SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.46 número3La travesía de la creación del personaje: posibles aproximaciones entre teatro y psicoanálisisBion em nove lições: lendo Transformações índice de autoresíndice de materiabúsqueda de artículos
Home Pagelista alfabética de revistas  

Revista Brasileira de Psicanálise

versión impresa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.46 no.3 São Paulo jul./set. 2012

 

INTERCÂMBIO

 

André Green1: a clínica contemporânea e o enquadre interno do analista

 

 

entrevista2 realizada por Fernando UrribarriI; Traduzido por Claudia Berliner

IPsicanalista (Asociación Psicoanalítica Argentina APA), professor de pós-graduação na Universidad de Buenos Aires e "Maitre de conference asociée" na Universidade de Paris X (França), dirige a coleção "Pensamiento contemporáneo" na EUdeBA (Editorial Universitaria de Buenos Aires) e a publicação, em Les Editions d'Itaque (França), dos livros de André Green, foi o colaborador mais próximo de André Green nos últimos anos de sua vida.

Correspondência

 

 

André Green assinala, na Introdução de seu livro Orientações para uma psicanálise contemporânea (Imago, 2008), que este se baseou "numa série de conversas que mantive com Fernando Urribarri em setembro de 2001 para a preparação deste livro". Essas conversas, realizadas ao longo de uma semana durante sete horas por dia, percorreram os desafios da psicanálise atual e os eixos fundamentais da obra de André Green seguindo o projeto do livro, cujo título "para uso doméstico" era Esboço da psicanálise contemporânea. Uma variante da "regra fundamental" guiava nosso diálogo: sempre que André Green propunha um tema e começava a desenvolver suas ideias atuais, eu devia intervir o mais livremente possível com algo que me passasse pela cabeça, perguntas ou comentários destinados a favorecer uma formulação mais elaborada, mais complexa - fosse com contra-argumentos, com ideias alternativas, com referências cruzadas a suas conceituações prévias. Em seguida, as conversas foram transcritas por sua secretária e posteriormente editadas por mim para que pudessem ser retrabalhadas na escrita do livro por seu autor. Alguns meses depois, André Green me propôs editar uma entrevista - retomando alguns trechos valiosos que não tinham sido incluídos naquela obra - para apresentá-la na Sociedade Psicanalítica de Paris. Esse texto foi lido por mim, e em seguida debatido com o público no Seminário de André Green da quarta-feira, 6 de fevereiro de 2002.

 

O pensamento clínico: heterogeneidade e complexidade

FU3 O interesse pelos desafios da clínica contemporânea, pelos limites da analisabilidade, é uma constante em sua obra. Poderíamos dizer que o seu desafio é continuar sendo freudiano com os pacientes limítrofes?

AG É verdade. O que você diz me lembra daquele paradoxo winnicottiano: com as estruturas não neuróticas é preciso conseguir deixar de ser freudiano de um modo freudiano. Porque não há, de fato, sistema explicativo mais rico e complexo que o freudiano. Nenhum mais capaz de dar conta da heterogeneidade, da conflituosidade, da dinamicidade do psiquismo. Nesse sentido, procuro mostrar como as tentativas de substituição do modelo freudiano, o deslocamento da pulsão do lugar de fundamento, os desenvolvimentos centrados nas relações de objeto, ou na linguagem, são, em última instância, empobrecedoras. Esses fatores têm de ser reinscritos em um pensamento freudiano contemporâneo.

Minha proposta é, sobretudo, uma tentativa de lutar contra a redução a elementos simples. Pois para a psicanálise, o elemento simples já é um composto! A pulsão é a matriz do sujeito, mas o objeto é seu revelador, e constituem um par pulsão-objeto que é o fundamento do psiquismo. O átomo psíquico (por assim dizer) contém, de entrada, o conflito.

Sem dúvida que a representação e o sentido são uma referência primordial, mas constato que, depois de Freud, ninguém se serviu tão decididamente da noção de força para o pensamento clínico. Interessa-me imaginar o movimento da sessão como efeito do encontro analítico determinado pelo enquadre. Imaginar a pressão pulsional e o contrainvestimento, o trabalho do negativo, que provoca um deslocamento associativo na direção de elementos moderadamente significativos. A escuta analítica busca a inteligibilidade do material fora de qualquer linearidade, em uma rede de sentido arborescente determinada por sua conflituosidade radical.

FU A produtividade do discurso em sessão dependeria de uma escuta que reconheça que a palavra analítica não só está determinada por um sentido latente (na representação inconsciente), como também por uma virtualidade significativa (do movimento pulsional), que pode dar lugar à criação ou à destruição da significação.

AG Isso mesmo. Para a psicanálise, a metaforização e a poiésis do sentido são indissociáveis de sua determinação pela força, seu enraizamento no corpo. É força e sentido: há uma heterogeneidade fundamental. Por isso, se há um pensamento clínico, tem de ser um pensamento do heterogêneo, do dinâmico. Por isso, o interessante não é somente caracterizar uma estrutura psicopatologicamente, mas também acompanhar suas transformações, ver os modos positivos ou negativos como muda, espontaneamente ou por influência do tratamento.

FU Ao escutá-lo falar do pensamento clínico, me pergunto que relação você poderia estabelecer com o que denominou o "pensamento louco" do analista, aquele que torna possível o trabalho nos limites da analisabilidade, lidando com a "loucura privada".

AG Considero que a clínica psicanalítica institui um modo de pensar radicalmente original. Cria um campo epistemológico novo. Em psicanálise existe não só uma teoria da clínica (uma "técnica"), mas também um Pensamento Clínico: um modo original e específico de racionalidade que emerge da experiência clínica ao mesmo tempo em que a funda. Essa circularidade recursiva, como você sabe, nada mais é que aquela descrita pela epistemologia complexa (Edgard Morin). Contra as tendências reducionistas que costumam importar ou extrapolar para a clínica os parâmetros de outras disciplinas, devemos postular sua especificidade irredutível. É para isso que aponta, em primeiro lugar, a noção de "pensamento clínico". Em segundo lugar, ela pretende dar conta do funcionamento do analista na prática contemporânea. Então, o "pensamento louco" corresponderia talvez ao núcleo dinâmico, criativo do pensamento do analista em sessão, com as estruturas não neuróticas.

Em sua leitura da minha obra, você tem razão quando sublinha que há uma tentativa de pensar o mundo das estruturas não neuróticas de um modo freudiano, mas contemporáneo - diferente do de Bion, Winnicott e outros. É verdade que, sem ignorar essas contribuições, parto de elementos que Freud deixou em germe, mas que não desenvolveu. É evidente que o convívio prolongado com pacientes limítrofes obriga-nos a descobrir modos de pensar muito diferentes dos da neurose, e inclusive da psicose. Modos que Freud anunciou, entreviu, por exemplo, com a recusa.

Para dar conta do funcionamento limítrofe e analisá-lo, creio ser necessário o pensamento louco do analista. Ou seja, em primeiro lugar, uma tolerância por parte do analista ao pensamento louco do lado do paciente, e do seu próprio. A função analítica também exige uma disponibilidade para pensar e elaborar os próprios pensamentos loucos. E uma capacidade de imaginar em ressonância com movimentos afetivos indizíveis, de desligar e religar as próprias ideias que lhe ocorram para dar figurabilidade a impulsos arcaicos, a cenas tão repetidas quanto impensáveis. Considero que não há maior cumprimento do que aquele que um paciente me faz quando diz: "Você está louco!" ou "Tenho um analista louco". É como a negação para Freud ("Não é minha mãe"). Para além do rechaço superficial, há um reconhecimento da fecundidade da comunicação analítica.

 

O enquadre revisitado: estojo e matriz dialógica

FU Uma das consequências da clínica contemporânea com estruturas predominantemente não neuróticas é o questionamento do enquadre analítico. Para discutir com fundamento suas possíveis variações, você diz que considera necessário rever e estender a noção de enquadre.

AG Tenho uma ideia do enquadre que me interessa trabalhar e que consiste em diferenciar nele duas frações: a matriz ativa e o "estojo". A matriz ativa é a parte dinâmica do enquadre, a fração que gostaria de poder chamar de "constante", aquela que deve sempre ser objeto de cuidado e de manutenção permanente. Ela é de natureza dialógica, constituída por dois polos: do lado do paciente, a associação livre, do lado do analista, a atenção flutuante. Trata-se de um par, uma dupla, que caracteriza o funcionamento fundamental do trabalho analítico em qualquer de suas formas. O essencial do trabalho analítico é o funcionamento em dupla, que coloca em comunicação o mundo psíquico do paciente e o do analista. Esse é o núcleo fundamental do método psicanalítico, que se desenvolve de modo ótimo na chamada análise "clássica" de estruturas neuróticas; e que continua sendo sempre o modelo básico e a referência a que se tende a despeito de qualquer variação técnica, mudança do dispositivo ou - como proponho denominá-lo - do "estojo".

Isso significa que a fração constante se combina com uma fração variável: o estojo. É ele que abriga a matriz ativa, do mesmo modo que a joia é protegida por seu estojo. Corresponde a todas as disposições materiais e formais do enquadre. Como acabo de dizer, trata-se de variáveis e tendem a variar. É certamente na análise clássica - desenhada para as estruturas neuróticas - que ambas as frações se harmonizam melhor. As variações do enquadre (e da técnica em geral) têm um sentido preciso: criar as condições de possibilidade para o trabalho de representação, para o funcionamento da matriz dialógica. A volta às indicações da análise clássica significa um empobrecimento arriscado para a psicanálise. Por outro lado, dar maior rigor conceitual às variações do enquadre (ao que se costuma chamar de psicoterapia psicanalítica) permite, pelo contrário, estender a psicanálise às estruturas não neuróticas. Nessa linha, parece-me interessante explorar, desenvolver uma noção como a de enquadre interno do analista.

 

O sonho e o ato: dois modelos freudianos para a clínica contemporânea

FU Essas ideias me fazem pensar em outras formulações suas, com as quais seria interessante relacioná-las. Como a sua proposta de distinguir, na obra de Freud, dois modelos que, penso, poderiam ser usados para dar conta do campo clínico contemporâneo: um modelo do sonho (ligado à primeira tópica freudiana, ao desejo inconsciente e, correlativamente, ao campo clínico da neurose) e um modelo do ato (ligado à segunda tópica, e ao segundo dualismo pulsional, correspondente à clínica com estruturas não neuróticas).

AG É sem dúvida possível ensaiar essa extensão dos modelos de Freud para articular a teoria e a clínica atual. Faz tempo que apontei a homologia conceitual entre espaço analítico e espaço do sonho. Embora não o teorize, Freud cria o enquadre analítico com base no modelo do sonho. A posição deitada, a suspensão da motilidade e a limitação da percepção (pela posição de analista fora do campo de visão e pelo entorno estável) esboçam uma situação análoga à do sonho, cuja função é dar à associação livre (com seu afrouxamento da censura) uma soltura que a aproxime o máximo possível do processo primário. Por isso escrevi que a especificidade da linguagem em análise vem do fato de que se trata de uma "palavra deitada dirigida a um objeto inacessível".

FU Isso me lembra de outra definição sua, complementar: "a palavra analítica desenluta a linguagem". Essa especificidade dinâmica da palavra analítica seria resultado do sobreinvestimento transferencial do discurso por efeito do enquadre, que cria as condições para sua interpretação.

AG Isso mesmo. Seguindo o modelo do sonho, Freud abordava clinicamente a relação consciente-inconsciente segundo uma tríade: sonho/relato do sonho/interpretação. Nessa tríade baseia-se, por sua vez, o tripé do modelo clínico clássico (isto é, da análise da neurose de transferência): Enquadre/Associação Livre/Interpretação. O modelo clínico clássico funda-se - na primeira metade da obra de Freud - em uma série de ideias ou eixos conceituais em torno da neurose, que é o território inicialmente delimitado para a análise. A perspectiva implícita do processo se apoia no tripé: Neurose infantil/Psiconeurose/Neurose de transferência. A oposição paradigmática neurose-perversão, a ideia da neurose como negativo da perversão perversa polimorfa, centra a escuta na sexualidade infantil recalcada.

O sonho adquire valor de modelo ou de referente para uma clínica da neurose centrada no deciframento do inconsciente e das vicissitudes do desejo. Dizer desejo inconsciente é dizer representação. O sonho é um modelo da compatibilidade e articulação das representações de coisa com as representações de palavra. Sua decifrabilidade pela via da linguagem funda a interpretação e o método analítico.

FU A representação é um dado de partida, de base, do modelo do sonho.

AG Esse modelo supõe a fiabilidade da representação, sua capacidade de canalizar a pulsão, de articulá-la em desejo mediante a fantasia inconsciente (composta por representações de coisa). Ou seja, de ligar representações de coisa e de palavra para superar a compulsão à repetição mediante uma simbolização perlaborativa. O paciente que atua em vez de recordar o faz segundo o roteiro da fantasia atualizado na transferência, "transferido" para a relação analítica. A transferência é analisável porque a repetição está comandada pelo princípio de prazer encenado e organizado na fantasia.

Fu Tudo isso é teórica e tecnicamente posto em xeque quando entra em cena a compulsão à repetição mortífera, com a pulsão de morte, os traumas precoces pré-verbais, os mecanismos de defesa arcaicos.

AG O próprio movimento da obra de Freud pode ser entendido desde essa perspectiva. A virada dos anos vinte é consequência da dolorosa descoberta da compulsão à repetição mortífera, da reação terapêutica negativa, do sonho traumático. A "resposta" de Freud é a conceituação da pulsão de morte e da segunda tópica, que implicam justamente um além da representação, sua fragilização. A principal referência passa a ser a moção pulsional. A radicalização da força é a causa da passagem de uma tópica à outra. No Isso já não há representações, e sim moções. A representação passará a ser então somente um dos destinos possíveis da moção, que dependerá da via elaborativa, da ligação da pulsão. A outra grande alternativa será a descarga evacuativa, o esvaziamento do aparelho, segundo o modelo do ato (entendido como oposto à ação específica). Ou seja, nesse contexto, ao irromper o irrepresentável no campo analítico, o ato adquire valor de um modelo para entender o funcionamento psíquico. O trabalho analítico já não pode partir da representação, ele aponta para a representação, aspira a tornar figurável, pensável, o irrepresentável, a compulsão mortífera.

A clínica com os pacientes não neuróticos exige de nós um modelo específico, um modelo ampliado que leve em conta o valor de base do modelo do sonho, do enquadre e da representação, mas permita pensar o irrepresentável, abordar as falhas de estruturação e funcionamento. Nesse sentido, propus falar de um "modelo do ato" para dar conta do funcionamento dos casos limite. E, em geral, para pensar as rupturas do enquadre em relação aos impasses do funcionamento representativo, quando a dinâmica evacuativa do ato (Agieren) determina a dinâmica da transferência. Já não se trata de uma ação que substitui a recordação repetindo inconscientemente um roteiro fantasmático, sexual e recalcado. Mas de um ato dessimbolizante, que expressa o fracasso da fantasia inconsciente para ligar as pulsões. As pulsões destrutivas provocaram estragos na capacidade de ligar e representar, portanto de associar e analisar. Já não se trata do retorno do secundariamente recalcado, mas do retorno do recusado, do foracluído etc. Contra um "objeto-trauma" que ameaça seus alicerces narcísicos, o sujeito se defende autodestrutivamente desinvestindo seu próprio funcionamento, desobjetalizando.

FU A referência ao "objeto-trauma" me lembra outra ideia sua, afim mas distinta: a de que para esses pacientes a própria situação analítica costuma ser vivida como traumática. O enquadre deixa, então, de ser utilizável como tal.

AG Você toca em um ponto fundamental. Vejamos, por exemplo, o que denominei recentemente "a síndrome de desertificação mental". Diante de certo número de pacientes que vieram me ver depois de diversas experiências face a face com outros analistas, pensei comigo mesmo que talvez ninguém tivesse tentado analisar aqueles pacientes e que talvez valesse a pena fazê-lo. Então propus que deitassem no divã. E constatei naquele momento algo que estava absolutamente mascarado na situação face a face: que, nesses casos, contrariamente ao que se poderia pensar dada a estrutura desses pacientes, não se assiste, por exemplo, ao desenvolvimento de uma intensidade excepcional das projeções, e embora sintamos que há uma atividade psíquica e pulsional combustiva por trás da produção aparente, o que assistimos, pelo contrário, é a algo que proponho chamar de "síndrome de desertificação mental". Ou seja, naquele momento o paciente cai em uma espécie de deserto "anobjetal". De fato, o que ocorre é uma espécie de subversão ou reversão dos postulados básicos da situação analítica. Quero dizer que quando Freud inventou a situação analítica, ele o fez para favorecer a associação livre, para possibilitar que o funcionamento psíquico se aproximasse o máximo possível dos processos oníricos. Em suma, um funcionamento que pudesse se libertar, ao menos parcialmente, do peso das defesas e do recalque. Aqui, pelo contrário, o que ocorre nos casos que descrevo é que, em vez de favorecer a liberdade associativa, o que encontramos é uma retração do indivíduo à maneira do caracol enfiando-se em sua concha. Então, é claro que você pode refletir e pensar que isso talvez ocorra porque o analista é vivido como um agressor em potencial. Mas eles, os pacientes, não sentem isso. O que eles sentem é que não tem mais ninguém ali. O deserto objetal é absoluto. O que encontramos ali é uma modalidade desestruturante do trabalho do negativo: produz-se uma negativização do objeto, mediante a qual esses sujeitos negativizam sua própria unidade interior. Já não há mais nada, tudo está vazio, nada tem sentido, nada se liga. E você talvez possa supor que o que está em jogo ali é o terror, mas, em todo caso, o essencial é que não só não há liberdade nem fluxo associativo, como também os pacientes, quando conseguem sair desse estado, relatam que era um estado de vazio. Produziu-se uma espécie de deserto psíquico. Parece-me interessante isolar essa síndrome porque, por trás da impossibilidade de tolerar o enquadre, o divã, talvez haja muitas vezes uma tentativa de se defender desse perigo de desertificação. É uma manifestação da diversidade dos funcionamentos psíquicos que podem impedir a utilização do enquadre.

FU Tempos atrás você escreveu que "o sujeito é o que permanece quando o objeto se retirou". Nesses casos, talvez se pudesse reformular dizendo que a questão é "o que resta do sujeito (analisante) quando o objeto (analista) se retira?"

AG Claro. O fato de se colocar fora do contato visual do analista é inconscientemente aterrorizador. Como se os objetos primários nunca se tivessem deixado transformar. O "objeto transformacional", para ajudar a transformar(-se), precisa começar por se deixar transformar. Algo que, nessa síndrome, se revela inconcebível. O enquadre clássico é posto em xeque na medida em que é o próprio funcionamento psíquico do paciente que se vê absolutamente posto em xeque. Para desbloquear o processo é necessário introduzir importantes alterações no enquadre: tanto em relação ao "estojo" (por exemplo, na posição física face a face, na frequência semanal etc) quanto em relação à "matriz dinâmica": o tipo de diálogo analítico deve se adaptar à situação, devem mudar o investimento e a escuta da comunicação verbal e não verbal, as intervenções não interpretativas adquirem outra relevância etc. E o analista deve estar disposto a se deixar afetar com especial intensidade.

 

Encruzilhadas da técnica analítica: trauma e destrutividade

FU A conversa nos leva à questão teórica e técnica do trauma nos pacientes não neuróticos, e aos limites da atividade transformadora do analista.

AG Estamos falando de pacientes que vivem a si próprios como tendo sido terrivelmente traumatizados. Isso os leva ao que chamo de "reivindicação da inocência". É sempre: "o outro me fez isso". Nunca é o sujeito que desejou ou fez alguma coisa, ou que se sente culpado porque fez ou desejou algo. "É o que o outro introduziu em mim" - como dirá Ferenczi. Por isso, a análise nunca chega a um autêntico questionamento de si mesmo. Nesses pacientes, há um verdadeiro "terrorismo do sofrimento", como diz Ferenczi. Porque esses pacientes se sentem inconscientemente com direito à vingança e à destruição, como um terrorista. Não se trata de obter uma reparação, mas de exercer a destruição. Um grave problema é que isso provoca no analista sentimentos e fantasias sacrificiais. Ferenczi caiu na armadilha sacrifical que o levou a criar a técnica ativa, a análise mútua. E isso deriva em parte de uma espécie de avaliação "externa" do trauma, de uma ênfase colocada na imagem monstruosa do objeto, em suas falhas realmente graves.

De um ponto de vista freudiano, porém, o trauma deve ser julgado principalmente por seus efeitos intrapsíquicos: ou seja, pela constituição no aparelho psíquico de um bloqueio que se autonomiza do resto do aparelho, resistente à mudança. É preciso centrar a questão na marca deixada pela experiência, no modo de inscrição e sua relação (por definição insuficiente, extrapolada) com a pulsão. Caso contrário, a necessária consideração do papel do objeto ou do ambiente nos leva a extravios teóricos e, consequentemente, clínicos. A chave está em ver "o que fizemos com o que nos fizeram".

Um equívoco similar ao de Ferenczi encontramos em Winnicott, quando propõe, para os pacientes borderline, que a única forma de reparar a grave falha do eu do sujeito passa por permitir que ele tenha a experiência da destruição do objeto, devendo desempenhar a função da mãe suficientemente boa que acabará por se impor e ocupar o lugar do objeto mau interno. Minha própria evolução me levou a constatar que isso é incorreto, e apesar de minha admiração por Winnicott, acho que nesse caso ele se engana. Acho que não basta manter a imagem da mãe boa nem aceitar a expressão da destrutividade (que evidentemente é preciso poder tolerar). O processo que Winnicott descreve não basta para produzir as transformações necessárias. Do meu ponto de vista, para si mesmo e para o paciente, ao analista não resta outra possibilidade senão mostrar ao paciente o que está (se) fazendo. Deve conservar sua função interpretante assumindo e promovendo a reflexividade: deve tentar tornar acessível ao paciente a representação da destrutividade que descarrega contra si mesmo.

FU Penso que em sua diferença para com Winnicott incidem suas ideias sobre o narcisismo negativo, agente da destrutividade dirigida contra o próprio pensamento. Especialmente suas ideias sobre as fixações narcisistas negativas e o "ódio de si mesmo" que resulta de uma paradoxal "fixação odiosa ao objeto".

AG Há um ódio de si que resulta da indiferença e, inclusive, do ódio por parte do objeto primário. Uma de suas consequências para o sujeito é o paradoxo de uma fixação odiosa ao objeto ante a impossibilidade de uma separação primária estruturante. Esse ódio de si mesmo tende à expulsão ou evacuação dos processos psíquicos.

FU Nesse contexto, você dá um papel central à alucinação negativa patológica, como movimento defensivo autoamputador do pensamento. Essa alucinação negativa provoca um curto-circuito da reflexividade, da capacidade de reconhecimento, que são as condições do pensamento e da subjetivação. Condições que nas estruturas neuróticas estão dadas, e cujo advento (ou consolidação) é um dos objetivos da análise de pacientes limítrofes.

AG É preciso sublinhar a importância da reflexividade e como ela é posta em xeque nessas estruturas. É algo que subjaz à necessidade do trabalho "face a face".

FU A situação "face a face" poderia caracterizar-se justamente por uma delegação inconsciente da reflexividade, do paciente para o analista.

AG Isso me faz pensar em uma paciente - de que falei em vários escritos - que me dizia: "se me olho no espelho não vejo nada". Dizia que via vagamente que havia algo ou alguém, mas que não se reconhecia. E dizia outra coisa muito impressionante: que se sua imagem no espelho se refletisse em um segundo espelho (como ocorria em certos ambientes contíguos de seu apartamento, entre a biblioteca e a sala de jantar), então conseguia se ver. Esse segundo espelho funcionava como que um olhar, digamos, da mãe. E esse era o único momento, ao se sentir olhada pela mãe, que ela mesma conseguia se ver, se reconhecer. E acontece que depois de vários anos de análise, ao retomar tudo aquilo, ela me disse: "Se não vejo nada no espelho é porque me detesto". "Não posso aceitar me reconhecer desse modo". Note que aqui chegamos neste ponto importante: um modo de trabalho do negativo desestruturante que mina o autoinvestimento narcisista e impede a reflexividade, a autorrepresentação e o reconhecimento. "Não posso me reconhecer nessa imagem porque me odeio".

 

Avatares atuais da interpretação: do ato ao processo

FU Tanto teórica quanto tecnicamente é difícil distinguir o ódio de si do ódio dirigido ao objeto primário.

AG "Me odeio demais" e "odeio demais minha mãe que não me vê" entrecruzam-se em um jogo de espelhos. Essa é uma ambiguidade que tem de ser aceita. Antes de ser interpretada tem de poder ser pensada pelo analista, criando para si mesmo uma possível colocação em perspectiva. Esse distanciamento do analista é imprescindível para que ele não caia na atuação, na "contraofensiva" interpretativa. Se você faz uma leitura ou interpretação transferencial direta (tipo "ela me odeia demais"), perde nesse atalho coisas essenciais. Como o fato extraordinário de que ela possa me dizer o que está me dizendo. Pois ela supõe que eu posso escutá-la, ou seja, que continuo a vê-la. E se, nesse momento, eu me confundir com a mãe que não a olha, perde-se a dimensão progressiva, transformacional, dada pelo investimento libidinal representado pelo fato de poder fazer uma confissão como essa. De tal modo que, por um lado, é imprescindível conservar a função interpretativa; por outro, porém, é preciso tomar cuidado e dosar muito bem quando se faz uma interpretação transferencial direta.

Quanto à interpretação, primeiro o analista tem de dá-la a si mesmo, criando um espaço de pensamento, um espaço no qual receber e elaborar as projeções do paciente. Quando isso não ocorre, vemos que o analista perde a calma, cai no realismo, procura explicar, recrimina o paciente por sua teimosia. Fica zangado ou se desespera quando as interpretações são rejeitadas e destruídas pelo paciente. Lamentavelmente, contudo, isso é o que se espera. Devemos estar dispostos a ser atacados em nossa capacidade de entender e de interpretar. Aqui não funcionam a interpretação profunda de tipo kleiniano; nem a escansão do significante ao estilo lacaniano. A interpretação tem de passar do plano do conteúdo ao do continente. Do estruturado ao estruturante.

FU A inter-relação de ambos os níveis exige uma concepção da interpretação como processo interpretativo, como processo dialógico cujo agente é o par analítico.

AG A interpretação torna-se mais um processo dialógico do que um ato unilateral. Mais que encontrar a interpretação justa, trata-se de sustentar a relação mantendo viva para nós mesmos nossa função interpretativa. O paradoxo é que isso é o que possibilita ao analista um distanciamento que torna utilizável sua identificação com o paciente. Em última instância, esse distanciamento é a essência da neutralidade analítica, que constitui o fundo sobre o qual se inscreve ou se recorta a interpretação. A neutralidade não deve ser confundida com a abstenção nem com a frieza. São a neutralidade e o distanciamento que expressam e introduzem inicialmente a terceiridade na relação analítica. São o que permite que o investimento e o compromisso do analista não naufraguem no canibalismo da dualidade.

FU E como você situaria a questão da interpretação em relação à terceiridade?

AG A questão do terceiro não é aritmética, mas lógica: o terceiro é o iniciador de um movimento de abertura, de busca de sentido. Quando era mais jovem - inclusive antes de descobrir Pierce -, falei de uma triangularidade generalizada com terceiro substituível. Ou seja, a terceiridade é aquela função que abre a possibilidade da substituição. Até mesmo a substituição desse terceiro que pode estar representando essa função. Há sempre um terceiro que representa algo para algum dos envolvidos. Com as estruturas não neuróticas, o trabalho do analista tem como meta estabelecer a funcionalidade plena da terceiridade que a transferência limítrofe tende a bloquear.

Quanto ao processo de interpretação em si mesmo - independentemente da estrutura do paciente -, ele deve ser concebido em três tempos. O primeiro é um tempo de preparação da interpretação, de estabelecimento das condições de possibilidade para que o paciente possa reconhecer a interpretação. Há um timing que o analista percebe no movimento da sessão, avaliando a resistência. Resistência que em alguns casos corresponde ao recalque, e em outros à destrutividade. O segundo tempo é de verbalização por parte do analista e de silêncio e transformação interna por parte do paciente. O terceiro tempo é o das modificações no pensamento e na ação do paciente.

 

O enquadre interno do analista

FU Em situações limítrofes, na análise de estruturas não neuróticas, você afirmou que o processo vai se escorar no enquadre interno do analista. Poderíamos pensar que o trabalho analítico que corresponde ao modelo do ato se apoia em um tripé distinto daquele que você propôs para a neurose (enquadre/sonho/interpretação). Poderia ser "enquadre interno/brincar/representação (ou interiorização)". Mais que substituir o modelo do sonho, esse tríptico pretende complementá-lo e torná-lo possível. Forneceria as condições de possibilidade para o processo analítico: o enquadre se escora no enquadre interno do analista; o sonho como trabalho intrapsíquico de simbolização se apoia no brincar (o diálogo) como criação intersubjetiva das condições de possibilidade da simbolização; o trabalho de representação (ou interiorização) como processo básico de subjetivação torna possível a interpretação ou a construção.

AG Parece-me que você propõe um desenvolvimento totalmente consistente. Permite ver como o pensamento clínico abre-se para a heterogeneidade de funcionamentos psíquicos. Dissemos antes que entre sonhos, neurose e transferência analisável existe uma estreita solidariedade. O essencial é o tipo de regressão (tópica) que aproxima o sonho do funcionamento psíquico durante a sessão. Por outro lado, você menciona o brincar. Justamente, Winnicott estava sobretudo preocupado com certas formas de regressão que superavam os limites da regressão tópica e punham em cena regressões dinâmicas e temporais nas quais certos pacientes modificavam o enquadre. Pois em certos casos eram incapazes de utilizá-lo. Constata-se, então, que o nascimento do conceito de "enquadre" (devido em grande medida a Winnicott) é quase contemporâneo de seu questionamento. A aceitação e a utilização do enquadre são corolários da capacidade de brincar do paciente com o analista. Com Winnicott, o brincar substitui o sonho como paradigma. A pergunta fundamental é o que ocorre quando o paciente já não é capaz de associar livremente: a possibilidade de simbolização e de elaboração exigirá um trabalho suplementar do analista. Por isso interessa-me, como você bem assinala, a ideia de enquadre interno.

Penso que a heterogeneidade introduziu-se no pensamento clínico com a tomada de consciência de que o enquadre não era viável para um grande número de pacientes. Quando ele não funciona, pode-se dizer que o enquadre já não é um conceito compartilhado entre o paciente e o analista. O enquadre torna-se uma noção interna ao analista. Será ele quem terá de avaliar o que escuta em relação a uma falha do funcionamento do enquadre que só ele está em condições de perceber e compreender. Agora, como você disse, é o enquadre interno do analista que faz com que o enquadre possa variar para conservar seu papel no processo.

Nesses casos, não podemos buscar a unidade do campo analítico do lado dos pacientes, pois nos damos conta de que sua diversidade implica modos de abordagem muito diferentes e, inclusive, em certas ocasiões, a renúncia a vários aspectos do enquadre em sua dimensão de estojo. Isso significa que quanto menos o enquadre clássico funciona, mais me vejo levado a pensar que a unidade do campo psicanalítico só pode estar situada no próprio analista, em seu pensamento clínico.

O enquadre interno parece-me resultante da interação de dois fatores. O primeiro é a análise do analista. Ou seja, este viveu a experiência de um enquadre "externo" realizado, efetivo, com seu próprio analista. O segundo é o acúmulo de experiências com seus pacientes, que o abriu para um descentramento em relação a sua própria análise, e portanto, o analista pode verificar que com alguns pacientes se reproduz algo do que ele mesmo viveu em sua análise, e com outros pacientes constatará que as coisas apresentam-se de um modo diferente.

Pode-se dizer que a escuta analítica é em si mesma uma metaforização do enquadre. Por isso é que enquanto a escuta analítica é preservada, algo que a liga ao enquadre também se vê preservado, mesmo que os outros elementos do enquadre não se achem presentes. Com estruturas não neuróticas, o enquadre interno do analista é imprescindível para possibilitar a constituição de um diálogo e um espaço potencial para passar da repetição mortífera para a representação, dando lugar a um processo de transformação (até mesmo de estruturação) subjetiva.

FU Penso que sua teoria do enquadre (agora estendida e articulada com a noção de enquadre interno) tem como modelo teórico implícito o conceito de "estrutura enquadrante".

AG É verdade. Porque na ideia de enquadre interno há algo que não é apenas da ordem do intrapsíquico - e que é justamente o que permite a integração do intrapsíquico com o intersujetivo. Retomando a definição da estrutura enquadrante, pode-se dizer que o enquadre interno é também uma interface entre o intrapsíquico e o intersubjetivo. Talvez seu fundamento não seja outro senão a estrutura enquadrante do próprio analista que, pela via da própria análise, torna-se fonte de uma nova reflexividade. E, assim, torna-se o suporte do enquadre interno. Se definirmos a estrutura enquadrante como aquilo que permite constituir a singularidade (ou seja, a separação do outro e a autorreferencialidade), pode-se pensar que o enquadre interno constitui - pela via da análise pessoal do analista - uma matriz aberta à singularidade do outro, a sua alteridade radical. Utilizando categorias filosóficas, podemos pensar na passagem e na articulação do "em si", do "para-si" e do "para-outro".

A experiência da análise mostra-nos que a admissão desse ou daquele "outro" que está em nós permite, em certa medida, que nos identifiquemos com "outros": com outros sujeitos, com estruturas psíquicas muito diferentes das nossas. Creio que essa capacidade (tanto no nível reflexivo quanto afetivo) faz parte do enquadre interno, dessa matriz simbólica que pode acolher coisas que são muito estranhas a ela mesma. Desse ponto de vista, na medida em que o enquadre interno se constitui com base na experiência do reconhecimento do inconsciente, do acolhimento da alteridade interna radical que é o inconsciente, como tal essa matriz simbólica que é o enquadre interno possui a abertura virtual à "outridade".

 

 

1 André Green (1927-2012). Psicanalista, foi membro titular e presidente da Societé Psychanalytique de Paris SPP. Autor de vasta e importante obra, reconhecido pela diversidade e originalidade dos temas tratados, publicou inúmeros livros e artigos.
2  Originalmente publicada na Revista de Psicoanálisis, LXIX (1), 25-39, 2012.
3 FU: Fernando Urribarri
AG: André Green

Creative Commons License