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Revista Brasileira de Psicanálise

versión impresa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.46 no.3 São Paulo jul./set. 2012

 

RESENHAS

 

Violência e masculinidade

 

 

João Alberto Carvalho

Professor adjunto do departamento de neuropsiquiatria da Universidade Federal de Pernambuco UFPE, psicanalista do Círculo Psicanalítico de Pernambuco, ex-presidente da Associação Brasileira de Psiquiatria

Correspondência

 

 

Autora: Susana Muszkat
Editora: Casa do Psicólogo, São Paulo, 2011, 254p.
Resenhado por: João Alberto Carvalho

Apresento o livro Violência e masculinidade, da psicanalista Susana Muszkat. Trata-se de publicação oriunda de laboriosa pesquisa iniciada na Organização Não Governamental Pró-Mulher, Família e Cidadania (PMFC). O foco foi a atuação junto a famílias de baixa condição econômica, em situação de violência. Partindo de dados das Delegacias da Mulher do Estado de SP, a autora estudou o que se denomina violência doméstica, comumente vista como prática violenta de homens contra suas companheiras e/ou filhos.

Susana Muszkat, já de início, indaga o "caráter naturalizado da violência" lembrando uma ideologia hegemônica masculina, vivida por homens e mulheres aprisionados em papéis sociais estabelecidos e de algum modo imutáveis. Estamos diante de um trabalho que é uma empreitada de enorme utilidade, fincada na prática de uma psicanalista exercendo seu conhecimento na escuta individual, mas também comprometida no dia a dia com realidades sociais que extrapolam os consultórios privados. Tudo isso com base, sempre, no conhecimento psicanalítico, sem abrir mão do debate com outras áreas do saber, como proposto por Freud.

Na elaboração de sua pesquisa, tomou o caminho, na época não tão frequente, de escutar justamente os homens, figuras usualmente tidas como agressoras. Desse modo, Susana e seu grupo de trabalho voltaram-se para toda a família, sem privilegiar apenas aqueles tradicionalmente tratados como vítimas: as mulheres e as crianças.

Tudo isso já anunciou a postura distanciada da visão essencialista, pouco complexa e que tende a cristalizar homens e mulheres em papéis sociais fixos. A escolha da autora por um posicionamento construtivista implicou no uso de elementos da antropologia interpretativa, entendendo o homem como parte de uma rede simbólica, marcado pela cultura. Assim, podemos pensar as relações entre homens e mulheres sem fixidez de papéis, mesmo com repetições históricas.

O trabalho que apresento parece-me compatível com a ideia de que um conceito ou campo reflexivo está ligado a relações históricas e culturais que o delimitam. Mudanças estão sujeitas a contingências, mas simultaneamente representam possibilidades. Foucault (1995) apontou que mudanças sociais se associam com instituições, processos socioeconômicos, comportamentos e normas que se impõem ao indivíduo.

O texto de Susana é precioso para profissionais de diferentes áreas. Sua publicação em livro tem valia, além de artigos isolados em publicações acadêmicas - importantes, mas que nem sempre chegam às mãos de pessoas que trabalham no campo social, fora das universidades.

Violência e masculinidade cumpre um bem estruturado percurso na literatura de gênero em geral, com ênfase na violência. Os autores que são apresentados situam-se tanto na literatura feminista, como nos estudos de gênero voltados para o binômio saúde/doença, masculinidade etc. Susana trafega com segurança e profundidade por trabalhos de Vance, Weeks, Rubin, Kimel, Kaufan, Barbosa, Bourdieu e outros.

A elaboração do estudo é permeada em todo seu percurso pela psicanálise. Neste ponto destaco que a autora não pretende traçar perfis psicológicos dos indivíduos, categorizá-los. Pelo contrário, busca na escuta das falas masculinas encontrar subsídios para seguir escutando "de forma a poder construir modelos de funcionamento mental, ainda que provisórios, visando à compreensão de como e por que determinados valores culturais são incorporados e passam a determinar formas de comportamento". O texto procura oferecer a "ilustração de uma forma de funcionamento, em um determinado grupo, em seu específico contexto sociocultural" (p. 105-106).

A autora distingue agressividade, ódio, destrutividade e violência sob a ótica psicanalítica. Os textos freudianos são meticulosamente debatidos, de 1905 até 1930, da metapsicologia aos trabalhos culturais de Freud. As postulações psicanalíticas dialogam com noções clássicas de gênero, violência simbólica e desequilíbrio de poderes. Sem pretender conciliar teorias, Susana Muszkat articula conhecimentos da obra freudiana com autores como Scott, Heilborn, Duarte, entre outros.

O rico levantamento teórico apresentado no livro Violência e masculinidade parece demonstrar muito bem o que temos discutido e é bem elaborado por autores como Ghaemi (2010) sobre saúde mental. Diante de temas complexos envolvendo indivíduos, períodos históricos, diversos interesses e possibilidades, não devemos buscar explicações únicas, que resultem em dogmas e reducionismos. Devemos também nos afastar de ecletismos, que acabam por não aprofundar aspecto algum. O uso de diferentes teorias serve, justamente, para mostrar que o conhecimento não se autolimita, pelo contrário. É do reconhecimento de limites e possibilidades que a ciência avança.

Uma discussão aprofundada, plural, termina por estimular a presença de diversos profissionais com seus saberes no enfrentamento de questões complexas como a estudada aqui. A intervenção defendida não é a negação da violência imposta às mulheres, mas o reconhecimento de que todos nós estamos sujeitos a diversas formas, às vezes sutis, de opressão. Nada justifica a violência em suas variadas apresentações, porém devemos seguir em amplas reflexões que incluam homens e mulheres, longe de destinos naturais para superioridades ou inferioridades de gênero, entre outras condições humanas.

Como mostrou Susana, as mulheres em muitos momentos acham-se aprisionadas em papéis idealizados de romantismo amoroso, por exemplo, vivendo em desamparo e com alternativas escassas de novas significações. Os homens do grupo estudado também. Diante de desamparos, fragilidades sociais e vulnerabilidades diversas, acabam buscando ancoragem em valores idealizados tradicionalmente para o gênero masculino, inclusive alguma forma de violência. Como bem fala a autora: "em ambos os casos, assistimos a uma estereotipia como último recurso simbólico" (p. 239).

A psicanálise, desde Freud, nos ensina que não há destino determinado para homens ou mulheres. Tradicionalmente, a noção de destino implicaria uma necessidade desconhecida que dominaria o indivíduo em sua existência no mundo, como parte de uma ordem maior. O destino seria cego. Uma adaptação de cada indivíduo a seu posto, sua função, como parte de uma engrenagem. Ao longo da história, essa formulação acabou abrindo caminho para a ideia de uma expressão objetiva e causal da necessidade do mundo e uma dialética. Assim, a tendência filosófica contemporânea, mostra-nos Abagnano (1996), é entender que aquilo que se chamava destino corresponde a algo complexo e não relativo a uma ordem única ou universal, um lugar determinado. O homem em todas as suas circunstâncias, individuais e sociais, está no centro da construção de sua existência.

O livro de Susana Muszkat está cheio de propostas para reflexão. Estimula nosso interesse pelo desdobramento atual de seu trabalho junto às famílias em situação de violência. Trata-se, a meu ver, de leitura necessária a todos os que se interessam pelo estudo das relações humanas, labutam no campo das intervenções sociais, sejam psicanalistas ou profissionais de qualquer área.

Leitura ágil, teoricamente bem fundamentada, Violência e masculinidade mantém o que se espera de um bom texto científico: levar o leitor a se inquietar, e de alguma forma desejar entrar no debate.

 

Referências

Abagnano, N. (1996). Diccionario de filosofia. Mexico: Fondo de Cultura Economica.         [ Links ]

Carvalho, J. A. (2003). O amor que rouba os sonhos: um estudo sobre a exposição feminina ao HIV. São Paulo: Casa do Psicólogo.         [ Links ]

Foucault, M. (1995). A arqueologia do saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária.         [ Links ]

Ghaemi, S. N. (2010). The rise and fall of the biopsychosocial model: reconciling art and science in psychiatry. Baltimore: The Johns Hopkins University Press.         [ Links ]

 

 

Correspondência:
João Alberto Carvalho
Praça Prof. Fleming, 117, 1301
52050-180 Jaqueira, Recife, PE
Tel: 81 3221-5397
joaoagc@uol.com.br

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