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Revista Brasileira de Psicanálise

Print version ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.46 no.4 São Paulo Oct./Dec. 2012

 

ARTIGOS TEMÁTICOS: PRIMEIRAS ENTREVISTAS

 

As primeiras entrevistas com Marcel: sobre fort-da e entrada em análise

 

The initial interviews with Marcel: on fort-da and entry into analysis

 

Las primeras entrevistas con Marcel: sobre fort-da y la entrada en análisis

 

 

Fernando José Barbosa Rocha

Membro efetivo e Analista didata da Sociedade Brasileira de Psicanálise do Rio de Janeiro SBPRJ

Correspondência

 

 


RESUMO

Este trabalho utiliza uma vinheta clínica para ressaltar a importância, nas primeiras entrevistas, do trabalho de retificação subjetiva na entrada em análise, fazendo com que o candidato à análise passe a se reconhecer como partícipe da situação geradora da dor. Assinala como uma memória construída por meio de uma narrativa pode permitir que o passado seja reinventado no presente, dando sentido a pulsões que, não conseguindo advir, não existiam como evento psíquico.

Palavras-chave: primeiras entrevistas; retificação subjetiva; entrada em análise; fort-da.


ABSTRACT

This paper uses a clinical vignette to emphasize the importance, in the initial interviews, of the subjective rectification in the entry into analysis, causing the candidate to analysis to begin to recognize him/herself as a participant of the situation that creates pain. This work points out how a memory built through a narrative can allow the past to be reinvented in the present, making sense of drives which, failing to occur, did not exist as a psychic event.

Keywords: initial interviews; subjective rectification; entry into analysis; fort-da.


RESUMEN

Este estudio utiliza parte de una experiencia clínica para enfatizar la importancia, en las primeras entrevistas, del trabajo de rectificación subjetiva en el momento de la entrada en análisis, haciendo que el paciente se reconozca como parte de la situación generadora del dolor. Destaca cómo una memoria construida a través de una narrativa puede permitir que el pasado se reinvente en el presente, dando sentido a impulsos que, no consiguiendo manifestarse, no existían como acontecimiento psíquico.

Palabras clave: primeras entrevistas; rectificación subjetiva; entrada en análisis; fort-da.


 

 

Vous êtes venu à votre séance un petit enfant à la main; peut-être avons-nous vous et moi à l'écouter, car nous avons beaucoup à en apprendre, et à en prendre soin
(Joyce McDougall, 1989).

 

A despedida

Em sua última sessão de análise, Marcel se despede:

- Au revoir, Monsieur. E muito obrigado! Você me transformou num novo homem.

- Você está se referindo ao nosso trabalho em comum. Au revoir, Monsieur - respondi.

E nos separamos com um caloroso aperto de mãos.

Já na soleira da porta, risonho, Marcel diz:

- Despedir-me com um "au revoir, Monsieur" é significativo. Foi o que me trouxe no começo. Um dia irei convidá-lo para conhecer a nova casa.

Pensei: a nova casa é Marcel com seus novos arranjos psíquicos, ressignificações de sua história, provocados por sua experiência analítica.

 

O primeiro encontro

Há sete anos, Marcel chegou ao meu consultório com uma demanda de análise por mandato, dizendo estar com uma depressão. Faz essa afirmação parecendo não se sentir implicado subjetivamente, já que fala de depressão como algo exterior a sua subjetividade. Fora aconselhado por um primo analisado a fazer análise. Sente-se "desanimado" diante da ideia de ter que se preparar para assumir a função de professor-titular na faculdade onde é professor-assistente, e assim ocupar o lugar do ex-chefe, recentemente aposentado. Ao primo, explicou ser fundamental que o analista que lhe fosse indicado pudesse compreendê-lo em francês, caso precisasse falar aquele idioma. Professor talentoso e renomado na área das Letras, bastante querido e admirado por seus alunos, revela não se sentir motivado para assumir um cargo de chefia. Diz: "Não sinto necessidade disso".

É casado e tem filhos. Conta que se sente "cobrado" a realizar tarefas para galgar o novo degrau de titular, que representa "o topo em sua carreira". Nascido em Portugal, informa, de saída, que não conheceu o pai, que era francês, falecido quando Marcel tinha apenas um ano.

Nesse primeiro encontro, apesar de parecer não ter consciência do conflito interno, diz-se satisfeito de estar em contato com um "profissional que fala a língua paterna", o que me fez supor que isso já era parte de uma pré-transferência. No final dessa primeira entrevista, digo-lhe que vamos nos reencontrar para a entrevista seguinte uma semana depois, devido aos feriados da Páscoa.

 

O segundo encontro: Marcel e o jogo do esconde-esconde

Ao voltar para a segunda entrevista, Marcel me parece motivado com o reencontro. Comunica que o primo explicou que, em análise, devemos falar tudo o que nos passa pela cabeça, inclusive sonhos e pensamentos que por acaso surjam em nossa mente. Marcel diz não compreender bem o porquê dessa regra, mas passa a narrar uma fantasia que teve no intervalo entre os dois encontros, relacionada com uma brincadeira de sua infância - o esconde-esconde.

- Tive um pensamento no qual me via em casa dos meus avós, na cidade de L., na infância. Havia um quintal atrás, com uma lavanderia coberta por um telhado sustentado por pilares. Eu me via escondendo-me atrás de um pilar e devia ter entre quatro e cinco anos. Escondido ali, me imaginei brincando de cache-cache.

(Silêncio).

- Você disse cache-cache? - intervenho.

- Não sei o que me levou a dizer cache-cache no lugar de esconde-esconde. Eu não falava francês quando criança, embora minha mãe tivesse me contado que meu pai costumava falar francês em casa. Mas aqui saiu cache-cache e você logo notou. Se você não soubesse francês, não teria prestado atenção.

- E isso lhe fez pensar que seu pai falava francês em casa.

- Imaginei-me, criança, propondo ao meu pai brincar de cache-cache comigo, e ele se escondia e desaparecia.

(Silêncio).

- E não mais voltava? Na sua imaginação, você fez seu pai desaparecer - digo.

- É por isso então que me sinto culpado pela morte dele!

- É uma ideia interessante para a gente aprofundar na análise.

Assim, Marcel faz um deslocamento da causa de sua demanda: de queixas de depressão sem implicação de sua subjetividade para um questionamento com implicações subjetivas, indicando certo reconhecimento da existência de conflito interno. Considerei que essa retificação subjetiva propiciou sua entrada em análise.

Penso, aqui, na observação de Freud das brincadeiras de seu neto, por ele apresentada em "Além do princípio de prazer" (1920/1976) e que se tornou uma ilustração exemplar da estruturação elementar da significação no sistema significante de uma língua e do processo de simbolização. O jogo repetitivo da criança que apresenta sua primeira brincadeira inventada se resume a lançar para longe de si todos os pequenos objetos à sua disposição, proferindo um O prolongado, reconhecido como um fort ("longe, partiu"). Um dia, Freud assiste a uma brincadeira semelhante, que consiste em lançar um carretel de madeira preso a um barbante por cima da beirada do berço da criança, cercado por uma cortina, pegando-o de volta em seguida. Essa brincadeira de desaparecimento-reaparecimento é efetuada com dois gestos alternativos e opostos, acompanhados do vocábulo O para o lançamento e de um alegre da! ("aqui está") para o retorno. Freud enfatiza o lançamento do carretel, interpretando essa brincadeira como uma representação da partida e da ausência da mãe, equivalente a um "vá embora!" (fort!), ou então como o prazer de controlar ativamente, no cenário lúdico, o evento doloroso sofrido passivamente.

Para Freud, lembra Ducart (2007/2009), a criança já conta com alguns vocábulos em seu repertório. As duas séries de oposições e de diferenças, gestuais - ou melhor, mímico-posturo-gestuais - e fonoprosódicas, não são simples elementos de uma lógica combinatória da qual surge um efeito de sentido; elas são solidárias em uma função de simbolização na qual o corpo é primordial. Para Lacan (1973, p. 58), citado por Ducart (2007/2009),

[...] o carretel é apenas o índex do sujeito, seu objeto revestido da insígnia do significante (o par das oposições fonêmicas), e que a brincadeira da repetição da partida da mãe é o representante da representação, a marca de uma ausência ou, para ser mais preciso, do que vem a fazer falta para o sujeito.

No que concerne a Marcel, uma fantasia semelhante retorna mais tarde em sua análise, ligada à culpa por ter feito o pai desaparecer, quando ele tem um insight de que esse pensamento estava relacionado com sua inibição em galgar o lugar de titular na faculdade. Tal elaboração em análise muito contribuiu para que, anos mais tarde, ele obtivesse êxito nas provas e chegasse a lugares antes proibidos - objetos de desejo e de culpabilidade.

Uma importante afirmação de Freud foi a de que a infância, longe de ser um paraíso terrestre que terminaria com a adolescência, é um lugar de um grande drama em torno da sexualidade, desde os primeiros anos de vida. Provavelmente, a fantasia de culpa construída por Marcel estaria relacionada a vivências edípicas: desejo de morte do pai e de substituição deste ao lado da mãe viúva. O conflito edípico seria acentuado pelo fato de a mãe projetar a imagem do marido idealizado e morto no filho. Daí sua culpa em relação ao sucesso - ser o "titular" -, que significava ocupar o lugar antes ocupado pelo pai.

Estudos atuais de Jacques André (2009) e outros, em França, têm chamado a atenção para a ideia de que as vivências, na primeira entrevista, dispõem das condições de um fenômeno a posteriori - après-coup, em francês -, sob o duplo registro do trauma na abertura de uma experiência analítica. Um desejo inconsciente se deduz do termo après-coup, "só depois": a aspiração é a de que exista um depois, conjugado a esse outro tempo primeiro; que o futuro seja de reencontros com o golpe do passado. O après-coup condensaria dois movimentos: o de um passado/presente e de um presente/passado. Assim, na transferência, seria repetido o trauma da infância.

No intervalo entre as entrevistas, foi acionada a vivência do trauma em seus dois tempos. Imagino que o fort-da tenta ser reelaborado por Marcel na fantasia - narrativa - do cache-cache, em que, no a posteriori (après-coup) do primeiro encontro, se repetiu o trauma do desaparecimento do pai, origem da fantasia construída a partir do cache - cache. Assim, a elaboração psíquica da fantasia do cache - cache introduz o entrevistando na consciência de conflito interno.

Ao longo do processo analítico, os pares passado/presente e presente/passado retornam no discurso do analisando quando ele questiona:

Será que o cache-cache foi uma mensagem do inconsciente para que eu pudesse compreender alguma coisa? De alguma maneira, sofri com o desaparecimento do meu pai e disso devo ter o registro. Pergunto-me se eu me culpei pelo desaparecimento dele ou da imagem que construíram dele para mim.

Estamos considerando o conflito interno como um estado de sofrimento, no qual a consciência que dele o sujeito possa ter o torna partícipe da situação geradora de dor. Após construir uma história na qual teria feito o pai desaparecer e não voltar, Marcel se implica na causa do seu sofrimento indagando sobre sua responsabilidade nessa vivência. Uma prova do poder da narrativa é o fato de Marcel se ver, na fantasia do cache-cache, com a idade de quatro-cinco anos, quando na realidade o pai morrera quando ele tinha apenas um ano.

É sob esta ótica que hoje compreendemos a formulação proposta por Aulagnier (1973) quanto à adesão à hipótese fundamental da existência do inconsciente como sendo imprescindível para uma demanda de análise em nome próprio.

Entendemos o deslocamento do motivo da demanda como uma retificação subjetiva, expressão que traduz a necessidade de o entrevistado modificar a sua relação com a demanda1.

Nasio (1999), referindo-se às diferentes fases do tratamento, ressalta a primeira como sendo a da retificação subjetiva, o que ocorre durante as entrevistas preliminares. Particularmente no fim da primeira entrevista e na seguinte, conduzimos o analisando a uma localização da sua posição na realidade que ele nos apresenta. Ele pode nos falar de sua realidade, inscrita em uma família, em um casal, em uma situação profissional - o que nos importa principalmente, diz Nasio, é a relação que a pessoa mantém com os seus sintomas.

É sobre esse ponto - o sentido que o analisando atribui aos seus sintomas e sofrimentos - que intervirá o que chamamos de retificação subjetiva. A tomada de consciência do entrevistando ou analisando de que ele participa da formação do seu sintoma permite-lhe mudar a relação com sua demanda e, por conseguinte, retificar sua posição diante do sofrimento.

Encontramos em Freud o significado dessa retificação no momento em que ele leva sua analisanda Dora a constatar que ela fazia mais do que simplesmente integrar a grande desordem do mundo de seu pai, da qual ela se queixava. Freud indaga a Dora qual teria sido a participação dela nessa desordem. Essa pergunta, que se tornou clássica, sem dúvida pode ser dirigida a todo analisando nas primeiras entrevistas. Assim, Freud inaugura a histórica retificação subjetiva.

Essa mudança de registro, de alguma forma, já vinha se anunciando quando Marcel exigiu que o analista que o primo indicasse falasse o idioma francês.

Sabemos que a palavra em psicanálise é uma atividade que ocorre por meio da formação de cadeias associativas de diferentes impressões. A expressão francesa cache-cache se apresenta na fala de Marcel como um meio de transporte - transferência - que carrega sua vivência infantil de culpa pela morte do pai.

Na perspectiva da psicanálise, a fala de Marcel revela que uma ação consciente de seu discurso foi perfurada, permitindo que emergisse do inconsciente o que lá se mantinha silente, como não dito. Como uma espécie de lapso - ato falho -, a expressão cache-cache abriu uma passagem que se ofereceu ao entrevistando para a criação de um novo sentido, ou mesmo para a formação de sentido, possibilitando que uma nova cadeia associativa se estabelecesse.

Desta forma, semelhante ao lapso ou ato falho, a expressão deixa de ser uma "falha" para tornar-se uma possibilidade de se criar um nexo de importância e valor que será conferido, fundamentalmente, pelo próprio falante. Como instante de perfuração de uma ação consciente, falar cache-cache no lugar de esconde-esconde foi uma maneira de "deixar falar" o inconsciente.

Aí aparece toda a pertinência da regra fundamental de Freud, que em seu texto "Sobre o início do tratamento" (1913/1970) aconselha seus analisandos a expressar, em análise,

[...] tudo o que lhes passe pelo espírito: conduza-se como se fosse um viajante que, sentado perto da janela de seu compartimento, descrevesse a paisagem por ele percebida a uma pessoa sentada atrás dele. Enfim, jamais esqueça vossa promessa de ser inteiramente franco, não omita nada daquilo que por uma razão qualquer lhe pareça desagradável de falar (p. 94-95)2.

A respeito dessa sempre atual recomendação freudiana, Bernard Chervet (2012, p. 175) comenta que, "na sessão, a regra fundamental inicia, induz uma transgressão do modo de pensar. Trata-se de falar antes de refletir, enquanto nós aprendemos a refletir até mesmo, muitas vezes, antes de falar".

 

Entrevistas preliminares e analisabilidade

Ao delimitar o campo do saber que constitui a psicanálise, nele ressaltando sua dimensão indagadora, Freud define o tratamento psicanalítico como um saber em movimento. O que aparece, então, como específico é o indissociável laço entre o ato de investigar e um saber que se oferece à transformação.

O momento das entrevistas preliminares possibilita ao analista situar-se diante do tipo de demanda que lhe faz o entrevistando-analisando em potencial. Nos casos em que o método psicanalítico é constatado como pertinente, ao analista cabe a tarefa de transformar o pedido de ajuda em demanda de análise. O trabalho das entrevistas preliminares pode fazer com que o sofrimento do entrevistando transforme-se em uma demanda de análise. Ao mesmo tempo, representa o momento no qual o analista deverá interrogar-se sobre suas possibilidades de empreender o trabalho com aquele entrevistando em particular.

Assim, as entrevistas preliminares devem considerar tanto a dimensão que situa a indicação da análise como adequada ou não, quanto a que se volta para a motivação do analista no empreendimento da análise com aquele analisando específico.

Cabe lembrar que a pertinência do método analítico coloca questões quanto aos procedimentos a serem adotados nos casos em que não há indicação de "análise clássica": quando o analisando se expressa, sobretudo, por meio de comportamentos sintomáticos que ocupam o lugar da elaboração psíquica; quando, no funcionamento psíquico, há entraves que dificultam a busca de uma significação para o sofrimento; quando a ideia de um tratamento pela palavra é desvalorizada e o analista é mais solicitado em sua pessoa do que em sua função - em tais casos, é inquestionável a necessidade de operar adaptações a fim de fazer face a essas situações.

Diante da precariedade simbólica, se não cabe ao analista ser um aconselhador, ele é desafiado a ter uma maior participação nas construções de sentido em que, emprestando suas fantasias em uma construção compartilhada, pode promover sentidos, já que a angústia resultaria de uma carência de representações. Nesses casos, a escuta pode evocar um diálogo entre duas fantasias, instaurando um momento de criação - criação de palavras, para dizer o jamais antes dito, não porque estivesse sob o regime do recalque, mas por não haver sido antes nomeado. Seria o momento, portanto, do ingresso em uma certa ordem de imprevi-sibilidade, de não saber, conscientes de que para chegar ao saber devemos não só escutar a fantasia, mas ir além, tentando torná-la objeto de produção de sentido. Nesse caso, interpretar é transpor a formalidade que o signo oferece, é buscar luz para o obscuro no paciente.

Só os analistas "preguiçosos" - ou seja, aqueles que hesitam em deixar em suspensão a teoria - seguem cartilhas teóricas, na ilusão de que no setting seja possível a previsibilidade, evitando, assim, serem surpreendidos pelo novo, pelo imprevisível. Já os "não preguiçosos" valorizam a produção de sentidos nascidos do não saber. Mais do que nunca, aqui parece pertinente a ideia de que analisar não seria um saber-fazer, mas um fazer-saber.

Em suma, analisar é retomar contato com a criança perdida, a ela oferecendo um instrumental simbólico que lhe possibilitará a expressão. Desse modo, para os carentes de simbolização, a psicanálise poderia colocar a criação no lugar da angústia. Esses seriam os objetivos da produção de sentido, produção que não deve conduzir a certezas, à ilusão de que há um saber fixo, mas à construção de cadeias de sentidos em que a incerteza comanda as novas buscas.

As entrevistas preliminares poderão constituir um momento decisivo para o estabelecimento de um processo de análise que conduza à abertura do inconsciente, assegurando, por conseguinte, uma nova modalidade de funcionamento psíquico. A prática analítica visa oferecer-se como possibilidade de o analisando realizar uma experiência do inconsciente que o leve a aceder à sua singularidade e à quebra da onipotência.

A respeito das entrevistas preliminares em psicanálise, Aulagnier (1973, p. 45-47) fertiliza o debate quando formula a hipótese de que a análise ocorre quando o entrevistando aceita a existência do inconsciente. Essa hipótese indica também que, mesmo sem haver um saber formalizado do entrevistando ou um saber convergente com o do analista sobre a ideia de inconsciente, o reconhecimento de que este existe provocará impactos e consequências ao longo do processo. Esse reconhecimento é, para Aulagnier, a viga mestra que permite à transferência não cair na pura dependência afetiva, e autoriza o analisando a reconhecer e assumir a autonomia de sua demanda. Tal abordagem traz embutida a ideia de que o sujeito teria consciência de conflito, possível indicador para ter justificada sua demanda de análise.

Há, portanto, uma distinção entre o sofrimento vivido pelo entrevistando sem que haja qualquer consciência de conflito e quando há essa consciência. Para McDougall (1989, p. 17), "se não existe reconhecimento de sofrimento psíquico, tais sujeitos não são verdadeiramente candidatos à análise, mesmo que os outros lhes demonstrem com insistência que eles precisam de ajuda terapêutica". O conflito interno seria, então, um estado de sofrimento no qual o sujeito "se sabe" participante da situação geradora do sofrimento.

Cabe lembrar que algumas pessoas procuram a análise apresentando um grande sofrimento sem, contudo, possuírem uma organização psíquica que lhes permita compreender a noção de conflito inconsciente. Diante dessa questão, podemos observar duas posturas: a primeira é representada por uma tendência, no analista, de considerar apressadamente alguns analisandos neuróticos como "casos-limite" ou como analisandos narcísicos (pressa que poderá levá-lo a confundir sintomatologia com organização psíquica de base) e, em decorrência disso, realizar remanejamentos no setting de modo inadequado. Com relação a esses casos, a escuta da associação livre e a observação da transferência poderão servir de pontos de referência para o analista avaliar o diagnóstico. A segunda postura, em meu entender adequada, é a de efetivar mudanças no enquadre analítico que viabilizem um trabalho com analisandos que, não podendo beneficiar-se de uma "análise clássica", possam ser atendidos por um psicanalista que lhes oferecerá o que Jean-Luc Donnet (1975) denominou de "o divã bem temperado"3 (Rocha, 2011).

Concordo com C. Bouchard e J.-M. Porte (1998, p. 6) quando dizem que, antes de se instituir um setting analítico, faz-se necessário que certos mal-entendidos sejam dissipados. Eles exemplificam, interrogando: "Que então fazer diante de um mal-entendido que podemos caricaturar por um ‘fale-me' que teria como resposta um ‘trate-me'?".

Algo importante a se evitar nas entrevistas preliminares é o estímulo de uma relação transferencial, prolongando o número de entrevistas com um entrevistando quando o analista não se sente com possibilidades de atendê-lo, quando percebe que a problemática do entrevistando é incompatível com seu desejo de analisá-lo. Esse cuidado denuncia a inadequação de se estabelecer aprioristicamente um número de entrevistas, embora deva ser mantido como princípio básico um número que preserve o entrevistando de uma perturbação na sua economia psíquica.

Assim, quando o analista considera pertinente seu engajamento com aquele entrevistando específico, a ele cabe ainda interrogar-se sobre sua capacidade pessoal de se engajar nesse processo. Quando a resposta for positiva, cabe-lhe também decidir se tem ou não interesse em se colocar para esse sujeito como seu eventual analista. Essa escolha acaba se constituindo em um segundo momento, que permite ao analista reconhecer, independentemente da etiqueta nosográfica, a sua própria problemática psíquica, repensar seus pontos de resistência (embora saibamos que a maioria deles é da ordem do inconsciente) e formular um autodiagnóstico que, no dizer de Aulagnier (1989, p. 183-203), lhe propicie rever sua "capacidade de investir e de preservar uma relação transferencial não com um neurótico, um psicótico, um caso-limite, mas com o que pode prever, para além do sintoma, sobre a singularidade do sujeito que está diante dele".

Além dessas duas dimensões - a que se refere aos critérios advindos da teoria e a decorrente do percurso autointerrogativo ou de autoanálise -, há outra que deriva das perguntas que o analista pode se fazer, que engloba desde "opções teóricas, posições ideológicas, a própria problemática inconsciente do analista e sua economia psíquica". Esse conjunto de elementos Aulagnier (1989) propõe inserir no termo "analisável", abrindo com isso o leque do debate, que passa a incluir o termo no campo claramente delimitado da clínica.

A analisabilidade é enfatizada por Aulagnier (1989) como uma questão que remete às possibilidades pessoais de um analista à demanda de análise. Essa abordagem torna-se relevante se considerarmos que somente a constatação de indicação de análise não é suficiente para o engajamento do analista com determinado analisando. Logo, a noção de "critérios de analisabilidade" circunscreve-se em um fator pessoal que parece escapar a qualquer codificação (Aulagnier, 1973).

Freud, no início, via na analisabilidade sintomática as possibilidades de processo analítico e não levava em conta que o analisando pudesse ter uma estrutura patológica que justificasse o tratamento sem ter uma demanda legítima de análise. Essa perspectiva pode ser constatada quando Freud, referindo-se ao caso Dora, diz que foi somente a autoridade do pai que a induziu a procurá-lo (Freud, 1905/1970).

Embora saibamos que um processo analítico não pode ser instaurado ou mesmo sustentado por meio da demanda de um outro que não o próprio analisando, isso não significa, obviamente, que o analista se restringe a receber somente os próprios demandantes, recusando aqueles que o procuram a partir da demanda de outrem - ou seja, que somente aceite aqueles que, ao falar do sintoma como um corpo estranho que provoca sofrimento, o questionam por intermédio da expressão da ideia de um conflito inconsciente, e que já tenham colocado o analista como objeto de transferência. Esse "demandante ideal de análise" seria supostamente aquele que já chegasse ao analista com o trabalho das entrevistas preliminares concluído, pronto para iniciar a análise.

Já no fim do seu texto "Sobre o início do tratamento", Freud (1913/1970, p. 186), afastando-se do modelo médico da análise, situa a demanda na iniciativa de procura e no desejo do analisando: "A força motivadora primária na terapia é o sofrimento do analisando e o desejo de ser curado que deste se origina"4.

Freud (1913/1970), passando então a considerar a iniciativa do analisando e sua autonomia em relação aos familiares ou a qualquer pessoa como necessária à eficácia terapêutica, vê a possibilidade de tratamento analítico quando o sujeito é seu próprio senhor, e sofrendo no momento de um conflito interno que é incapaz de resolver sozinho, leva o problema ao analista a fim de que este o ajude. Com isso, o sujeito procura em um interlocutor a resposta para seus enigmas, imaginando nessa busca que o analista não só seria esse interlocutor, mas também que saberia sobre os enigmas. Se essa é uma suposição esperada, é justamente por expressar a crença necessária - embora circunstancial - que o analisando deverá vivenciar em relação ao analista.

Considerar analisável um sujeito é antes aceitar que ele não será analisável por qualquer analista. Baseado nessa premissa, analisável seria a situação na qual se considera que a experiência analítica é capaz de ressignificar o conflito interno - fonte do sofrimento psíquico e dos sintomas que assinalam o fracasso das soluções que o sujeito havia escolhido e considerado eficazes até então.

 

A transferência e o retorno do pai

Em uma sessão, logo depois de deitar-se no divã, Marcel diz:

- Estou imaginando que me sinto mais culpado por não conseguir fazer o pai voltar do que por tê-lo feito sumir; seria uma culpa mais ampla, culpa por não ter pai. Está me vindo um pensamento agora sobre esta história com o pai: hoje, ao vê-lo abrir a porta para mim, me veio na figura do analista de pé a figura do pai. De imediato, pensei: vou conversar sobre pai. Pensei nessa coisa de transferência. Como se a minha vinda aqui estivesse ocupando esse lugar. Consigo, na figura do meu analista, trazer meu pai de volta e isso diminui a minha culpa. Como se algo dissesse: sob a ótica da psicanálise, trago o meu pai de volta. É como se a culpa existisse por eu não haver tomado uma atitude adequada para que ele voltasse. Imagino agora a brincadeira de cache-cache: coloco as mãos sobre os olhos e ele não aparece. A culpa vem de não o ter chamado direito; deveria ter anunciado a volta com veemência; por isso sinto-me culpado.

A expressão "veemência", empregada por Marcel, fez-me pensar em quantidade pul-sional dos investimentos e contrainvestimentos. Imagino que talvez a culpa o tivesse levado a desinvestir a imagem do pai, que seria reinvestida com o levantamento do recalque através da transferência. Daí ele ter falado "veemência". No recalque, há um desinvestimento na imagem cuja quantidade fica deslocada. É possível que, na experiência analítica, houvesse um reinvestimento "veemente" da imagem do pai, que finalmente volta na transferência.

Prossegue Marcel:

- Outra coisa que estou pensando aqui: o que fiz de errado foi não tê-lo trazido de volta, o que determinou, além do malefício da morte dele, um malefício contra mim próprio. Fico culpado porque produzi algo que me feriu tanto.

- A imagem do pai em você volta com veemência - concluo.

Ele diz, em seguida:

- Quando entrei e o vi na porta, veio uma coisa assim: o pai! É, sim, através da psicanálise eu o estou resgatando. A imagem que me vem é a de um anzol. Através do anzol, consigo descer, fisgar e recuperar o que está no fundo, o que representa resgatar esse pai que desapareceu por minha culpa.

Depois de um instante em silêncio, Marcel continua:

- O anzol, eu tenho que jogá-lo no mar, e imagino agora jogando esse anzol do meu barco. Quantas vezes não falei aqui dos meus passeios de barco... O barco, instrumento que me permite me aventurar no mar. Com o anzol, faço o resgate dele, meu pai. Quando procurei o primo, não tinha ideia do que pudesse ocorrer numa análise, da força modificadora que tem uma análise. Pode ser que eu tenha descoberto hoje que senti culpa, não por ter matado o pai, mas por não ter sido capaz de trazê-lo de volta.

- Então é a criança que existe em você que se sente muito culpada - digo. - Ao mesmo tempo, hoje você diz que vem recuperando o pai na análise.

- Na análise, na figura do anzol e do analista - diz Marcel. - O analista e o anzol são a mesma coisa. É o instrumento capaz de resgatar o meu pai. [Silêncio.] Estou tentando lembrar se alguma criança me perguntava se eu não tinha pai.

- Você já contou que, na escola, quando era Dia dos Pais, ou nas reuniões de pais, você ficava triste porque, diferente dos outros, você não tinha pai.

- Sim, lembro bem. Na escolinha maternal, havia uma esteirinha para cada criança tirar uma soneca depois do recreio. Estou me lembrando agora dessas esteiras sendo colocadas no chão. A borda da esteira era colorida e servia para identificar pela cor a esteira de cada um. A minha era verde. Eu imagino que, quando deitado, eu devesse me sentir sozinho, sem pai. Aí eu ficava triste.

Termino a sessão e comentamos, já de pé, sobre o intervalo da análise durante as férias. Penso comigo: que sonhos e fantasias serão produzidos nesse nosso cache-cache dessas pequenas férias?

Se a palavra transferência conota a ideia de transporte, o que necessita ser transportado é a quantidade de energia pulsional advinda de vivências que, por trazerem desprazer, ficam apartadas de uma representação, acumulando-se sem, contudo, poderem ser expressas. Assim, algo acontece na cena analítica que provoca uma transferência de quantidades, um transporte, e que, ao mesmo tempo, oferece uma imagem para que essa quantidade a ela se ligue (Rocha, 2011).

Liberar essa energia não significa acabar com ela por meio de uma descarga, uma vez que ela retorna - tal como acontece nos rituais mágicos e práticas de ab-reação em que, mesmo havendo descarga, por não ocorrer um processo de elaboração, tal quantidade impede a formação de cadeia (ligação entre quantum de afeto e representação), o que torna premente a repetição do mesmo ritual. No momento em que a análise visa à formação de cadeias e não apenas à descarga, haveria a possibilidade da produção de novos sentidos (Rocha, 2011). Assim, no caso de Marcel, algo aconteceu na cena analítica que provocou, por meio da palavra cache-cache, um transporte de vivências infantis de abandono e culpa.

Silvestre (1991) nos lembra que Freud, ao abordar essa questão, formula a hipótese segundo a qual seria o analista aquele que recoloca a mensagem em circulação, desde o momento em que ela chega a seu destinatário - o sujeito. Nesse momento, Silvestre ressalta que o sintoma, mais especificamente o sofrimento, desapareceria, uma vez que o sintoma, por designar um saber recalcado, seria o equivalente à interpretação - ou seja, à decifração. No entanto, mais do que decifrar, trata-se da produção de um sentido por meio de uma narrativa construída na transferência.

O analista escuta, mas não concorda, não discorda, não julga. A sua escuta revela-se diferente de qualquer outra, pois a psicanálise não opera a partir da subjetividade do analista, no sentido de que os valores pessoais do psicanalista não devem ser parâmetro para julgamento, já que o propósito da psicanálise não é o de aconselhar nem o de julgar. A escuta do analista deve ser portadora de um sentido de apelo a uma verdade que obriga o analisando a interrogar-se sobre os motivos que o trouxeram ao consultório.

Neste sentido, a escuta do analista é exercida desde as entrevistas preliminares, já que, se o entrevistando ainda é um potencial analisando, o analista, ao contrário, deve estar ocupando sua função, seu lugar. Ocupar o lugar de analista, passível de ser objeto de transferência, significa manter-se "presente" e "ausente": "presente" porque é a mola propulsora da cadeia associativa, pois, como lembra Freud, não há transferência em ausência - se é possível dizer que a transferência perdura fora do setting analítico é porque antes já houve a presença; e "ausente" no sentido de não agir sobre o analisando a partir de conflitos ou de valores pessoais. Como lugar de transferência, o analista passará a ser o significante-representante das vivências inconscientes do analisando por meio da cadeia associativa. Dessa maneira, os elementos do setting e o próprio analista podem desempenhar a função de restos diurnos -provocadores do inconsciente, que é o objeto da psicanálise. Assim, a postura do analista será importante para estimular aberturas ou fechamentos do inconsciente.

É a partir da instauração da transferência - geradora dos diferentes processos de simbolização - que se tornam viáveis os vários arranjos de uma mesma história do sujeito, uma história feita através de marcas para sempre inalteráveis, mas que não se furtam aos inúmeros rearranjos propiciadores de diferentes histórias, que tendo como personagens, em geral, o pai ou a mãe da infância, permitem que a cada novo arranjo surja um novo atributo.

Foram esses vários arranjos que possibilitaram a construção de narrativas que permitiram a Marcel resgatar, ou melhor, construir o pai.

 

O gavetão: outro cache-cache

Depois de dar notícias de como foram as férias, Marcel diz:

- Lembrei-me agora da história do gavetão onde estavam guardados os objetos que tinham sido do meu pai: caderno de notas, um mata-borrão de madeira (que levei para o meu escritório e está lá até hoje), aparelho de barbear Wilson, onde se colocava uma gilete e fechava, afiador para giletes, cigarreira de prata, coleção de cachimbos (um deles com o cabo curvo). O caderno de anotações era de couro preto. Lembro da letra dele e do papel já meio amarelado. Ah, sim, e havia uma caixinha com abotoaduras de madrepérola. Lembro-me também de mexer nas abotoaduras douradas.

- O gavetão é uma espécie de cache-cache - comento -, no qual você brincava com os objetos do seu pai.

- Minha mãe me contou que resolveu certo dia não mais abrir o gavetão para mim, porque eu ficava lhe pedindo a toda hora para abri-lo e ela ficou preocupada daquilo me trazer problemas. Fui inclusive levado a um terapeuta de crianças naquela época.

- Era como se, abrindo o gavetão, você acreditasse que podia encontrar o pai, e fechando-o era como se ele não estivesse mais lá.

- Eu pensava assim - disse Marcel, pensativo - enquanto pegava cada objeto: isso era do meu pai. Abria e fechava. Pegava a máquina de amolar giletes e dizia: isso era do meu pai, mas meu pai sem rosto. E assim por diante. Era a gaveta das coisas do meu pai e aquilo tinha uma importância muito especial para mim. Eram dois gavetões que ficavam embaixo de um sofá. Não sei mais onde esses objetos foram parar.

Marcel lembra que sua mãe pegava aquelas coisas da gaveta e falava sobre o seu pai com ternura, saudade e admiração: "Seu pai era uma pessoa tão boa". E o cobria de elogios. Certa vez, ela contou: "Ele era uma pessoa tão boa que quando se desentendia com alguém, no dia seguinte, enviava flores"

Marcel prossegue:

- Talvez a minha frustração, culpa, era por perceber que, abrindo e fechando o gavetão, ele não se materializava. Tenho a impressão de que, talvez, essa brincadeira com o gavetão, de abri-lo e fechá-lo, era como se o meu pai desaparecesse e aparecesse, como num cache-cache.

- Interessante que essa memória sobre o gavetão tenha aparecido quando você volta das férias, após uma separação - comentei.

Mas sem nada dizer a Marcel, pensei que, na minha figura, ele tentava reencontrar o pai. Na sessão seguinte, Marcel traz um sonho que teve com um gatinho da casa.

- Todos os dias eu abro a porta do jardim para ele passear. No sonho ele foge e je le ratrappe - diz, em francês. - Gato me faz pensar em desejo de liberdade.

- Mas ratrapper significa também recuperar - retruco. - E você estava falando de recuperar no gavetão o pai perdido.

Parecendo haver sido surpreendido, Marcel silencia. Penso que, novamente, a separação do analista aciona o jogo do esconde-esconde com a figura paterna, nas várias ocasiões de separação. E ele prossegue:

- Nos congressos, geralmente, escrevem o meu nome faltando uma letra, que é algo que me liga ao meu pai. Temos o mesmo prenome.

Aqui, penso: se as experiências traumáticas foram aquelas que não chegaram a ser representadas - simbolizadas, no caso de Marcel -, o que se repete é a experiência do desaparecimento do pai, e que ele tenta, na experiência do a posteriori do primeiro encontro - da primeira entrevista -, simbolizar através da construção de uma narrativa na qual é repetida a brincadeira do cache-cache.

Neste caso, identifico as ideias de Danielle Quinodoz (2007), quando nos diz que há um precioso fenômeno, importante de se conhecer, mesmo que não saibamos explicá-lo: a primeira entrevista contém, em germe, tudo o que será a problemática central do tratamento.

A narrativa de Marcel me evocou García Márquez, que na epígrafe de sua biografia escreve: "A vida não é a que a gente viveu, e sim a que a gente recorda, e como recorda para contá-la" (2003, p. 5). As imagens da brincadeira do cache-cache atraem marcas psíquicas de experiências que movimentam e criam novas associações. Assim, a história do cache-cache não é uma recordação de uma reconstituição do passado, mas uma memória construída por meio de uma narrativa, na qual o passado se reinventa no presente, dando sentido às pulsões ávidas por respostas. Como nos diz Pontalis (1994, p. 102), "o que se repete - e não digo o que se rumina - é aquilo que não aconteceu, que não encontrou o seu lugar e que, não tendo conseguido advir, não existiu como evento psíquico" - o acontecimento que, tendo deixado somente a marca de quantidade, se vê atestado por sua atualização através de uma narrativa construída na sessão, na transferência.

 

Referências

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Correspondência:
Fernando José Barbosa Rocha
Av. Rui Barbosa, 624/201
22250-020 Rio de Janeiro, RJ
Tel.: (21) 2553-7481
fernando1rocha@uol.com.br

Recebido em 18.10.2012
Aceito em 13.11.2012

 


1 Nasio (1999, p. 162) chama a atenção para o fato de que, embora a expressão "retificação subjetiva" não tenha sido empregada por Freud, este teve a "intuição do seu significado". Assinala, também, que Lacan extraiu essa expressão de Ida Malcapine (ver, dessa autora, o artigo "L'évolution du transfert", 1972). Lacan, segundo Nasio, encontrou em um dos textos de Freud sobre a transferência a ideia de "retificação", à qual acrescentou "subjetiva". Eis o que escreve Freud (1890/1984), citado por Nasio (1999): "A partir do momento em que os médicos reconheceram claramente a importância do estado psíquico na cura, tiveram a ideia de não deixar mais ao doente o cuidado de decidir o grau da sua disponibilidade psíquica, mas pelo contrário, arrancar-lhe deliberadamente o estado psíquico favorável, graças a meios apropriados. É com essa tentativa que se inicia o tratamento psíquico moderno". Ainda para Nasio (1999), a transferência supõe que comecemos, pouco a pouco, a interferir, a nos introduzir no sofrimento do outro: "Só poderemos fazê-lo se entrarmos na cena, no roteiro, nos detalhes, na pontuação do discurso. É o que Lacan chama de semblante, isto é, aquilo que desencadeia, abre, modula o discurso do analista, o que institui e inaugura, verdadeiramente, o discurso analítico. Assim, a demanda de cura feita no início da análise é substituída lenta e progressivamente por manifestações transferenciais" (p. 164). E o autor recorda o que diz Freud (1984, p. 71): "Essa relação, que por brevidade se chama transferência, logo toma o lugar, no analisando, do desejo de cura".
2 Tradução livre do autor.
3 Título do livro.
4 Tradução livre do autor.

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