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Revista Brasileira de Psicanálise

versión impresa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.46 no.3 São Paulo jul./set. 2012

 

RESENHAS

 

Bion em nove lições: lendo Transformações

 

 

Julio Frochtengarten

Membro efetivo da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo SBPSP

Correspondência

 

 

Autor: Luis Cláudio Figueiredo
Editora: Escuta, São Paulo, 2011, 156p.
Resenhado por: Julio Frochtengarten

A resenha do novo livro de Luis Cláudio deu-me oportunidade de voltar a este texto, desta vez a partir de outro vértice proporcionado pelo convite do autor. Voltar ao texto, pois este livro é resultado de uma sequência de aulas ministradas por Luis Cláudio na PUC de São Paulo, com as quais há alguns poucos anos tive o ensejo de entrar em contato por meio de uma transcrição não editada. O trabalho que agora nos chega às mãos tem sua origem nessa transcrição, revisada e editada, recebendo coautoria de Gina Tamburrino e Marina Ribeiro.

Sua origem em aulas na Universidade não faz deste apenas um livro introdutório às ideias publicadas em 1965 por W. R. Bion em Transformações. Estão presentes, simultaneamente, uma qualidade de exame e um grau de profundidade nesta obra que não tenho encontrado em nenhum dos livros a respeito da vida e obra de Bion. Frequentemente o livro e a noção de Transformações são simplesmente apresentados, mas não discutidos em suas "entranhas" e referências epistemológicas, como o autor o faz aqui com toda a propriedade que seu conhecimento nesta área da filosofia lhe confere. Enquanto os leitores pouco familiarizados com esta obra de Bion se sentirão guiados por Luis Cláudio em sua leitura, os mais iniciados se perceberão acompanhados nas complexidades e inquietações que já devem ter experimentado em seu contato com este difícil texto. O autor, com sua extensa experiência universitária, mostra-se praticante do duplo sentido de ensinar: in-signare, levar para dentro do signo, e simultaneamente, contrariando a etimologia, a prática do pensamento do negativo que destitui os signos de seus significados.

Transformações representa uma guinada importante na direção que Bion vinha seguindo em seus dois trabalhos anteriores, O aprender com a experiência (1962) e Os elementos de psicanálise (1963); por essa razão, o psicanalista comprometido com a obra do autor não pode evitar seu estudo, por mais árida que a leitura se mostre. O conjunto dos três livros é considerado como a moldura de sua teoria, seu chamado período epistemológico (Bléandonu, 1990). De minha parte, incluiria ainda seu livro seguinte, Atenção e interpretação (1970), fazendo parte desta moldura, pois é nele que Bion desenvolve questões apresentadas ao final de Transformações, especialmente as chamadas transformações em O. As repercussões e desdobramentos que virão a partir daí na evolução da obra de Bion, os interessados terão que procurar por si mesmos à medida que o livro de Luis Cláudio as examina tão somente até este momento evolutivo.

O livro aborda os três primeiros e últimos capítulos de Transformações, "... pois o intuito não é o de acompanhar toda a obra do autor, mas de exercitar a capacidade de leitura psicanalítica desconstrutiva" (p. 93). Entendo este exercício como expressão de seu reconhecimento de que o estudo de Bion vale a pena na medida em que este "... elevou o pensamento e a prática psicanalítica a novos patamares" (p. 9). Ao mesmo tempo, parece que Luis Cláudio lamenta a falta de exemplos clínicos que esclareçam os conceitos. Estou solidário com esse lamento, mas entendo que Bion não traz propriamente exemplos e sim ilustrações, o que me parece estar mais de acordo com a própria noção de transformações; desta forma, propicia ao leitor a procura de suas próprias realizações clínicas. Aliás, o termo que acabo de utilizar - realização - é um dos conceitos examinados por Luis Cláudio, que aponta para uma ambiguidade que tenho visto surgir com frequência entre os leitores de Bion: ora parece ser usado como algo tornado real, ora como algo criado a partir de uma experiência original incognoscível; ora como experiência concreta e sensorial, ora como experiência mental. Este assinalamento dos dois sentidos do termo é importante por estar em pauta aqui a origem das experiências que são transformadas; também terá consequências ao se procurar fazer uma distinção entre realização e representação.

Na base desta questão examinada por Luis Cláudio parece-me estar o ponto central de seu livro: qual a concepção, ou o estatuto, de O no plano das transformações; e como esta concepção oscila ao longo do livro de Bion. O leitor encontrará (p. 125-126) uma discriminação bastante clara de três noções de O que surgem em Transformações (e que Bion apresenta no capítulo XII de seu livro): O evocado através das formas platônicas; O como potencialidade para distinções ainda não desenvolvidas; O como infinito vazio e sem forma. O autor destaca ainda que é apenas nesta terceira versão que O corresponde à coisa-em-si kantiana, como Bion a apresenta no livro.

Assim como a problemática de Transformações já estava presente em O aprender com a experiência (p. 31), é possível considerarmos que no primeiro desses livros estão presentes problemáticas - como o estatuto de O - que só se desenvolverão plenamente em Atenção e interpretação. Imagino que o próprio Bion precisasse falar de algo (O) de sua experiência pessoal que ainda não estivesse desenvolvido conceitualmente na psicanálise; e tenha começado a fazê-lo por aproximação com a filosofia de Kant, seguindo depois para o domínio do "vindo a ser". Assim, esses vários sentidos de O estariam consagrados e sedimentados em sua obra posterior, Atenção e interpretação, na qual O configura-se como algo só possível de ser atingido pelo despojamento de memória, desejo e compreensão; pelo operar da dimensão mística; pela .

Penso que com Bion a psicanálise utiliza-se de novos paradigmas: além de ter desenvolvido conceitos novos, ele teria que abandonar outros já bastante consagrados, cuja permanência dentro de sua obra parecem-me "fora de lugar". Seria tarefa hercúlea para uma só vida, pois como escreveu Thomas S. Kuhn (1962), atribuindo-o a Max Planck, "Uma nova verdade científica não triunfa por convencer os seus adversários e fazê-los ver a luz, mas porque os seus adversários acabam morrendo de velhos e uma outra geração cresce familiarizada com esta verdade". Assim acontece com a ideia de "material clínico", termo associado à noção de evidência, e incompatível com a noção de uma origem incognoscível; o mesmo ocorre com "personalidade" (examinado na Segunda Lição deste livro), por sua conotação de entidade unitária e estável; com "psicótico", por ser incompatível com sua ideia de multidimensionalidade da mente. Luis Cláudio também reconhece a "insuficiência da linguagem" empregada por Bion, atribuindo o recurso a analogias, metáforas, modelos estilísticos, fórmulas etc ao fato de Bion se referir a fatos inalcançáveis em si mesmos, o que acaba por revelar algumas limitações e incongruências em seu texto (p. 38).

A Quarta Lição discute os conceitos de função α (introduzido em O aprender com a experiência) e Tα, estabelecendo interessantes relações entre ambos que, até onde sei, o próprio Bion não o fez de forma explícita. Aponta, então, que Tα inclui função α, mas não se reduz a ela, uma vez que o resultado de certas transformações - em função da destrutividade e desintegração - não são pensamentos propriamente ditos, mas sim evacuações e projeções. E mais: não só os pensamentos podem se apresentar destruídos; também a própria capacidade de pensar pode estar destruída - ou, acrescento eu, não ter ainda se formado -, o que se revela não pelo conteúdo, mas no próprio processo da transformação operar.

Na Quinta Lição, acompanhando Bion no terceiro capítulo de Transformações, introduz-se a questão dos afetos que são comunicados e veiculados em Tβ, e especialmente os afetos que não encontram capacidade de simbolização disponível e adequada por parte do analista. Lamento que aqui não tenha sido incluído o modelo que Bion apresenta (capítulo IV de Transformações) do lago cuja superfície permite ao observador conhecer as características refletidas das árvores da outra borda, a depender das condições da atmosfera. O modelo do pintor (apresentado no início de Transformações), a meu ver, não suporta toda a complexidade da experiência emocional como Bion a apresenta no decorrer do livro; além disso, só me parece adequado para o caso particular da pintura figurativa e transformações em movimento rígido. Como Luis Cláudio se serve em vários momentos do paralelo entre experiência psicanalítica e pintura, penso que o modelo do lago seria bem-vindo, uma vez que a superfície calma ou turbulenta permitiria relacionar de forma plástica os afetos com as diversas modalidades de transformações, além de uma aproximação ao conceito de transformações em alucinose, que é o mais vigoroso dentro da teoria das Transformações.

Na mesma Lição há um destaque de como Bion incluiu as próprias teorias psicanalíticas como uma modalidade de transformações, por elas serem representações da experiência emocional, insuficientes frente ao todo da experiência. O questionamento de Bion quanto à dimensão "instrumental" das teorias psicanalíticas - para detectar e promover a emergência de padrões do paciente - pareceu-me ter despertado em Luis Cláudio certo estranhamento crítico: por colocar em questão a eficácia das teorias na abordagem clínica? Tenho para mim que este questionamento de Bion tornar-se-ia compreensível se levasse em conta o alargamento do conceito de alucinose no tratamento psicanalítico - mencionado mais adiante (p. 110) -, pois nesta dimensão a ausência dos objetos e a frustração decorrente estão anuladas por um preenchimento onipresente. A consequência é que nessas circunstâncias o analista e, em particular, seu instrumental teórico são destruídos pelo método do paciente.

A partir da Sexta Lição, e até o final do livro, o leitor adentrará em uma discussão profunda dos três últimos capítulos de Transformações. Vejo como bastante acertada esta escolha na medida em que em um deles (capítulo X) consolida-se a conceituação de transformações em alucinose; e nos demais (capítulos XI e XII) há uma mudança na direção que Bion vinha seguindo pela introdução das transformações em O. Estas parecem trazer diversos problemas para o leitor que vinha acompanhando Bion ao longo do livro, e é sobre eles que Luis Cláudio se debruça com grande profundidade de exame, daí expandindo sua proposta de discussão dos diversos estatutos de O utilizados em Bion.

Nessas Lições finais do livro são tratados, entre outros, temas como vínculo K, verdade, alucinose como meio onde as demais modalidades de transformações se dão, a incapacidade de suportar a ausência dos objetos, os modelos da teoria das Formas (Platão) e da religião e do misticismo, a noção de causalidade. Também é feita uma ampla discussão sobre a lida da alucinose na análise, no sentido de como o analista poderia contribuir para promover as transformações de K→O. Penso que a proposta de Bion - de propor finito-infinito ao invés de consciente-inconsciente como Freud o fez (capítulo IV de Transformações) - poderia enriquecer ainda mais a discussão nestas Lições, pois adotando este paradigma, toda a discussão sobre resistência inscreveria esta ideia em sua relação tanto com verdade como com a coluna 2 (Grade), sem a conotação consagrada em psicanálise de resistência relacionada à emergência do reprimido.

Escreve Luis Cláudio: "K gera transformações em O e é apropriado a estas transformações, mas não é adequado a O. Com isso ele [Bion] acentua o intervalo intransponível entre a lógica que rege o mundo dos conceitos... e o plano do infinito vazio e sem forma em que a experiência nasce" (p. 129). Reconhecendo logo adiante: "... o trabalho de dizer deve caminhar por estas veredas tortuosas em que nos aproximamos de um lugar, contornando-o vezes sem conta, quase chegando sem chegar, passando perto e retrocedendo etc. De cada ângulo vê-se um pedaço, nunca se vê direito e completamente" (p. 144). Com este (quase) final, o leitor de Bion sente-se bastante acompanhado em sua travessia.

Ao final da leitura deste livro ficou-me a impressão similar à que frequentemente experimentamos na clínica e que, certamente, o autor também experimentou ao ler o próprio Bion: "... a partir do caos começa a se formar um padrão que, apesar disso, se mantém aberto e solicitando novos elementos que, por sua vez, nunca o fecharão definitivamente" (p.53).

 

Referências

Bion, W.R. (1962). O aprender com a experiência. Rio de Janeiro: Zahar.         [ Links ]

Bion, W.R. (1963). Os elementos de psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar.         [ Links ]

Bion, W.R. (1965). Transformações: mudança do aprendizado ao crescimento. Rio de Janeiro: Imago.         [ Links ]

Bion, W.R. (1970). Atenção e interpretação. Rio de Janeiro: Imago        [ Links ]

Bleandonu, G. (1990). Wilfred R. Bion: a vida e a obra. Rio de Janeiro: Imago.         [ Links ]

Kuhn, T.S. (1962). A estrutura das revoluções científicas. São Paulo: Perspectiva.         [ Links ]

 

 

Correspondência:
Julio Frochtengarten
Rua Januário Miraglia, 99
Vila Nova Conceição, São Paulo, SP
juliofro@uol.com.br

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