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Revista Brasileira de Psicanálise

Print version ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.46 no.3 São Paulo July/Sept. 2012

 

ARTIGOS TEMÁTICOS: PASSAGENS II - ENTRE O MODERNO E O CONTEMPORÂNEO

 

Exumar um traço e fazer ouvir uma voz exige várias gerações1

 

Reviving a trace and making a voice heard requires several generations

 

Traer a la luz una huella profunda y lograr que una voz sea escuchada requiere de varias generaciones

 

 

Janine Altounian; Traduzido por Claudia Berliner

Ensaísta, tradutora. Integra a equipe editorial da Presses Universitaires de France, responsável pela versão francesa das obras completas de Freud. Membro fundador de AIRCRIGE, Associação Internacional de Pesquisa sobre Crimes contra Humanidade e Genocídio. Filha de pais armênios que escaparam do genocídio de 1915, nasceu em Paris e trabalha sobretudo na "tradução" do psiquismo de um trauma coletivo nos descendentes dos sobreviventes. Sua extensa obra sobre o tema acaba de ser enriquecida com o lançamento, em maio último, de De la cure à l'écriture - L' elaboration d'un héritage traumatique, Presses Universitaires de France, 2012

Correspondência

 

 


RESUMO

O artigo ilustra, por meio de um exemplo pessoal, que exumar um traço e fazer ouvir uma voz é uma gestação submetida ao tempo - tempo psíquico, tempo genealógico, tempo histórico dos acontecimentos sociopolíticos; ou seja, tempo que extrapola os limites da vida individual. Expõe as diferentes etapas por que teve de passar o testemunho de deportação de Vahram Altounian, sobrevivente do genocídio armênio, até sua publicação, em fac-símile, em uma edição universitária, no seio de um conjunto de elaborações, das quais foi o referente para sete beneficiados: seu tradutor, sua filha e cinco psicanalistas à escuta dos traumas da História.

Palavras-chave: transmissão; herança traumática; traços; tempo de latência; genocídio armênio; testemunho; condições políticas do país de acolhida.


ABSTRACT

The article illustrates, by way of a personal example, that reviving a trace and making a voice heard is an elaboration subject to time - psychic time, genealogical time, historical time of sociopolitical occurrences - time which spreads beyond the limits of an individual life. It exposes the different steps through which the testimony of deportation of Vahram Altounian, a survivor of the Armenian genocide, had to undergo until its publication as a facsimile in a university edition, in the heart of a group of elaborations. Of these, the testimony was reference for seven benefitted elements: his translator, his daughter and five psychoanalysts attentive to the traumas of History.

Keywords: transmission; traumatic heritage; traces; latency time; Armenian genocide; testimony; political conditions of the sheltering country.


RESUMEN

El artículo ilustra, a través de un ejemplo personal, que traer a la luz una huella y lograr que una voz sea escuchada es una gestión sometida al tiempo - tiempo psíquico, tiempo genealógico, tiempo histórico de los acontecimientos sociopolíticos, es decir, tiempo que extrapola los límites de la vida individual. Expone las diferentes etapas por las que tuvo que pasar el testigo de deportación de Vahram Altounian, sobreviviente del genocidio armenio, hasta su publicación en facsímil en una edición universitaria, en el seno de un conjunto de elaboraciones de las cuales fue la referencia para siete beneficiados: su traductor, su hija y cinco psicoanalistas que escuchan los traumas de la Historia.

Palabras clave: transmisión; herencia traumática; huellas; tiempo de latencia; genocidio armenio; testigo; condiciones políticas del país de acogida.


 

 

Os especialistas em literatura de testemunho relativa à Shoá2 (Luba Jurgenson 2003; Philippe Mesnard, 2007; Annie Dayan Rosenman, 2007; Catherine Coquio, 2005) destacam que algumas testemunhas - no que coincidem com o autor de A escrita ou a vida (Semprun, 1994) - só publicaram ou mesmo só escreveram o que tinham vivido muitos anos depois de sua saída dos campos; casos, por exemplo, de Jean Améry (1970)3, Charlotte Delbo (1970), Imre Kertész (1998) e Ruth Klüger (1992)4. Precisaram todos, evidentemente, criar distância - bem como instâncias de mediação em seu mundo interno - para conseguir se afastar um pouco daquilo a que tinham sobrevivido. Era preciso o transcurso de um longo período de tempo para que neles brotassem forças de sobrevivência, geradoras de invólucros psíquicos capazes de acolher na escrita lembranças terríveis; lembranças, no entanto, não compartilháveis com os daqui, estes que saíram indenes de um assassinato do humano; assassinato de uma parte deles mesmos. Esse tempo de latência - que separa a testemunha que eles foram daquele que, bem mais tarde, adquiriu a capacidade de testemunhar sobre si - é um tempo que faz a sucessão de gerações recomeçar do zero após um genocídio. O que significa que esse primeiro humano - o que, de certa forma, o sobrevivente é - já não pode se apoiar nos valores de sua cultura, ora destruída, mas precisa de tempo para reinventar a estrutura de sua vida, de sua cultura e de sua língua.Eu diria que essa temporalidade de uma latência - imprescindível entre a experiência dos sobreviventes e a possibilidade que eles adquirem de testemunhar - corresponde à temporalidade que, de modo análogo, a partir do sobrevivente mudo ou sufocado por sua ruminação mortífera, permitirá que ele gere sua descendência ou, mais precisamente, aqueles dentre seus descendentes que sentirão a necessidade de se instituir como herdeiros de sua história.

Penso que a gestação intrapsíquica do tempo que, por clivagem, opera um corte na psique individual, é comparável à outra gestação, transgeracional, de uma filiação que também se constitui por um corte, uma vez que opera naquele que se tornou apátrida, por meio de uma espécie de mergulhia em uma nova terra. Ambas as configurações temporais dependem de um mesmo renascimento das pulsões de vida que, surpreendentemente, exigem ser reinvestidas: seja para dar testemunho dos entes queridos desaparecidos, abandonados sem deixar traço, seja para parir aqueles a quem essa tarefa será inconscientemente delegada (Waintrater, 2003, p. 186).

Este texto propõe-se a ilustrar, por meio de um exemplo pessoal, a pertinência dessa gestação submetida ao tempo - tempo psíquico, tempo genealógico, tempo histórico dos acontecimentos sociopolíticos; tempo que extrapola os limites da vida individual. Nele, estão expostas, particularmente, as diferentes etapas por que teve de passar o testemunho de deportação de Vahram Altounian, sobrevivente do genocídio armênio, até sua publicação, em 2009, em fac-símile, em uma edição universitária, no seio de um conjunto de elaborações, das quais ele foi o referente para sete beneficiados: seu tradutor, sua filha e cinco psicanalistas à escuta dos traumas da História (Vahram Altounian & Janine Altounian, 2009). O fator temporal instaura uma pluralidade de laços - não apenas verticais: também horizontais - e a constituição desse agrupamento confirma, por um lado, o que um dos autores diz ao analisar esse relato: "Para ser pensada - escreve ele - a catástrofe tem de ser ecoada, amplificada, suscitar testemunhos e comentários, convocar múltiplas versões" (Kaës, 2009, p. 210).

Por outro lado, o incipit dessa obra "assinada conjuntamente por uma viva e por um morto"5, nas palavras de uma de suas comentadoras, chama assim a atenção do leitor para sua gênese transgeracional:

Esta obra, cujo conteúdo poderia intitular-se: "O genocídio no diário de um pai e na memória de sua filha", só pode se constituir mediante um trabalho de escrita que necessitou de duas gerações e de várias vozes para ver o dia e inscrever-se nestas páginas. Retranscrevemos essa escrita em dois tempos, atribuindo-a a Vahram e a Janine Altounian (V Altounian & J. Altounian, 2009, p. 5).

Veremos quais foram as circunstâncias em que essa assinatura conjunta - no mínimo, perturbadora - se impôs a essa recepção polifónica, que se propõe a dar conta, em e por essa reunião, da transmissão de uma herança traumática.

Retraçarei um itinerário emblemático em que - a partir de um escrito que permaneceu ignorado no fundo de um armário - o testemunho de uma experiência traumática iniciada em Bursa, pequena cidade da Ásia menor, "em uma quarta-feira, 10 de agosto de 1915", passou pela prova de sua tradução, de sua elaboração subjetiva por um herdeiro, para ser transmitido e desembocar, quase um século depois, em uma legibilidade compartilhada no seio dessa última recepção coletiva.

Para começar, citarei dois autores que se referem à transmissão de uma catástrofe histórica. Primeiramente, um filósofo.

Ao falar dos combatentes que voltaram silenciosos da Primeira Guerra Mundial, Walter Benjamin chama de "experiência" o que não pode ser transmitido ao herdeiro de um assassinato em massa como riqueza e sentido para sua própria vida. Ele lembra, precisamente, que:

O valor da experiência caiu, e isso em uma geração que entre 1914 e 1918 viveu uma das mais terríveis experiências da história universal [...]. Não se constatou, na época, que as pessoas voltavam mudas do campo de batalha? Mais pobres em experiências comunicáveis, e não mais ricas (Benjamin, 2000a, p. 365).

Essas palavras do filósofo aplicam-se, de fato, à falta de palavras entre meu pai e eu sobre como foi a sua experiência de um genocídio perpetrado justamente na frente oriental da Guerra de 146, e cujo relato feito por ele intitula-se precisamente: "10 de agosto de 1915, quarta-feira: tudo o que suportei, entre os anos 1915 e 1919". Em contrapartida, o conteúdo propriamente dito desse Diário, "descoberto" por mim uns sessenta anos após sua redação7, ilustra o quanto - independentemente dos indubitáveis fatores de sorte com que topou aquele que conseguiu sobreviver - sua aptidão para enfrentar as provações mortais dependeu mais de sua capacidade de amar sua herança cultural e psíquica do que da de investir com nostalgia seus sofrimentos, suas perdas e, com ódio impotente, seus algozes. Foi também essa inabalável fidelidade a si que sem dúvida lhe impôs tornar-se o cronista de um testemunho, para se subtrair tanto ao esquecimento quanto ao perigo da lembrança.

De fato, o que a presente exposição evocará é o destino póstumo desse Diário. Se o papel do testemunho é crucial nesse projeto de restauração do sentido, creio que esse manuscrito demonstra o que sustenta a aptidão a resistir à ameaça de morte - evidentemente, na ínfima medida em que o empreendimento de extermínio revele algumas negligências em sua execução. O sentido que ele restaura - particularmente, o de um apego irredutível do sujeito à sua herança e à sua identidade - com certeza remete à cena princeps da inumação do pai, cuja evocação leremos no extrato citado; mas sobretudo às transformações que, na geração seguinte, esse enterro do pai conheceu, e que convocou mais tarde sua expressão simbólica na colocação em palavras por parte do filho. Será uma restauração, em suma, dos laços afetivos, culturais e políticos, que em uma transmissão unem as gerações entre si.

No ensaio de Benjamin, anteriormente citado, "Experiência e pobreza", o filósofo denunciava a ruptura, consecutiva à Primeira Guerra Mundial, dessa transmissão da experiência. Para mostrar como seria, ao contrário, sua manutenção de uma geração a outra, ele começa por contar esta fábula, que nosso querido La Fontaine já nos tinha ensinado nos bancos de escola8:

Em nossos livros de leitura, havia a parábola de um velho que, no leito de morte, faz com que os filhos acreditem na existência de um tesouro escondido em seus vinhedos. Bastaria que eles procurassem. Os filhos cavam, cavam, mas não descobrem qualquer vestígio de tesouro. Com a chegada do outono, contudo, as vinhas produzem mais que qualquer outra na região. Só então compreendem que seu pai lhes quisera legar o fruto de sua experiência: a verdadeira riqueza não está no ouro, mas no trabalho. [...] Que moribundos ainda pronunciam hoje palavras tão imperecíveis, que se transmitem de geração em geração como um anel ancestral? (Benjamin, 2000a, p. 364-365).

A necessidade de associar o motivo do trabalho ao da transmissão - que Benjamin especifica, prioritariamente, como uma transmissão que exalta o valor do trabalho humano - deve-se certamente ao fato de que, além do extermínio dos homens, os regimes totalitários visam o aniquilamento do que a criatividade desse trabalho produziu, à ruína dos vínculos dos homens entre si e à história deles. Acaso os nazistas não inscreveram, nas portas de seus campos, o insulto desta antífrase profanadora e criminosa: "Arbeit macht frei" ("O trabalho liberta")? Também convém relacionar os motivos da transmissão e do trabalho: herdar para querer testemunhar exige arcar com um trabalho. Herdar é algo que se faz por um trabalho. Estes versos de Goethe9, citados em adágio por Freud como modalidade de transmissão psíquica, dizem-no de forma admirável: "O que herdaste de teus pais,/ conquista-o para fazê-lo teu,/ o que não se utiliza torna-se um pesado fardo" (Freud, 1913/1988, p. 379).

À pergunta: "quem escuta o testemunho de que foi testemunha o sobrevivente?", eu responderia, então: "somente aquele que realiza esse trabalho de apropriação de sua herança".

Meu segundo autor será um escritor alemão que ilustra minha hipótese precedente: em sua Histoire d'un Allemand, Sebastian Haffner (2002) relata os acontecimentos que viveu na Alemanha, entre 1914 e 1933. Enquanto seus amigos, juristas como ele, conseguiram se habituar ao terror nazista e ao próprio medo, o impacto do nazismo sobre sua vida privada acabou sendo tão devastador que Haffner não teve alternativa senão deixar seu país. Não se sentiu, a priori, pessoalmente perseguido pelo regime político, mas todos os investimentos que davam sentido a sua vida foram-lhe pouco a pouco sendo proibidos. O testemunho de seu relato leva, de fato, a pensar que, diferentemente de seus colegas, o que tornou impossível qualquer forma de adesão ao nacional-socialismo e o obrigou a emigrar foi o apego incondicional que ele nutria pela cultura alemã transmitida por seu pai, democrata íntegro; o relacionamento - misto de respeito e autonomia - que mantinha com esse pai e com sua família. Recusar os valores de seu pertencimento cultural e familiar foi algo impensável para Haffner. Acontece que um dos efeitos das ideologias totalitárias ou do extermínio sob o terror é precisamente induzir nos homens um impedimento de amar - de amar os objetos de sua tradição, ou seja, o que essa tradição cultivou e criou durante gerações até chegar a eles -, é censurar e castrar qualquer transmissão, de tal forma que amar torna-se para eles eminentemente custoso e mortalmente perigoso.

Feita essa introdução, apresento alguns extratos do testemunho, cujo destino relataremos. O ritmo, o estilo, está muito fragmentado, pois a limitação de espaço exigiu inúmeros cortes:

Em Haman [...] constatamos que as pessoas comiam gafanhotos. Moribundos, mortos por toda parte [...]. Meu pai estava muito doente [...] em pouco tempo já não havia gafanhotos, pois todo o mundo os tinha comido. E a deportação não terminava nunca [...]. Minha mãe disse: "nosso doente está muito gravemente enfermo e partirá da próxima vez" [...]. "O senhor ousa falar?", disse um policial e bateu na cabeça do meu pai. Minha mãe suplicou [...] que batessem nela e poupassem meu pai. Então, o policial bateu na minha mãe [...]. Seis dias depois, no dia da morte de meu pai, deportaram novamente. Batiam na nossa mãe. Nós, os dois irmãos, chorávamos. Não podíamos fazer nada, pois eles eram como uma matilha de cães. Diziam à minha mãe: "teu doente morreu". E minha mãe: "partiremos quando tivermos enterrado o morto". Eles replicaram: "não, vocês farão o mesmo que os outros". Os outros [.] abandonavam os mortos e durante a noite os chacais os devoravam. Percebi que haveria problemas e que era preciso fazer alguma coisa. Peguei um frasco de 75 dirhem (1 dirhem= 3g), enchi-o com óleo de rosas e fui até o chefe dos policias da deportação [...]. Ficamos um dia a mais. Abrimos uma fossa e pagamos cinco piastras ao padre. Assim enterramos meu pai [...]. Quinze dias depois, a deportação recomeçou [...]. Eles queimavam tudo [...]. Escondi-me ali, pois soube que mais adiante eles matavam as pessoas [...] tínhamos muita fome e sede. Percebi que íamos morrer de fome [...]. Em Racca, indicaram-nos uma hospedaria [...]. O que vimos? Por toda parte, as pessoas morriam de fome. Não dava para ficar dentro [...] tudo fedia a podridão [...]. Não tínhamos dinheiro, por isso começamos a comer ervas [...]. Percebemos que íamos morrer. Dávamos dois passos e caíamos. Minha mãe pensou: "se for para eu morrer, morro, mas vocês não!". Assim foi que ela nos deu, nós dois, aos árabes (Altounian, 1982)10.

 

 

 

 

Aos poucos, esse diário paterno - cuja escrita, aparentemente, permaneceu desconhecida para mim enquanto seu autor viveu - foi estranhamente adquirindo uma vocação de testemunhar de além-túmulo. O ato fundador de escritor que tinha animado esse pai certamente determinava, sem que ele soubesse, a transmissão de sua memória e a reconstrução psíquica do mundo de sua filha - duvido, porém, que esse gesto produtor de relatos posteriores tenha alguma vez sido para ele consciente em termos de suas consequências. É provável que o Diário tenha representado para seu redator apenas um meio de continuar vivendo, uma vez selado em uma "caderneta escolar"11, fora dele, o exame crítico das provações mortais de que ele não deveria mais se lembrar. Embora, para mim, esse manuscrito tenha contribuído para uma subjetivação tanto de minha história quanto, a posteriori, da história do narrador, seu destino na verdade se decidiu no momento em que um acontecimento político parisiense de setembro de 1981 - a tomada de reféns no consulado da Turquia - veio despertar em mim a reminiscência de uma lembrança infantil. Antes de descrever os diversos momentos de epifania desse manuscrito, detenho-me primeiramente nessa reminiscência, decisiva para sua primeira publicação.

Foi o encontro de um fato objetivo atual com o traço psíquico de uma palavra outrora escutada que veio confirmar a temporalidade transgeracional de seus efeitos, isto é, a influência fundamental exercida sobre o processo de transmissão de uma herança, tanto pela atualidade dos acontecimentos contemporâneos quanto por uma concepção fecunda do inconsciente, segundo a qual:

Nada pode ser abolido que não apareça algumas gerações depois [...] como signo propriamente do que não pode ser transmitido na ordem simbólica [...] A carta sempre chega a seu destinatário, mesmo que este não tenha sido constituído como tal pelo destinador: o traço segue seu caminho em meio aos outros até que um destinatário se reconheça como tal (Kaës, 1993, p. 45).

Com efeito, quando esse chamado ato "terrorista" irrompeu no espaço político parisiense - esboçando, como ato de resistência, aquilo que foi denominado "terrorismo publicitário" -, quando ele rompeu, no que tinha se tornado "meu" país, um silêncio de mais de meio século12 sobre o genocídio armênio, e interrogou então um silêncio instalado em mim; senti subitamente que, se realizado enquanto ele vivia, meu pai teria aprovado aquele ato. Recuperei, particularmente, em minha memória difusa, a lembrança muito longínqua do prazer de resistente com que aquele homem contava a seus amigos a tomada, em 1896, do Banco Otomano em Constantinopla13. Identificando-me espontaneamente com a satisfação com que ele evocava um feito de que se orgulhava, senti-me então no direito de tirar de sua clandestinidade protetora essa relíquia que eu tinha descoberto.

Tal superposição temporal de um acontecimento de 1981, despertando a lembrança de um relato paterno que comemorava um acontecimento de 1896, confirma a existência do "encontro marcado tácito", postulada por Benjamin entre "as gerações precedentes e a nossa". Em suas reflexões "Sobre o conceito de história", ele desenvolveu, sobretudo, a ideia - próxima da concepção freudiana do a posteriori - de que o tempo da vida e o desenvolvimento do ser humano apenas revelam, trazem à tona pontos nodais do passado, que já continham em si todos os seus elementos em germe.

As vozes a que damos ouvidos não trazem ecos de vozes que emudeceram? [...] Se assim é, existe um encontro marcado tácito entre as gerações precedentes e a nossa [...]. A nós, assim como a cada geração anterior, foi concedida uma frágil força messiânica para a qual o passado dirige um apelo (Benjamin, 2000b, p. 428).

Exporei, a seguir, a cronologia das etapas dessa transmissão estranhamente tenaz, ao longo da qual pude herdar um relato, a bem dizer sem signatário, uma espécie de "garrafa lançada ao mar" por um pai; um legado percebido, recolhido, levado à tradução e publicado por sua filha, cerca de sessenta anos mais tarde, depois de uma lembrança infantil ter ganhado todo o seu realce por ocasião de um acontecimento político.

Em 1978, oito anos após o falecimento de meu pai, e no correr de um trabalho analítico, eu quis explorar o meio intelectual armênio, quando "me veio a ideia"14 - talvez por causa da angústia que um saber inconsciente a esse respeito espalhava - de que minha mãe um dia mencionara, com certo tom de desaprovação, um manuscrito deixado por meu pai. Sua depreciação muda parecia dizer: "para que ter escrito se 'aquilo' aconteceu, se o mundo deixou que ocorresse e se nós perdemos tudo, para que voltar àquilo!".

Eu quis vê-lo, ela foi buscar.

Mas, e então: o que fazer com aquele objeto temível, sagrado? Tinha eu o direito de tocar naquelas páginas tão frágeis? Para quem tinham sido escritas? Com que finalidade? Em que circunstâncias, com que disposição de espírito? A que fados e cuidados deviam sua conservação há tantos anos no fundo de um armário? A quem fazer essas perguntas? Acaso a ausência de qualquer mediação para acompanhar, para introduzir no mundo dos vivos aquelas folhas angustiantes não reproduzia a ausência de qualquer protetor junto dos órfãos que, nos desertos, tinham sobrevivido ao extermínio de seus pais? Aquele caderno - órfão, também ele - me interrogava, me pedia para cuidar dele. Tinha medo dele como de um meteorito caído de outro planeta - mas também tinha dó: não podia deixá-lo daquele jeito, inerte, sozinho em tamanho vazio acústico, mudo. O autor daquele texto e de meus dias fizera questão de solicitar sua memória dolorosa para contar a história de uma resistência à qual eu devia meu nascimento, e que eu tinha de honrar, saldando uma dívida.

Saí em busca de um tradutor: aquele texto, para mim hermético, estava escrito em caracteres armênios, mas em língua turca15. Quando recebi a versão traduzida, descobri brutalmente o que aquelas páginas enigmáticas revelavam; decifrei em francês o que tinha escrito aquele homem que eu pouco conhecera, mas que eu reconhecia plenamente em suas linhas; caí em um estado de suspensão sem referências, uma espécie de desrealização que me lançou em uma segunda análise. Quando esse passado terrível do pai sobrevivente - pressentido em casa, vivido em uma espécie de irrealidade prudentemente separada de você por clivagem - se apresenta em uma distância de leitura - preto no branco, na língua que lhe ensinou a poesia e o pensar -, a realidade dele salta em sua cara e há, então, um desmoronamento que se impõe violentamente à sua consciência e liga seu tempo presente àquele que - poucos anos antes de seu nascimento; infinitamente perto de você - conheceu esse lado fora da humanidade do mundo.

Dispondo dessa tradução e tendo recuperado em mim, por ocasião do acontecimento escandaloso de 1981, a lembrança de um pai admirador dos resistentes de 1896, levei o Diário à revista Temps Modernes. Eles o publicaram em 1982 16 - acompanhado de um posfácio e de notas indispensáveis de seu tradutor, Krikor Beledian - e de uma introdução minha, em que eu já destacava como o adolescente de Bursa tinha, nos piores momentos, afirmado seu apego aos valores de sua família, garantia do sentido de sua vida 17, o que deve ter lhe induzido a decisão de redigir aquele testemunho em 1920, pouco depois de sua chegada à França, em 1919 18.

Minha família e eu tínhamos, assim, nos beneficiado de vários privilégios que me tinham permitido exumar um traço e fazê-lo falar:

♦ meu avô assassinado pudera - graças à "sorte", à temeridade de sua mulher, que enfrentou os matadores para respeitar um ritual da humanidade, e à perspicácia de seu filho adolescente - receber uma sepultura e uma prece;

♦ esse filho teve a coragem de registrar escrupulosamente a história da deportação deles;

♦ eu tive o benefício de uma atualidade que me autorizava a publicá-la;

♦ e da instrução que me possibilitava fazê-lo.

Por ocasião da "publicação" - em todos os sentidos do termo - desse manuscrito, que dotava o terceiro democrático do poder de dar todo o seu alcance ao espaço aberto pelo ato político, pude reviver a experiência salvadora de que outrora eu me beneficiara em L'École de la République (Altounian, 2001; 2005a). Com seus ideais universalistas, a escola da república decerto ignorava a história da pequena aluna armênia que eu era, mas - com a condição de que ela se submetesse a seus ensinamentos - ela lhe concedia "democraticamente" um lugar, um lugar àquela que não tinha nenhum em casa. Assim sendo, fiquei sabendo que o manuscrito fora qualificado de "texto selvagem" por Simone de Beauvoir, e tinha sido objeto de certa dúvida da parte dela. Contudo, ela o publicou. Ela encarnava, em minha vida de estudante e depois de mulher, aquelas professoras da École de Jules Ferry, "boas embora seguras demais" 19, em geral tolerantes em relação ao que não entendiam.

Depois de retomado, em 1990, em meu primeiro livro (Altounian, 2003a), esse relato deu lugar a um incidente totalmente inesperado, que teve como consequência essa terceira e última publicação, na qual, noventa anos após sua redação, ele terminou, por fim, seu percurso insistente: em 2007, durante uma semana de trabalhos com psicanalistas de Roma, uma delas expressou o desejo de publicar uma pequena coletânea italiana (V. Altounian & J. Altounian, 2007) em que figurasse, entre outros, o relato paterno em sua integridade e um de meus artigos que o tinham dado a conhecer a essa psicanalista. Quando o livro chegou a minhas mãos, descobri - inicialmente com estupor e contrariedade - a designação da autoria, que o editor não considerara útil precisar em seu contrato e que passara para "Janine e Vahram Altounian". Após alguns instantes, acabei não só reconhecendo que essa denominação era plenamente justificada pelo subtítulo da pequena coletânea: "O genocídio armênio no diário de um pai e na memória de uma filha", mas que uma espécie de acontecimento psíquico ocorria assim, vindo do outro e do estrangeiro, um acontecimento que era preciso dar a conhecer na França mediante uma publicação do "mesmo autor bicéfalo".

Esse escrito que deu continuidade, para além da morte de seu escritor, a seu desejo de testemunhar, provocando um posterior "trabalho" de escrita, de tradução e de publicação, faz pensar na noção de "livro 1", "texto geralmente escrito imediatamente depois do campo, na urgência", noção que Luba Jurgenson20 define como "primeiro livro como uma memória prótese", segundo a expressão de Primo Levi. Quando ela declara: "É preciso haver uma conversão para que o sobrevivente possa tomar a palavra, [...] o esquecimento da experiência é a condição para o surgimento de um texto", podemos considerar que foi na obra coletiva, "livro 2", que Vahram Altounian, noventa anos após o seu "escrito 1", pode "tomar a palavra" no seio de um agrupamento de ouvintes; com a expressão "no seio de" devendo ser entendida aqui ao pé da letra, porque não só o portar desses seis pesquisadores e amigos acompanha, sustenta seu testemunho perante o mundo, mas sua tradução, versão na qual esse relato fora até então publicada, vê-se acrescida aqui do fac-símile de sua versão original.

Devo esclarecer que o próprio editor (no caso, o diretor da Presses Universitaires de France) desejou a reprodução viva desse testemunho em uma edição - na qual eu, evidentemente, não teria ousado pensar e, menos ainda, exigir - "universitária", em que o escritor dessas terríveis páginas confina com os textos freudianos dos quais sou cotradutora desde 1970 (Altounian, 2003c). Essa inserção do fac-símile do manuscrito, que devo, repito, a uma iniciativa democrática republicana, figura metaforicamente a inclusão, no mundo da História, do corpo daqueles que foram excluídos deste mundo.

Essa inclusão é fruto da injunção de "trabalhar", proferida pelo ancestral e transmitida até sua neta, que assim presta-lhe homenagem. Por meio de sua presença - sobre um fundo de cor sépia, com páginas de bordas danificadas pelos anos -, ela torna manifesto o resultado tangível de um "trabalho" de exumação que durou três gerações.

Antes de concluir, gostaria de temperar o otimismo que poderia nascer do destino bastante jubiloso desse testemunho. É certo que já expressei muitas vezes a hipótese de que uma transmissão traumática só pode ser elaborada e adquirir voz política se for transferida em um espaço tempo "suficientemente democrático" 21. Ora, a meu ver isso faz parte de uma estratégia que se tornou caduca para os atuais herdeiros de rupturas violentas, privados de um país "de acolhida" desse tipo. Haverá ainda algum sentido em traduzir e transmitir a herança dos antepassados assassinados no silêncio do mundo, ou de países, como França, cuja Realpolitik dos anos 1915/16 ditou o oportunismo de um laisser-faire, se o número de sem-tetos com que cruzamos ao sair de casa cresce sem parar, se o mundo em que vivemos elimina alguns de seus habitantes sem fazer alarde, e se a integração por meio da escola laica, outrora vivida por mim como "mãe adotiva dos sinistrados" (Altounian, 2005b), é uma realidade ultrapassada? Meu trabalho já não é representativo de um percurso possível. Não ignoro que os primeiros refugiados armênios dos anos 20 - os sobreviventes "acolhidos" por necessidade de mão de obra - foram enfiados em campos no sul de França em condições de vida deploráveis. Contudo, nessa França "de modelo republicano", eles puderam exercer sua coragem e engenhosidade para sair da miséria, tornarem-se cidadãos franceses e permitirem que seus filhos - eu, portanto - pudessem ter acesso aos estudos. Nesta época, em que grassam desemprego e exclusão, os imigrantes são mandados de volta a países onde morrerão de fome ou por causa de violências.

Eu pensava que a única chance "póstuma" que a memória dos indivíduos que se tornaram "supérfluos/descartáveis"- para retomar os termos empregados em alguns trabalhos sobre o (pós)totalitarismo globalizado (Caloz-Tschopp, 2008; Ogilvie, 1995, 2003) - ainda tinha era ver-se reinserida, a posteriori, pelos portadores dessa herança no espaço simbólico dos lugares "relativamente democráticos" dos "não extermináveis" do momento. Acontece que a crença em minha hipótese perdeu pertinência, a meu ver: o futuro dessas instituições relativamente democráticas dos países "de acolhida" - que favoreciam as transferências a elas e, portanto, a transmissão ao mundo do escândalo do extermínio e de seus suplícios - é, parece-me, bastante incerto.

 

Referências

Akçam, T. (2008, nov.). Un acte honteux. Le génocide arménien et la question de la responsabilité turque. [s.l.]: Denoël.

Altounian, J. (1975, dez.). Comment peut-on être Arménien?. Les Temps Modernes, 353.

Altounian, J. (1977, ago/set.). Une Arménienne à l'école. Les Temps Modernes, 373/374.

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Correspondência:
Janine Altounian
18, av. Gl. Leclerc
Paris 75014
France

Recebido em 26.3.2012
Aceito em 24.4.2012

 

 

1 Texto apresentado originalmente na série de conferências Testimony and survival, organizadas pela International Red Cross e pelo Red Crescent Museum e realizadas em Genebra, em abril de 2010.
2 "Catástrofe", "calamidade", em hebraico. Tem sido preferencialmente utilizada por estudiosos judeus, que consideram desgastado, pelo excesso de uso, o termo "holocausto". (N. T.)
3 Cf. um estudo desse livro no capítulo "L' extermination des hommes invalide leur langue par implosion du lien social" (Altounian, 2000).
4 Cf. um estudo desse livro no capítulo IV de J. Altounian (2005a).
5 Retomo aqui a expressão impactante de uma nota de leitura de Carine Trévisan (2009, p. 16): "esse livro é assinado conjuntamente por uma viva e por um morto, Janine Altounian e seu pai Vahram Altounian. Ao lado desse duo, são convocadas outras vozes: ...".
6 Cumpre lembrar que, na frente oriental, a Primeira Guerra Mundial serviu de anteparo para ocultar a per-petração do genocídio armênio de 1915, cometido pelos Jovens Turcos, então aliados das potências centrais: Áustria e, particularmente, a Alemanha, que lhes forneceu significativo apoio.
7 Vide, abaixo, a cronologia da história desse manuscrito.
8 Peço que me perdoem, cedo ao prazer de citar os versos de La Fontaine em O lavrador e seus filhos: "Trabalhai, empenhai-vos com afinco:/ é esta a riqueza que menos falta./ Um rico lavrador, ao ver aproximar-se a morte,/ chamou seus filhos e disse-lhes:/ 'Cuidado! Não deveis vender a vossa herança, que vem dos nossos avós./ Nesse campo está escondido um tesouro,/ embora eu ignore onde se encontra. Mas com um pouco de esforço,/ conseguireis encontrá-lo./ Depois da colheita, cavai bem o vosso campo sem deixar um palmo sequer por remover.'/ Entretanto, o pai morreu. Os filhos cavaram tão bem o campo que,/ no ano seguinte, a colheita foi mais que abundante./ O tesouro não o encontraram, porque não existia,/ mas o seu pai foi sábio ao ensinar-lhes, antes de morrer,/ que o trabalho é tesouro".
9 Goethe, Fausto I, verso 682/4: "Was du ererbt von deinen Vãtern hast,/Erwirb es, um es zu besitzen./ Was man nicht nützt ist eine schwere Last"
10 Reeditado em Altounian (2003, pp. 96-100) e em uma versão revista em Mémoires du Génocide arménien (V. Altounian & J. Altounian, 2009, pp. 13-41). Alguns aspectos desse manuscrito são comentados em um novo livro recém-lançado (Altounian, 2012).
11 Vide a descrição feita pelo tradutor: Mémoires du génocide arménien (V. Altounian & J. Altounian, 2009, p. 99).
12 Que foi o do tratado de Lausanne (1923), que, com a criação da Turquia republicana sobre as ruínas do antigo Império Otomano, anulava o tratado de Sèvres não ratificado (1920), que previa a independência da Armênia, bem como sanções contra os perpetradores do genocídio armênio de 1915 até aproximadamente 1965, ano em que foi comemorado - em Erevan e também na diáspora - o quinquagésimo aniversário do genocídio, seguido da publicação, em 1976, de uma das primeiras obras que teve alguma repercussão na mídia: J. M. Carzou, Arménie 1915. Un génocide exemplaire (1975/2006). Esse genocídio, perpetrado pelo governo dos Jovens Turcos - no poder entre 1908 e 1918 -, continua não sendo reconhecido pelo estado turco atual, herdeiro do Império Otomano, que, no entanto, desfruta, no concerto das nações preocupadas com a manutenção de suas influências no Oriente Médio, do crédito concedido aos Estados ditos "democráticos" e, portanto, da caução que é dada implicitamente a essa denegação. Uma ilustração do poder dessa denegação sobre as diferentes orientações políticas da França pode ser vista no afã deste ou daquele partido em obstruir o projeto de lei do Parlamento, de 29 de maio de 1998: "França reconhece publicamente o genocídio armênio de 1915", até sua adoção definitiva (depois de dois anos e meio!), em 18 de janeiro de 2001 (La Survivance / Traduire le trauma collectif, Altounian, 2000, p. 2-3). O senado francês parecia, com efeito, encontrar obstáculos intransponíveis para ratificar esse projeto de lei, que, no entanto, votado por unanimidade, dava aos armênios, depois de mais de oitenta anos, a oportunidade de ouvir - para a desgraça das "relações exteriores" - seu país de acolhida tomar oficialmente posição em relação às circunstâncias que os tinham levado até ele. Era motivo de alegria constatar os efeitos inesperados, tragicómicos daquela miraculosa declaração: aquele voto tinha o duplo mérito de autenticar, pelas violentas reações que provocava na Turquia, o autor e o local, ainda que não designados, desse genocídio e de criar, assim, um embaraço diplomático que revelava as bases negadoras da Realpolitik ocidental. As mesmas peripécias agitavam o Parlamento europeu, que tendo formulado, em junho de 1987, o reconhecimento desse genocídio pela Turquia como condição para sua adesão à União Europeia, votava, em outubro de 2001, um relatório que não continha essa cláusula e, portanto, a apagava, para restabelecê-la em fevereiro de 2002. A reunião de cúpula de Copenhague, de dezembro de 2002, deixa de mencioná-lo. Em 17 de dezembro de 2004, por ocasião de sua decisão a favor da abertura das negociações para a adesão da Turquia à União Europeia, esta absolutamente não o levou em conta, tampouco, adendos concernentes ao reconhecimento do genocídio armênio, que o Parlamento Europeu anexara, em 15 de dezembro de 2004, a seu voto a favor da abertura das negociações. O projeto de lei votado na França pela Assembleia Nacional, em 12 de outubro de 2006, que visava penalizar a contestação da realidade do genocídio armênio - seguindo o exemplo da lei Gayssot - desencadeou um forte descontentamento, tanto da parte do governo turco quanto de um grupo de historiadores reunidos em torno da associação "Libertépour l'histoire" (Liberdade para a história). Nem o assassinato, em 19 de janeiro de 2007, em Istambul, de Hrant Dink, jornalista armênio que evocou de forma muito moderada o genocídio de 1915, nem os processos regulares na Turquia contra os defensores dos direitos humanos (em aplicação do artigo 301 do código penal) conseguiram pór fim a essa polêmica nefasta. Dois acontecimentos recentes acabam de atacar a denegação da posição oficial turca: a obra do sociólogo turco Taner Akçam: Un acte honteux. Le génocide arménien et la question de la responsabilité turque (2008); e o número crescente de signatários de uma petição lançada na internet, em dezembro de 2008, por quatro intelectuais turcos, "pedindo perdão aos irmãos e irmãs armênios". Em outubro de 2009, Armênia e Turquia assinaram dois protocolos visando estabelecer relações diplomáticas e "normalizar" as relações bilaterais. Mas, desde abril de 2010, em decorrência de condições impostas pela Turquia para sua ratificação, esses protocolos estão congelados. Apesar disso, as autoridades turcas declaram ter dado mostras de abertura e procuram assim engambelar os partidários de sua integração à União Europeia. As relações de força desiguais entre Armênia e Turquia pesam a favor desta, que permanece até hoje firmemente apegada à sua recusa de assumir seu passado. Entre várias obras de historiadores sobre o genocídio dos armênios do Império Otomano, citamos os mais recentes: Dadrian (1996); Ternon (1996); Bensoussan, Mouradian e Ternon (2003); Kévorkian (2006); Mouradian e Kunth (2010); Çetin (2006); Odian (2010); Çetin e Altinay (2011).
13 Diante da continuação dos massacres, em 1896, nas regiões de Van, Mouch, Killis e Egin, o partido revolucionário Dachnak buscava um meio de obrigar as potências aliadas a intervir. Na quarta-feira, 26 de agosto de 1896, às 13 horas, os Dashnaks ocuparam o Banco Otomano, onde predominavam os investimentos britânicos e franceses.
14 No sentido preciso do "Einfall" freudiano, traduzido nas Œuvres Complètes de Freud/Psychanalyse, Presses Universitaires de France, por "idée incidente" (ideia incidente) ou "idée qui vient" (ideia que vem).
15 Ver a contribuição de Krikor Beledian (2009).
16 Revista Les Temps Modernes (Altounian, 1982); reeditado em Altounian (2003a, pp. 81-118). A acolhida desse manuscrito por essa revista foi evidentemente favorecida pela publicação prévia de três artigos: (Altounian, 1975, 1977, 1978); também republicados em Altounian (2003a).
17 "Encontro nestas páginas parte dos relatos que povoaram minha infância e a de todos os armênios de minha idade. Gostava apaixonadamente de escutar meu pai, suas evocações bruscamente evasivas lançavam um véu sobre as imagens insuportáveis, mas seu olhar cerrado, a contenção de seus gestos, a emoção secreta e a determinação de sua voz me falavam de outro lugar que, antes de ficar aterrorizado, ele tinha inocentemente amado. Eu ouvia naquilo a saudade de um país do qual ele fora, para sempre, arrancado, abandonando ali -juntamente com 'nossas casas' e o corpo do 'pai' que, por pouco, não foi enterrado - os sonhos de sua juventude, as raízes de sua vida. Quando a distância entre a reconquista de cada leitura recalca suficientemente o afluxo da emoção para dar lugar em mim à leitora profana e curiosa, entendo o intenso prazer que eu sentia, quando criança, ao escutar o autor desse diário reviver, etapa por etapa, a epopeia em meio a qual, apesar de tudo, eu nasci. Havia algo exaltante no fato de que a vida - assombro, humilde alimento outra vez partilhado na feira colorida de esperança -, seja uma implacável aventura a decifrar e que sobreviver à opressão fosse para nós todos, armênios, um imperativo incontornável. Em memória desse avô sepultado não sei onde, a de todos os armênios, cujo calvário e cujo fim esse relato sugere com uma sobriedade perturbadora, em honra ao espírito de luta e de resistência que o adolescente de Bursa foi buscar dentro de si a fim de manter, nos piores momentos, a vida e seu sentido, considerei ser meu dever tornar público seu diário íntimo. Meu pai que jamais demonstrou qualquer simpatia especial pela literatura - criticando sua impotência, ou até sua ambiguidade diante das imposturas dos poderosos - quis, sem dúvida, pelo ato de escrever, jugular, manter à distância, exorcizar o terror 'suportado'. Ao fixar no papel a incandescência da memória, ele tentou temporizar o tempo de uma geração" (Altounian, 2003, p. 83).
18 Ver a contribuição de Krikor Beledian (2009): Traduire un témoignage écrit dans la langue des autres.
19 Ver minha experiência de aluna em Altounian (2003b, p. 147): "Armênia da França, em 1938, como tantos filhos de desenraizados de nossos dias, com meus quatro anos, minhas tranças ruivas feitas por mamãe e meus olhos escuros bem abertos, emissários do pai, tive de transpor as portas da escola maternal, no número 7 da rue de la Jussienne, tal como se pode, nessa idade, enfrentar um país estrangeiro, ameaçador, sobre o qual apenas entendemos que ele será o único território dos dias vindouros. As florestas escuras onde são abandonadas as menininhas dos contos de fadas às vezes vão dar em lindas clareiras: ali encontrei essas fadas boas, embora seguras demais, minhas professoras, e fui aos poucos me tornando aquela que não conseguia traduzir para os seus familiares, em armênio, nenhum desses afetos dilacerantes ou radiantes que iniciam para o mundo, nenhum trabalho do pensamento, nenhuma evasão do imaginário".
20 Cf. Prstojevic (s.d.). Mestre de conferências de literatura russa na Sorbonne - Paris IV, romancista e tradu-tora, Luba Jurgenson é a autora de L'expérience concentrationnaire, est-elle indicible? (Jurgenson, 2003).
21 No sentido da mãe "suficientemente boa", do psicanalista Winnicott.

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