESUMO

O metabolizado foi um ponto em destaque da entrevista. Daí foram surgindo ideias em mim quanto a troca emocional, afetiva no encontro com corpos - experiências que trazem um acréscimo ao ser, abrindo passagens para a circulação de mais vida, em um movimento como o de escrever: ponto de partida de novas metabolizações, novas passagens.

Palavras-chave: metabolismo; passagem; arte; corpo; troca; afeto; escrever.


ABSTRACT

The metabolized was a point in evidence of the interview, from which ideas materialized in me relating to the emotional and affective interchange in the encounter with bodies - experiences which add to the being, opening passages for the circulation of more life in a movement such as writing a starting point of new metabolisms, new passages.

Keywords: metabolism; passage; art; body; interchange; affection; writing.


RESUMEN

Lo metabolizado fue un punto destacado en la entrevista y a partir de ahí me fueron surgiendo ideas al respecto del intercambio emocional, afectivo en el encuentro con cuerpos - experiencias que traen un complemento al ser, abriendo pasajes para la circulación de más vida en un movimiento como el de escribir un punto de partida de nuevas metabolizaciones, nuevos pasajes.

Palabras clave: metabolismo; pasaje; arte; cuerpo; intercambio; afecto; escribir.


 

 

A partir da entrevista de Oramas e de sugestões do corpo editorial da Revista Brasileira de Psicanálise, desenvolvo algo.

Metabolizar, palavra muito usada na entrevista, tocou-me. Quanta coisa aí contida. Antes de tudo, um encontro e um movimento. O que permite - ou melhor, possibilita - se perguntar: metabolizei isso?

É uma disposição interna, de quem se possibilita ser afetado - e, assim, abrir passagens nas quais a obra circula e faz os seus trajetos, sua travessia -, ou algo do que afeta? Certamente, a colaboração dos dois seria a resposta mais prudente nos momentos em que espero alguma coisa mais.

Em "Tratamento psíquico" (1890/1988), diz Freud que a palavra vinda do hipnotizador voltava, verdadeiramente, a se tornar magia. Imagino, no início dos tempos (a palavra ainda em suas origens), um ser, no desespero de se ver - ou ver semelhante seu - sob ataque de um predador, tomado por um movimento corporal que resultasse em um grito, cujo soar teria um efeito de alerta ao próximo ou de alguma alteração do perigo que o ameaçava. Seria a marca mágica da palavra: a presença do corpo afetado, uma palavra originada de um ser plenamente voltado para o momento.

Goethe escreveu que um objeto bem contemplado abre em nós um novo órgão. Uma das fontes inspiradoras de Freud, Goethe expressava desse modo a importância do homem circular no mundo e, a partir dessa circulação, ir-se conhecendo. Certamente, a meu ver, por ser afetado e pelas respostas às suas ações afetadoras - entre elas, a fala.

Oramas expressa isso em outras palavras:

[...] é importante ter a experiência das coisas. Não queria fazer carreira acadêmica na França nem pensar a modernidade da América Latina à distância. Precisava encontrar os corpos que fazem sentido moderno: são os corpos de arte, corpos de obra, mas também corpos de comunidade.

O encontro produtor de afetos e impulsionado por eles. E vão se abrindo novos órgãos, que vão impulsionando para aquilo que ele refere: "... a escrita é aquilo que a experiência da arte e da estética produz em mim" - e, mais, ao falar do que entende como "curadoria: prática da escrita, de sentido, prática discursiva que confronta as ideias e as coisas para que sejam compreendidas através da transformação e do metabolismo da escrita".

Sente-se nessas palavras uma circulação de emoções, que impulsionam ideias e ações para trocas e encontros e mais experiências afetivas e, assim, novos canais se abrindo e tornando possíveis outras experiências de travessias, de metabolizações.

A escrita leva-me - certamente afetado por Freud e Goethe - à citação da primeira cena do Fausto I: "O que você herdou dos teus pais, conquiste-o, para possuí-lo" (Freud, 1913/1977a). É um modo de expressar o amor e a gratidão aos pais de um modo palpável, estético. Oramas marca bem seu percurso, em que as experiências são procuradas para o ser que ele é ir, por esse processo, conquistando o que os nossos criadores biológicos e espirituais nos colocaram à disposição: conquiste e tome posse. E ele nos convida a isso, criando vias por onde flanarmos. Travessias que se apresentam para aqueles que sabem descobri-las.

O que é esse flanar? Flanar lembra-me - e prefiro escrever - fluir. Então, já vou respondendo: poder circular pelas passagens sem urgência, sem se cegar ante ao que vai sendo encontrado. Quando colocou o encontro psicanalítico em uma condição em que associação livre e atenção flutuante são os portadores das comunicações, Freud de algum modo buscou criar um fluir entre dois seres, que iniciam em cada sessão um abandono do mundo habitual e um encontrar de seu caminhar na travessia.

Assim faz Bion (1967/1986), ao recomendar "sem memória, nem desejo", e ao escrever sobre a capacidade negativa: a não urgência por respostas ou por se chegar a um ponto que se coloca como referencial para alívio das angústias do percurso. É claro que o fluir é algo que se busca - e após quantas perturbações durante o caminhar pelas passagens pode-se chegar ao flanar? Penso que aquele que encontra uma caixa de correio - que pode perceber sinalizando lugar para enviar a última mensagem ao mundo que vai ser abandonado - correrá o risco: lançar-se-á em busca de algo a mais que, metabolizado, abrirá nele novos órgãos e o armará para novas conquistas.

Escrevendo, lembro-me que Freud se referia a si como um conquistador, como alguém se lançando, por percebê-los, a percursos nas passagens. O que era o lixo - a ser evitado pelos cientistas sérios da mente - foi para Freud o indício de um caminho a percorrer e, pelo estudo das histéricas e dos sonhos, foi conquistado um território que recebemos dos nossos pais e que ficava fora de nossa posse.

O que possibilita encontrar as aberturas por onde iniciar o percurso e o que possibilita a coragem da penetração? Volto a falar - fazendo certo esforço para não me apresentar sentimentaloide - em amor e gratidão aos pais, um empenho em expressar: "vou tornar meu tudo aquilo que vocês colocaram em mim e, junto, o narcisismo criativo de um ser que, preferido pela mãe, se revestiu de uma autoconfiança que não raramente atrai o êxito para si como ele mesmo" - escreveu Freud, referindo-se a Goethe.

Oramas torna clara a importância do encontro com os corpos, com os seres humanos e suas expressões na arte e todos os corpos que daí derivam. Circular entre as obras de arte, em um percurso não previamente traçado, sendo sobressaltado pelas surpresas de uma ruptura de cronologia, leva a experiências em que alguns despertarão para se dar conta que estão diante de corpos com os quais se chocam, e percorrer um espaço em movimento: "A ideia é ver como o presente projeta sua sombra sobre o passado e transforma um legado histórico em elemento da contemporaneidade".

O encontro com as obras de arte origina uma angústia. São - como fala Oramas -formas simbólicas e, assim: "seres relacionais. São seres de destinação: não chegam a ser o que são enquanto não participam da dinâmica de uma relação", e: "uma obra de arte só o é quando afetar um destinatário". Há a angústia: o que isso vai mexer em mim, o que vai me mudar? - e, também: o que vou fazer com isso (ou: a isso)?

Tenho a impressão que a ameaça expressa por Oramas (eliminação da distância, do secreto, da intimidade e seu efeito potencialmente catastrófico) teria nessa angústia a explicação: ela leva à busca da eliminação do que inquieta, do que causa inveja - e quanto mais... E assim busca-se a eliminação do próprio objeto, e assim elimina-se a distância, o secreto, a intimidade.

Não por acaso, nos regimes políticos baseados em fundamentos inabaláveis, em Weltanschauung estabelecida, fecham-se as portas às travessias e tudo se torna desnudado. Não há mais inquietação, pois o que é marcado como o estranho - o objeto objetador - é eliminado. Não há corpos a encontrar - os não objetadores são, por se firmarem em um único corpo, fiel a seu líder. Eliminar é o verbo presente naquele que se vê cercado pelos objetos, por corpos com os quais é impossível se encontrar: para ele, falam como se carregados de objeções, de negações a.

Não há, pois, como caminhar, não há a possibilidade de encontrar cada momento, viver a prudência que permite cada momento ser desfrutado no que contém de possibilidades: é alguém que não vai desfrutar da experiência da iminência (Oramas) pela impossibilidade da espera, pela impossibilidade de uma disposição que o torne sensível ao que emerge.

Arte, arte metabolizada e os caminhos assim abertos - atenção flutuante, a circulação metabolizada em cada um da obra de Freud - são, entre tantos outros, os meios de manter a condição interna de ser tocado, e assim responder ao que surge cada momento.

Penso na importância do tato. Ter tato é ser prudente, é ser tolerante, é ser empático. O tato seria o que, na imagem do psicanalista como escultor, per via de levare, permitiría ir retirando o material encobridor do ser e, afinal, permitir sua emergência. Tato implica ação, contato. Cada gesto, cada nuance de voz do analista, suas emoções emergindo no encontro tocam e possibilitam a emergência de um ser. Em "Novos caminhos da terapia psicanalítica" (1919/1977b), observa Freud, falando do paciente neurótico:

[...] traz-nos ao encontro uma vida anímica esfarrapada, rachada pelas resistências, e enquanto analisamos [...] essa vida de alma renasce plena, juntam-se a essa grande unidade, que chamamos seu Eu todas as suas excitações pulsionais, que dele estavam dissociadas e marginalizadas.

É o toque daquele que pôde pela experiência afinar seu Tato. Aprender, com a experiência, percorrer as travessias - que percebe como o convidando - e transmitir, por metabolizá-la, o que foi essa aventura.

O tato implica corpo que pode ser atravessado pelas emoções que se movimentam entre analista e seu paciente. Se o corpo do analista está obstruído - como, por exemplo, em uma contração de fúria narcísica por alguma oposição do paciente ou por alguma medicação -, não pode haver travessia, e, assim, sua palavra será uma construção mental de um processo secundário, não contatado com o primário e penosamente mantido na mente do analista. O tato só pode se expressar em um encontro em que o analista sente-se atravessado por seu senso ético-estético; seu impulso em relação ao paciente; seu entusiasmo: movimento em relação ao ser contido na pedra. Isso toma seu corpo e abre os caminhos para a palavra que toca.

O que Oramas escreve sobre a escrita, sobre o metabolizar, sobre o encontro com a forma simbólica - que assim ganhará um sentido - faz com que eu me lembre (não porque faleceu há pouco) de Carlos Fuentes a descrever o efeito que lhe causava a leitura anual que fazia do Quijote: influía em sua vida emocional e sexual. Creio que nunca li confissão tão clara do efeito de uma obra de arte em um ser.

Por ser meu livro preferido, busco - ora mais do que sempre - entender o que torna Quijote um livro único, nunca apagado entre outros. Parece-me que Cervantes se dirigiu a cada leitor, criou um elo que permite a ampliação para uma travessia, em que cada palavra é um chamado a prosseguir, e a uma intimidade.

Esse é um criador: cria seres humanos também. É o oposto dos impostores intelectuais, na expressão de Sokal, que buscam surgir grandiosos diante de leitores, fazendo-os sentirem-se ignorantes e perdidos. Esses são opostos a pessoas como Oramas, que fala a partir de suas experiências, de suas travessias, de suas metabolizações com uma clareza que convida a chegar perto. Chegar perto: mas sem a perda do secreto, do mistério.

Obrigadíssimo, Oramas. Obrigadíssimo por me apresentar pensamentos que meta-bolizei. E metabolizar gera metamorfoses - o que me lembra Freud escrevendo que o instinto de vida perturba o instinto de morte, e que a geração de novas formas de movimento é o antídoto ao que se fixa em rigidez.

Os pensamentos, as obras de arte, as expressões de amor apresentam-se ao receptor -e nele criam-se novas formas: e os seres se completam.

Freud escreve sobre a continuidade entre a vida intra e extrauterina muito maior que nos poderia fazer supor a dramática cesura do nascimento. O ser formado a partir de duas células primordiais (que mais complexa e bela do que essa criação) tem que ter um objeto com o qual se encontrar, que será seu guia, o possibilitador de que toda essa criação de Eros tenha continuidade, o seu Virgílio, a sua Beatriz, para - deixando para trás o mundo que habitava - circular por outras e outras passagens.

 

Referências

Bion, W. R. (1986). Notes on memory and desire. Psycho-analysis, Fórum. II, 3. [Notas sobre a memória e desejo (versão brasileira por P.C. Sandler e H. Fundament). Jornal de Psicanálise, 39, 33]. (Trabalho original publicado em 1967).         [ Links ]

Freud, S. (1977a). Totem e tabu. In S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. (Vol. 13). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1913).         [ Links ]

Freud, S. (1977b). Novos caminhos da terapia psicanalítica. In S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. (Vol. 17). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1919).         [ Links ]

Freud, S. (1988). Tratamiento psíquico. In S. Freud, Obras completas de Sigmund Freud. (Vol. 1). Buenos Aires: Amorrortu. (Trabalho original publicado em 1890).         [ Links ]

Fuentes, C. (1976). Cervantes o la crítica de la lectura. México: Joaquín Mortiz.         [ Links ]

Goethe, J. W. (1997). Fausto. (J.K. Segall, Trad.). Belo Horizonte/Rio de Janeiro: Villa Rica.         [ Links ]

Sokal, A. (1999). Imposturas intelectuais. Lisboa: Gradiva.         [ Links ]

 

 

Correspondência:
Henrique Honigsztejn
[Sociedade Brasileira de Psicanálise do Rio de Janeiro SBPRJ]
Rua Santa Clara, 50, 619
Copacabana, Rio de Janeiro, RJ
Tel: 21 2256-4936

Recebido em 3.7.2012
Aceito em 24.7.2012

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