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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.46 no.4 São Paulo out./dez. 2012

 

ARTIGOS TEMÁTICOS: PRIMEIRAS ENTREVISTAS

 

As entrevistas iniciais e a escolha da técnica

 

Preliminary interviews and the choice of technique

 

Las entrevistas preliminares y la elección de la técnica

 

 

Flávio Carvalho Ferraz

Membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, Livre-docente pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo IP-USP

Correspondência

 

 


RESUMO

As entrevistas iniciais em psicanálise têm uma finalidade diagnóstica ampla, que não se reduz à classificação do paciente dentro de quadros nosográficos da psicopatologia. Desde Freud, entretanto, a preocupação com a diferenciação entre o neurótico e o psicótico sempre teve uma ênfase mais forte. Autores de diversas escolas ampliaram e enriqueceram uma teoria da entrevista, colaborando com a passagem do procedimento empírico a uma investigação com base epistemológica. No presente artigo, defende-se o valor do conceito de singularidade idiopática, de Maurice Dayan, na avaliação do funcionamento psíquico nas entrevistas iniciais e na consequente escolha da técnica a ser empregada no trabalho da análise.

Palavras-chave: entrevistas iniciais; técnica psicanalítica; singularidade idiopática.


ABSTRACT

Preliminary interviews in psychoanalysis have a broad diagnostic purpose, which is not reduced to the classification of the patient within frames of nosographic psychopathology. Since Freud, however, the effort in differentiating neurotic from psychotic has always had a stronger emphasis. Authors from various schools expanded and enriched a theory of the interview, collaborating with the passage from an empirical procedure to an epistemological investigation. The present paper defends the value of Maurice Dayan's concept of idiopathic singularity for the evaluation of psychic functioning in the preliminary interviews and the consequent choice of the technique to be employed in the work of analysis.

Keywords: preliminary interviews; psychoanalytic technique; idiopathic singularity.


RESUMEN

Las entrevistas preliminares en el psicoanálisis tienen objetivos de diagnóstico amplios, que no se reducen a la clasificación del paciente dentro de los cuadros nosográficos de la psicopatología. Desde Freud, sin embargo, la preocupación por la diferenciación entre neuróticos y psicóticos siempre tuvo un énfasis más fuerte. Autores de diversas escuelas han ampliado y enriquecido la teoría de la entrevista, colaborando con el paso del procedimiento empírico a una investigación con base epistemológica. En el presente trabajo se defiende el valor del concepto de singularidad idiopática, de Maurice Dayan, en la evaluación del funcionamiento psíquico en las entrevistas preliminares y en la consecuente elección de la técnica a ser empleada en el trabajo de análisis.

Palabras clave: entrevistas preliminares; técnica psicoanalítica; singularidad idiopática.


 

 

Desde os artigos de Freud sobre a técnica psicanalítica, as entrevistas iniciais têm sido objeto de pesquisa entre os psicanalistas. Muito se debateu sobre elas. Muitas ideias foram fixadas como conceitos da teoria da clínica, nas diversas escolas. E muita polêmica em torno delas também se travou, na medida em que elas tangenciam, de um modo ou de outro, o campo do diagnóstico, que é uma espécie de terreno minado para as disputas psicanalíticas. Mesmo aqueles que condenam seu emprego na psicanálise, acreditando que ele pertence à medicina ou à psicologia, sofismam ao tratar do problema das entrevistas iniciais, uma vez que elas pressupõem sempre, quer se queira, quer não, uma avaliação do funcionamento psíquico do paciente, nas relações que este mantém com a analisabilidade ou, no mínimo, com o posicionamento do analista em uma análise, que é e sempre será singular.

Observando a literatura psicanalítica a respeito das entrevistas iniciais, desde o artigo "O início do tratamento", de Freud (1913/1980), não é exagero dizer que a preocupação maior que se verifica entre os autores é o estabelecimento do diagnóstico diferencial entre neurose e psicose. Em Freud - e durante um bom tempo na psicanálise em geral -, tratava-se não apenas de uma divisão diagnóstica, mas sobretudo, do que ela implicava para as considerações de analisabilidade: o psicótico não era indicado para esse tipo de tratamento. Freud (1913/1980) sublinhou a particular dificuldade do trabalho analítico com o paciente paranoide. Entretanto, com a expansão da clínica psicanalítica para outros campos que não o das neuroses, deixou de fazer sentido o emprego do diagnóstico para a restrição aos pacientes não neuróticos. Por que então se proceder a uma avaliação? Qual seria seu sentido prático? A estrutura psíquica do paciente determina variações na técnica analítica? Se sim, a avaliação feita nas entrevistas preliminares seria fundamental. Se não, qual seria seu valor?

Penso que a inclusão dos pacientes não neuróticos no espectro da clínica psicanalítica deu novo fôlego ao desenvolvimento de uma metodologia das entrevistas iniciais. Estas passam a ter não apenas uma função de diagnóstico diferencial, mas tornam-se importantes para o exame do funcionamento psíquico em si mesmo. Ainda que o paciente se situe claramente dentro do círculo das neuroses, importa conhecer seus mecanismos singulares. Outros vetores entram, portanto, no espectro da investigação feita antes do estabelecimento do contrato analítico, vetores mais sofisticados do que o diagnóstico travado em torno de categorias psicopatológicas, mas sem que este seja abandonado.

As ideias sobre a relação entre o diagnóstico psíquico e a psicanálise sempre foram controversas. Alguns analistas, mais afinados com a nosografia psiquiátrica, empregam suas categorias na avaliação inicial dos pacientes. Kernberg (1995), entre outros, justapõe categorias diagnósticas psiquiátricas e conceitos propriamente psicanalíticos. Trinca (2007), em nosso meio, utiliza-se da nosografia psiquiátrica, mas demonstra um método eminentemente psicanalítico de compreender cada uma das categorias diagnósticas dela advindas1 . Já outros autores rejeitam qualquer aproximação entre os discursos psiquiátrico e psicanalítico, reservando o campo do diagnóstico a categorias surgidas dentro da própria psicanálise. Neste terreno, situo aqueles que adotam o diagnóstico estrutural, baseado nas modalidades de transferência (Clavreul, 1967/1990). Não raramente esse discurso conduz a contradições, uma vez que os termos "neurose", "psicose" e "perversão" são pré e extrapsicanalíticos, e a restrição da área do diagnóstico à transferência implica alguns riscos, entre os quais está o da desmaterialização do sintoma e o da contradição incontornável que eventualmente se observa quando sua fenome-nologia não coaduna com a posição transferencial assumida pelo paciente2.

Bleger (1987), nas entrevistas, associa a investigação sobre a conduta e a personalidade à observação da transferência. As primeiras seriam, para ele, o campo de trabalho por excelência das entrevistas, pautadas primordialmente por seu caráter de investigação. Já na transferência, o paciente atribui papéis ao analista e se comporta em função deles, fornecendo, assim, informações sobre os aspectos mais irracionais e imaturos de sua personalidade. Herrmann (1991) inclui em seu método de investigação algumas intervenções, a que chamo livremente aqui de "protointerpretativas", que têm por finalidade induzir o paciente a processá-las. Desse modo, é possível observar, à guisa de um "balão de ensaio", o potencial de pensamento presente e o modo como o paciente leva em conta e examina (ou não) aquilo que ouve do analista. Em ambos os autores, por meios distintos, a entrevista é teorizada como método. Trata-se de exemplos do esforço para se sair do campo eminentemente empírico - que bem se poderia traduzir pelo imperativo de se "conhecer" o paciente e sua história - rumo a uma abordagem propriamente epistemológica da entrevista.

Um risco trazido pelo diagnóstico em psicanálise, cumpre lembrar, é o do engessa-mento da escuta quando se encerra o paciente em uma determinada categoria. Sobre este risco já se falou e se escreveu à exaustão. Fomos muitas vezes advertidos de que devemos permanecer atentos às variações, aos momentos páticos do paciente e a seu psiquismo em mutação. Suspeito que o emprego acrítico e estereotipado do conceito de estrutura acaba, na prática, dificultando tal atitude, quase tanto quanto os conceitos advindos da psiquiatria. Abraham (1924/1970) defende a possibilidade de um deslizamento - seja regressivo ou progressivo - da posição subjetiva do paciente sobre a linha de sua organização libidinal e objetal. Mostra isso, por exemplo, nas oscilações entre posições obsessivas e melancólicas dos pacientes. Isso, a meu ver, ajusta-se melhor à necessidade da consideração das mutações psíquicas.

Outro prisma pelo qual as entrevistas preliminares têm sido observadas é o da construção da demanda em nome próprio, em um trabalho preliminar que visa superar a "demanda por mandato" na busca de uma análise, quando é o desejo do outro que se lhe impõe. A entrevista, assim, não se reduz a uma investigação, mas torna-se instrumento de um trabalho de entrada na análise propriamente dita. Rocha (2011), um dos autores mais profícuos do tema em nosso meio, trata com rigor e precisão deste caráter das entrevistas preliminares. Sob este ponto de vista, haveria uma diferença fundamental entre a análise propriamente dita e os momentos que a precedem. Eis, novamente, uma formulação teórica que ressalta a necessidade de uma abordagem epistemológica das entrevistas preliminares.

Feitas essas ponderações, eu gostaria de trazer algumas elaborações pessoais que fui fazendo ao longo do tempo, tendo em vista minha própria experiência em face da demanda que recebo na clínica. Claro que a atenção sobre a psicose é de extrema importância. Mas eu a deixarei de lado por ora, não por desconsiderá-la, mas para examinar alguns operadores que têm sido úteis e potentes em meu trabalho. O que para mim importa primordialmente é traçar uma correlação entre o que se observa do funcionamento psíquico do paciente nas entrevistas iniciais e a escolha da técnica a ser empregada no trabalho analítico. Encontrei no conceito de singularidade idiopática, de Dayan (1994), um operador clínico de enorme valia na investigação da vida psíquica dos pacientes, particularmente nas entrevistas iniciais. Na verdade, o conceito nomeia algo que já intuímos ao avaliar o contato de um paciente com seu mundo interno, mas, ao fazê-lo, contribui para a passagem do empírico ao epistemológico, sobre a qual insisto aqui.

O acesso de um paciente a seu mundo interno, naquilo que este comporta de singularidade - e pode assim ser percebido -, é um dado diagnóstico fundamental. Sonhar, devanear, associar, ligar os afetos a traços de memória e conseguir afetar a palavra que tenta expressar todos esses processos são algumas das operações que demonstram a abertura da singularidade idiopática. Se recorrermos a uma dualidade da teoria freudiana para distinguir o paciente que possui tal recurso daquele que não o possui, eu penso que nos seria mais útil aquela da oposição entre psiconeuroses e neuroses atuais (Freud, 1895/1980). É importante aqui situar o contexto teórico-clínico dessas asserções. Parto da necessidade de se distinguir das psiconeuroses o funcionamento psíquico peculiar à normopatia e suas adjacências, com presença ou não de somatizações, com maior ou menor escape da agressividade3.

Um texto bastante conhecido de Mannoni (1991), "O divã de Procusto", traz um caso clínico em que esta problemática vem à tona. Trata-se de um paciente que, na entrevista inicial com o analista, afirma não ser necessário falar nada, pois os exames médicos que levava já diziam tudo. Pois bem: o tratamento prossegue insosso, com o desenvolvimento de uma contratransferência fortemente desagradável. Nada se podia depreender da linguagem do paciente, vazia, sem deslizamentos simbólicos, enfim, sem sujeito. Até que um dia, quando o paciente, enfadado, anuncia que não viria mais às sessões, o analista lhe diz, quase em um desabafo: "Finalmente! É a primeira vez que você fala em seu nome" (p. 17). Não só o paciente não abandonou o tratamento, como a interpretação (espontânea e quase involuntária!) mudou completamente a sua posição psíquica.

O interesse pela investigação da possibilidade que tem um paciente de entrar em contato com sua subjetividade não é privilégio de nenhuma corrente psicanalítica. Pode-se até dizer que, desde Freud, este seria um dos pilares da observação que se faz em uma avaliação psíquica e em todo o transcorrer de uma análise. Mas, diante de pacientes com quadros de somatizações recorrentes, malmentalizados, como diria Marty (1990), autores da escola francesa de psicossomática desenvolveram, com profundidade, ideias que podem nos ajudar sobremaneira nessa tarefa. Refiro-me, por exemplo, ao conceito de pensamento operatorio (Marty & M'Uzan, 1962) e aos instrumentos clínicos que ampliam a possibilidade de sua avaliação - fundamentalmente, a entrevista que explora elementos tais como a extensão da afetação do discurso, a possibilidade de sonhar e de devanear, os destinos do afeto etc. (Marty, M'Uzan & David, 1963).

Os conceitos de pensamento operatorio e de singularidade idiopática, a meu ver, se entrelaçam harmonicamente, e sua combinação traz elementos funcionais para o diagnóstico nas entrevistas iniciais e para o posicionamento do analista em uma análise. Com isso, fica claro que, para mim, as considerações diagnósticas determinam, sim, uma diferença no posicionamento do analista diante de seu paciente, o que traz consequências práticas bem palpáveis na escolha da técnica e dos elementos do enquadre, como a frequência a ser sugerida para as sessões, o emprego ou não do divã, e principalmente, o uso a ser feito das interpretações e a dosagem da Versagung.4 Nesse sentido, não há como não concordar com Winnicott (1962/1983), que em vez de ajustar o paciente à análise-padrão, buscava ajustar-se à necessidade do paciente. Se este precisava de outra coisa que não a análise-padrão, então outra coisa lhe era oferecida. Simples assim. Ou complexo assim. Aqui, a questão de fundo, que não quer calar, é: estamos a serviço de quem? Da psicanálise ou do paciente? De pronto, a resposta, no caso, seria: do paciente. Entretanto, penso que, ao responder e proceder desse modo, continuamos também a serviço da psicanálise. Aisenstein (2003), defendendo o princípio de que a psicanálise deve ser sempre terapêutica, afirma que a decisão por uma técnica diferente daquela da análise-padrão não significa sair da psicanálise, mas o contrário.

Autores como Dejours (1989) e Aisenstein (2003) fazem considerações rigorosas, do ponto de vista teórico, sobre a escolha da técnica a partir da avaliação da vida mental do paciente. Dejours (1989) diferencia o paciente cuja vida psíquica é regida pelo regime da representação daquele cujo funcionamento mental se apoia, primordialmente, na percepção. Propõe para o segundo uma terapia baseada na paraexcitação, na qual, renunciando ao emprego da interpretação, privilegia rearranjos da esfera econômica do aparelho psíquico, sem enfrentar sua clivagem. Cita o caso de um paciente com elevado risco somático (a quem dá o nome de "Sr. Cavalo"), para o qual uma intervenção interpretativa, por mais tênue que fosse, poderia resultar em uma somatização fatal. Em outra ocasião, eu próprio (Ferraz, 2011) apresentei o caso de uma paciente que reagira a uma interpretação da transferência negativa com uma forte crise de asma5 . Para Dejours, a avaliação do paciente nas primeiras entrevistas já permite definir a escolha da técnica. No entanto, para além das considerações do risco envolvido em uma análise, ele também examina outro fator eticamente fundamental, que é a própria demanda do paciente: como este deseja superar suas dificuldades na condução da própria vida?

Aisentein (2003), por sua vez, defende a diversidade dos enquadres do processo psi-canalítico em função das diferenças que se verificam nas vias de acesso à representação. Na análise-padrão, o emprego do divã busca, à maneira do sonho, inibir a motricidade e, assim, favorecer o acesso à representação. Entretanto, para ela, a motricidade não é apenas via de descarga, mas também suporte da representação. Para certos pacientes - dentre os quais os psicossomáticos -, a privação perceptiva do enquadre clássico leva ao nada. Sua linguagem não é afetada, de modo que ficam bloqueadas a polissemia e a ligação da palavra com o objeto. A análise se pauta mais pelas construções do que pelas reconstruções. Nesse caso, o divã não é recomendado.

Voltando à singularidade idiopática e sua apreensão nas entrevistais iniciais, passo a descrever sucintamente o conceito cunhado por Dayan (1994). Se deixarmos de lado, mesmo que provisoriamente, o discurso psicopatológico (que tem como condição de existência a consideração de regularidades populacionais, escapando ao individual), adentraremos, na escuta analítica, o campo da singularidade. Nessa relação tão particular, a formação sintomática e o sofrimento psíquico que se abrem à palavra mostram-se profundamente idiopáticos, a não ser que estejamos diante do pensamento operatório e, por conseguinte, de alguma das variantes da normopatia.

Fora da análise, em geral, a expressão sintomática aparece exígua, aprisionada, por vezes estereotipada. O sintoma pode até mesmo ter, aí, um nome que vem de fora (depressão, TOC, pânico etc). Mas diante da escuta analítica, ele pode romper essas amarras e encontrar-se com seu caráter idiopático, próprio, singular e não redutível a nome algum que não a palavra, por meio da qual o paciente o expressa diante do outro, em transferência. A matéria que costuma ganhar expressão nos sonhos pode, agora, abrir-se para o desconhecido e para o imprevisto, à moda do que ocorre nas parapraxias. O "relato" que ali se faz diz respeito a uma parte do real que pertence apenas àquele que fala e que, por meio dessa fala, solta-se em sintomas circunscritos à zona que Freud (1912/1980) denominou neurose de transferência.

A experiência analítica, de acordo com Dayan (1994), só pode ser a de um sujeito afetado de modo singular, que no apelo transferencial ao outro, produz uma transformação. Inicialmente, ele se vê lançado a uma demanda em razão do sintoma que, até então, só podia ser percebido como algo incongruente, delineado pelo imperativo da "normalização". Mas, ao comunicá-lo, torna-se possível para o sujeito distanciar-se daquilo que ele acredita ser para abrir-se ao que se mostra como seu real próprio, agente dos fenômenos que se dão a seu redor. Essa figura de si, que assim se constrói, assemelha-se às figuras oníricas. Escapa da lógica racional e consciente e das causalidades comumente admitidas. Insinua-se e se esvai em movimentos que, subvertendo a temporalidade, recriam o sintoma, agora na região intermediária que é a neurose de transferência.

Como só ocorre quando falamos de subjetividade, a arte e a literatura vêm ao nosso socorro na definição mais clara dos conceitos que queremos transmitir. A leitura do conto "O convite", de Julián Fuks (2004), impressionou-me pela intuição ali presente da problemática da singularidade idiopática, tratada de modo poético e acurado. É mais um caso em que a arte supera a abordagem científica dos fenômenos da subjetividade, como Freud (1908/1980) já ressaltava. Relato brevemente o conto para tentar melhor explicitar a alma mesma do conceito, ressalvando os limites dessa empreitada, uma vez que a linguagem do conto produz no leitor efeitos que certamente não conseguimos reproduzir ao descrevê-lo. Afinal, trata-se de arte.

O protagonista recebe um convite de casamento e o abre displicentemente. Surpreende-se ao constatar que se trata do casamento de Esther, sua ex-namorada, e estranha que ela os tenha convidado, a ele e a sua atual mulher, para a cerimônia. Nesse ponto, assistimos ao início de uma profunda, porém breve, viagem aos confins da memória, sobretudo aos afetos que cada detalhe das recordações vai despertando. Em instantes, o tempo e o espaço presentes parecem esvair-se, assim como os objetos presentes. O protagonista revive os anos que vivera com Esther, em um turbilhão de emoções que se alternam junto com os pensamentos. Revive o ódio e o amor. A separação. Pensa como seria se não tivessem se separado. Cogita jogar fora o convite. Deseja reconciliar-se com ela e impedir aquele casamento. Tudo isso, narrado com muita sensibilidade pelo escritor, arrasta o leitor para o mesmo mergulho. Até que, em um piscar de olhos, ele se lembra de que sua mulher estava ali perto, esperando-o na cama. Fecha-se, então, a "janela para dentro" que tinha sido aberta. E eis que, não mais que de repente, todo aquele universo se esvai e se banaliza. Não cabe na realidade objetiva. Ele diz à mulher que Esther os convidara para seu casamento. "Tá louca. Imagina se a gente vai no casamento dela", responde-lhe ela. Ao que ele replica evasivamente: "Pois é". Pronto. Tudo volta ao lugar inicial. Menos o leitor, que permanece impactado pelo modo como uma viagem tão profunda se interrompe e quase perde o direito de ter existido! Não havia espaço algum, ali na relação com a mulher, para a emergência daquilo que se abrira apenas para dentro. Impacta como algo tão grande se esvai no imperativo da recomposição do cotidiano, do contato com o outro de plantão. E assim é mesmo a realidade das relações, não?

Lembrei-me deste conto na primeira entrevista com Roberto, que me fala, logo nos momentos iniciais, de seu tremendo assombro. Ele tinha na ocasião uma namorada nova, pela qual se encontrava apaixonado e cujo relacionamento parecia ir muito bem. Mas ele se afligia porque ela não conhecia seu passado, não sabia nada de suas outras paixões, de seus amigos do tempo da faculdade, do clube, dos esportes, de tudo a que ele gostava de se dedicar, de sua necessidade de momentos de introspecção e de solidão etc. Enfim, ele tinha uma história e todo um mundo subjetivo que não podiam ser compartilhados. "Será que tudo isso vai continuar existindo em mim?" perguntava-me angustiado. Não entrarei em pormenores, por serem desnecessários para mostrar o que desejo. Roberto sentia e acarinhava seu mundo particular. E termia perdê-lo. Na verdade, esta era a sua parte psicótica que se manifestava, mas isso não importa agora. Importa que ele expressava, ali comigo, sua singularidade idiopática, aquele recorte do real que somente a ele pertencia, tão semelhante ao que se passa com a personagem do conto de Fuks. Portanto, podíamos partir para a viagem analítica, na qual - diferentemente do que se dá em outras espécies de relações - o sujeito pode abrir a singularidade idiopática para o outro, movido pela transferência e por uma particular forma de confiança e de esperança de comunicação.

Nas antípodas da abertura que vivenciamos na entrevista de Roberto encontram-se os pacientes que atribuem aos outros as razões de suas mazelas, ficando longe da possibilidade de se situarem com sujeitos dos seus sofrimentos e desejos. Que fique claro que não se trata de projeção paranoide. Não há formação de delírio, nem mesmo formulação de hipóteses fantasmáticas. Há apenas queixa: não fossem os outros, tudo estaria bem. Os relatos prendem-se a dados objetivos da realidade, sem repercussões subjetivas. O discurso se assemelha ao de um repórter que descreve fatos, como bem compara McDougall (1989). Quando não logramos êxito em fazer com que a singularidade idiopática surja nas entrevistas - tendo elementos para julgar que essa impossibilidade decorre de um funcionamento estrutural, mais do que de um mecanismo de defesa neurótico -, então convém abdicar de técnicas interpretativas que, na melhor das hipóteses, seriam inócuas, e na pior, disruptivas, seja psíquica, seja somaticamente.

A consideração à abertura para a singularidade idiopática é, portanto, parte essencial da avaliação que fazemos do paciente nas entrevistas iniciais. Por um lado, a adoção deste ponto de vista põe entre parênteses o discurso da psicopatologia. Mas não adianta sofismar e, assim, tentar fugir da constatação de que, verificando em que grau a singularidade idiopática tem liberdade de expressão, passamos automaticamente a constituir outro critério de avaliação. Fazendo uma correlação com o que mencionei anteriormente sobre as ideias de Rocha e de Herrmann, observo que quando existe possibilidade de abertura para a singularidade idiopática, o sujeito se encontra mais próximo da demanda em nome próprio (Rocha) e da capacidade de ouvir, processar e produzir uma resposta própria, pessoal, às considerações interpretativas feitas pelo analista (Herrmann). E o fechamento a ela acena para a negativa dos mesmos quesitos.

Claro que não "planejamos" uma análise com base na impressão que colhemos do paciente nas entrevistas iniciais. Mas dosamos o emprego da análise-padrão à medida que percebemos as necessidades do paciente e compreendemos o uso que seu aparato psíquico pode fazer de intervenções que exijam um pensar (no sentido bioniano do termo) mais desenvolto. Caso contrário, como já afirmei, certas intervenções podem resultar em desastres ou, simplesmente, serem inócuas.

 

Referências

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Correspondência:
Flávio Carvalho Ferraz
Rua João Moura, 647/121
05412-911 São Paulo, SP
Tel.: (11) 3088-9606
ferrazfc@uol.com.br

Recebido em 1.11.2012
Aceito em 27.11.2012

 

 

1 Comento este uso que Trinca faz das categorias psicopatológicas psiquiátricas na resenha "O ser interior: uma natureza não sensorial" (Ferraz, 2009).
2 Não cabe estender-me aqui nessas considerações; remeto o leitor a um trabalho mais detalhado sobre o tema, o capítulo 1 do livro Tempo e ato na perversão (Ferraz, 2010).
3 O tema da normopatia é amplo e complexo. Deve sua origem ao gênio de Joyce McDougall (1989). Não entrarei em detalhes aqui, mas remeto o leitor ao livro Normopatia: sobreadaptação e pseudonormalidade (Ferraz, 2011), no qual desenvolví considerações sobre a especificidade da clínica neste quadro.
4 Para este termo, de difícil tradução, parece-me boa a sugestão contida na edição em português do livro Novos fundamentos para a psicanálise (Laplanche, 1992): o neologismo "recusação", que, dito sucintamente, refere-se ao regime de frustração em que uma análise deve ser conduzida pelo analista, ou em outras palavras, ao regime de não atendimento da demanda.
5 Trata-se do caso de Margarida, descrito no capítulo 4 do livro Normopatia (Ferraz, 2011).

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