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Revista Brasileira de Psicanálise

versión impresa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.46 no.4 São Paulo oct./dic. 2012

 

ARTIGOS

 

Os discursos não metaforizados: sobre a produção de enigmas na clínica psicanalítica

 

Non-metaphorized speeches: on the production of enigmas in psychoanalytic practice

 

Los discursos no metaforizados: sobre la producción de enigmas en la clínica del psicoanálisis

 

 

Ricardo SalztragerI; Regina HerzogII

IPsicanalista, Professor Adjunto da Universidade Federal Fluminense UFF
IIPsicanalista, Professora Associada do Programa de Pós-graduação em Teoria Psicanalítica do Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro UFRJ

Correspondência

 

 


RESUMO

O ponto de partida da discussão é a constatação clínica de um paralelismo discursivo entre duas modalidades de enunciados que, apesar de coexistirem lado a lado, jamais se deixam tocar e estabelecer relações conflitantes. Trata-se, de um lado, de uma fala romanceada, permeada de devaneios e historicizada, e de outro, de uma série de dizeres extremamente claros e isentos de entrelinhas e equívocos. A partir desta constatação clínica, oferecemos um confronto entre duas das possíveis respostas que o sujeito fornece à alteridade necessária a sua constituição. A primeira destas respostas implicaria o trabalho de metaforização do discurso do outro; já a segunda remete à possibilidade de o sujeito não metaforizar os enunciados em questão. Deste modo, serão investigadas as principais consequências, na dinâmica psíquica do sujeito, quando o mecanismo de metaforização do discurso do outro não encontra seu devido espaço. Investiga-se, também, a questão da direção do tratamento face à singularidade desses processos.

Palavras-chave: paralelismo discursivo; introjeção; incorporação; desmetaforização; psicanálise.


ABSTRACT

The basis for discussion is the clinical finding of a discursive parallelism between two categories of enunciation which, although coexist, never touch one another or establish a conflicting relationship. On one hand, there is a romanticized, meandering, and historicized discourse; and on the other, a series of extremely clear articulations, free of mistakes or misinterpretations. From this clinical finding, we offer a confrontation between two possible answers that the subject gives to the otherness necessary to his constitution. The first answer implies the metaphorizing of the other's speech; the second one points to the possibility of the subject to not metaphorize the headings in question. Thus, the main consequences in the subject's psychic dynamic, when the mechanism of metaphorization of the other's speech cannot find its rightful place, will be studied. The question of the direction of the treatment, in the face of the singularity of these processes, is also investigated.

Keywords: discursive parallelism; introjection; incorporation; non-metaphorization; psychoanalysis.


RESUMEN

El punto de partida de la discusión es la constatación clínica de un paralelismo en el discurso entre dos modos de enunciaciones que, a pesar de coexistir lado a lado, nunca dejan de entrar en conflicto. Se trata, por una parte, de un lenguaje romántico, denotativo e historizado, y del otro, de una serie de dichos claros y libres de contradicciones y equívocos. A partir de esta observación clínica, presentamos un enfrentamiento entre dos de las posibles respuestas que el sujeto ofrece a la alteridad necesaria de su constitución. La primera de estas respuestas implica el trabajo de metaforización del discurso del otro; el segundo se refiere a la posibilidad de que el sujeto no metaforice el discurso. Así, serán investigadas las principales consecuencias, en la dinámica psíquica del sujeto, cuando el mecanismo de metaforización del discurso del otro no encuentra su debido espacio. Se examina, también, la cuestión de la dirección del tratamiento ante la singularidad de estos procesos.

Palabras clave: paralelismo discursivo; introyección; incorporación; desmetaforización; psicoanálisis clínico.


 

 

Em nossa clínica cotidiana, atendemos pacientes que, de um modo geral, possuem uma discursividade bastante fértil. Em suas narrativas, faz-se presente, por exemplo, uma fala romanceada, na qual aparecem construções fantasísticas elaboradas, encadeadas por relações temporais, causais e outras. Os processos metafóricos, por sua vez, fornecem certo tom poético a seus discursos. Nesta perspectiva, vemos que sua fala é sempre tocada por uma formação desejante inconsciente. Com o propósito de torná-la manifesta, temos em mãos o artifício da associação livre e o trabalho de interpretação. Por meio deles, podemos percorrer a trama discursiva do analisando a fim de alcançar o texto latente que a fundamenta.

Ressalta-se, porém, ser muito comum que, frente a determinados assuntos, contextos ou situações, esses mesmos pacientes passem a expor um conjunto de proposições marcadas por certa anestesia associativa. Em outros termos, ao mesmo tempo em que, na maior parte de seu discurso, eles produzem enunciados poéticos e historicizados, por vezes mesclam-se a sua fala fragmentos textuais que sempre reenviam a si próprios, não se associando aos demais encadeamentos discursivos - a fala se imobiliza em torno de poucas frases, e ainda quando elas se repetem algumas sessões adiante, nenhum outro componente lhes é acrescentado.

Deste modo, trazemos para o primeiro plano da discussão uma espécie de paralelismo discursivo na fala desses pacientes, paralelismo que remete, por um lado, à fala romanceada e devaneativa, e por outro, a este conjunto de dizeres congelados e anestesiados. Neste aspecto, o que mais salta aos olhos é que estes últimos passam à margem do trabalho da metáfora. Isto implica constatar a ausência de ambiguidade nas palavras que o sujeito emprega para descrever algumas situações de sua história. Conforme destaca Pinheiro (2002), tudo se passa como se o paciente, por vezes, anulasse a capacidade polissêmica própria à palavra, passando a apresentar uma fala perfeitamente clara e não tocada por formações simbólicas, entrelinhas, equívocos ou contradições. Esta fala soa, tanto aos ouvidos do analista quanto do paciente, como algo não enigmático e imune ao engano e à dúvida. Claro está que um enunciado deste tipo em muito dificulta o trabalho da livre associação, pois, ao que tudo indica, o sentido daquilo que se almeja exprimir é dado no próprio instante da enunciação. Também devido a este fator, o trabalho de interpretação é, de certo modo, inviabilizado.

No conjunto destes ditos imunes às formações metafóricas, outra característica intriga o analista: com efeito, constatamos que o paciente não se engaja, como sujeito, em sua própria enunciação - ou seja, parece não ser ele o verdadeiro autor daquilo que enuncia. Pelo contrário: a impressão é que o analisando se limita a repetir um discurso que não é originalmente seu, como se estivesse submetido a uma fala que lhe fora imposta, seja por seus familiares, seja pelas demais pessoas de seu convívio que lhe servem de referência. Assim, por mais que consigamos vislumbrar uma formação desejante nesses enunciados, verificamos que eles não correspondem, de modo algum, à manifestação de um desejo singular, como se o que estivesse em jogo fosse o desejo deste outro que o paciente se esforça imperativamente em realizar. Em nossa experiência clínica, vemos que, no instante da enunciação da palavra desmetaforizada, o paciente se encontra em um estado de alienação.

Com base nestes pressupostos, levantamos a hipótese de que, em relação a determinados assuntos ou situações, tais pacientes não metaforizaram o discurso deste outro. Caso obtivessem êxito neste processo, poderiam dotar tais discursos de um sentido singular e, com isto, escapar do estado de alienação. Cabe ressaltar que não fazemos propriamente referência a sujeitos psicóticos. Estamos apenas nos reportando a sujeitos que, na maioria das situações, metaforizam os discursos dos outros com os quais se defrontam ao longo de suas vidas, mas que, em situações peculiares, malogram neste propósito. Trata-se de uma constatação muito comum e recorrente em nossos atendimentos: sujeitos que possuem uma discursividade fértil, rica e poética, porém sempre atravessada por uma série de enunciados nos quais a palavra se encontra desmetaforizada.

A partir de tal quadro, a proposta deste artigo é apresentar duas das possíveis respostas que o sujeito pode oferecer ao discurso do outro (de saída, constituinte da subjetividade), além de buscar um entendimento metapsicológico para elas. Em um primeiro momento, examinaremos como se empreende o trabalho de metaforização do discurso do outro, bem como o de suas formações desejantes. A discussão será articulada pela análise do conceito ferencziano de introjeção. Em seguida, com base nos escritos de Nicolas Abraham e Maria Torok, abordaremos as principais consequências da não efetivação do trabalho de metafo-rização, o que nos conduzirá ao exame da noção de incorporação do discurso do outro. Por fim, retornaremos ao âmbito da clínica, no intuito de circunscrever algumas possíveis modalidades de intervenção frente a estes discursos não metaforizados. Com isto, focalizaremos o papel desempenhado pelo campo do enigma na clínica psicanalítica.

 

Da metaforização do discurso do outro...

É no ensaio "Sobre o narcisismo: uma introdução" que Freud (1914/1995) elabora uma conhecida teoria que situa o discurso do outro como o que fornece as bases para o advento de um processo de subjetivação. Com ela, fica delimitado que o sujeito se constitui a partir de alguns atributos desejantes manifestos no discurso dos pais.

A análise se inicia com a constatação de um fenômeno eminentemente narcísico no qual uma criança é situada nas fantasias parentais como "Sua majestade, o bebê". Esta poderá realizar todos os desejos que os pais tiveram que abandonar ao longo da vida, de modo a proporcionar a ilusão de que o mundo inteiro pode ser modificado a seu bel-prazer. Com base nos anseios dos pais, considera-se, por exemplo, que o menino se tornará um grande homem e um herói no lugar do pai; já a menina se casará com um príncipe para compensar as frustrações da mãe. Por intermédio destes discursos idealizados, os pais concedem aos filhos todo tipo de perfeição, reivindicando-lhes a obtenção dos mais diversos privilégios.

No entanto, cabe pontuar que não se deve encarar o discurso dos pais como sendo meramente entusiasta, de modo a desprezar quaisquer formas de crítica aos filhos. Pelo contrário, a teoria freudiana abre espaço para que também se contemple aí a atuação de desejos inconscientes nos discursos parentais - desejos ignorados por eles próprios. Assim, trata-se também de levar em conta toda a gama de sentimentos ambivalentes que perpassam as relações entre pais e filhos.

Neste contexto, cabe à criança a promoção de um trabalho de identificação com este discurso. Com efeito, fica estabelecido que um determinado lugar se destina à criança, pois as falas dos pais vêm representar o sujeito, marcando-o e fornecendo-lhe características singulares. Faz-se necessário que a criança se aproprie destes discursos para, em seguida, fornecer-lhes um determinado sentido. Este trabalho de significação é, por sua vez, estritamente dependente de um conjunto de operações metafóricas das quais o sujeito tem de lançar mão para dar um sentido específico àquilo que vem do outro. Deste modo, por intermédio de sucessivas intervenções metaforizantes, um processo de subjetivação vai sendo empreendido, o que possibilita o advento de uma singularidade que permita ao sujeito não se alienar no discurso do outro. Por este viés, pode-se dizer que estamos diante de um processo fundamentalmente criativo.

A nosso ver, o processo de metaforização do discurso do outro, com o consequente advento de uma singularidade, é estritamente dependente do trabalho de introjeção. Em linhas gerais, a introjeção é definida por Ferenczi (1912/2011) como o mecanismo de absorção psíquica, por parte do sujeito, de algumas propriedades concernentes a um objeto investido. Trata-se, segundo seus próprios termos, da procura subjetiva por "incluir em sua esfera de interesse uma parte tão grande quanto possível do mundo externo, para fazê-lo objeto de suas fantasias conscientes ou inconscientes" (Ferenczi, 1909/2011, p. 95). Neste sentido, a introjeção é situada como um movimento de abertura para o outro, movimento este que culminará na assimilação dos desejos, valores e sentidos associados ao objeto.

Desta explanação, depreendemos que a introjeção viabiliza a ordenação psíquica subjetiva a partir da promoção de laços identificatórios com o outro. Segundo Torok (1968/1995), o que ocorre aí é um processo de "inclusão do inconsciente no ego" (p. 222). Com esta expressão, a autora designa o trabalho de metabolização, por parte do sujeito, do conjunto de representações e sentidos pertencentes ao objeto investido, de modo que o aparelho psíquico passe a ser por eles povoado. Vale a pena destacar que a introjeção é uma operação de linguagem, na medida em que se constata que ela favorece, a cada empreendimento, a inserção do sujeito no mundo simbólico (Pinheiro, 1995).

Conferindo um papel fundamental à linguagem na dinâmica dos mecanismos intro-jetivos, Abraham e Torok (1972/1995) fazem uma releitura do modelo da vivência de satisfação (Freud, 1895/1995), salientando que a introjeção se efetiva quando o vazio da boca da criança vai, aos poucos, sendo preenchido por palavras. Nesta perspectiva, a passagem de uma boca farta de seio para uma boca repleta de palavras só pode ser concebida a partir da constante e necessária atuação de uma figura adulta que, incluída na ordem da linguagem, torne possível à criança a apropriação do sentido das palavras. Efetivada a introjeção, as palavras poderão substituir a presença outrora imprescindível do seio. De acordo com os autores:

Aprender a preencher com palavras o vazio da boca é um primeiro paradigma da introjeção. Primeiramente, a boca vazia, depois, a ausência dos objetos torna-se palavras, finalmente, as experiências das próprias palavras se convertem em outras palavras. Assim, o vazio oral original terá encontrado remédio para todas as suas faltas por sua conversão em relação de linguagem com a comunidade falante. [...] A linguagem que supre essa ausência,figurando a presença, só pode ser compreendida no seio de "uma comunidade de bocas vazias" (Abraham & Torok, 1972/1995, p. 246, grifo dos autores).

Conforme estamos ressaltando, a dinâmica da introjeção tem como pano de fundo o processo de aquisição da linguagem articulada por parte do sujeito. A princípio, em um período mítico no qual mãe e filho viveriam de modo simbiótico, a criança não teria "outra consciência ou outro inconsciente que não fosse os da mãe" (Abraham, 1974/1995, p. 379). Nesta medida, o ato de separação se consome pela introjeção da relação inicial, sendo possível à criança, a partir daí, diferenciar-se e desligar-se gradualmente do outro. O infante é, pois, orientado no sentido de sua autonomização: pela palavra, ele poderá fornecer sua própria significação para as coisas do mundo, significação agora singular, embora apoiada nos sentidos que, outrora, foram fornecidos pelo outro.

O que está em jogo aí é uma operação metafórica que conduz ao processo de formação simbólica. De fato, Abraham (1974/1995) considera toda criação simbólica um efeito deste ato primordial de metaforização, fruto do corte da relação simbiótica com a mãe. Ou seja, os sonhos, os sintomas ou quaisquer outras manifestações psíquicas remeteriam necessariamente a esta metáfora primordial.

Apesar de os autores mencionados enfatizarem o processo de introjeção no contexto das relações da criança em tenra idade com as figuras parentais, podemos conceber este trabalho como algo que se dá de forma constante e interminável ao longo da vida subjetiva. Trata-se, a nosso ver, de um mecanismo que não deve ser reduzido a este momento específico, mas de algo que ocorre a cada encontro com um objeto no qual depositamos interesse. Teríamos, na introjeção, um processo contínuo e infindável de vinculação do sujeito com o mundo.

Passemos agora à análise das consequências psíquicas decorrentes do mecanismo de não metaforização do discurso do outro, processo este que silencia o trabalho introjetivo e, por conseguinte, dificulta a possibilidade de singularização frente aos discursos com os quais nos defrontamos.

 

... à possibilidade da não metaforização

É através de uma análise do mecanismo de incorporação, noção presente no pensamento de Abraham e Torok, que propomos abordar os desdobramentos psíquicos inerentes ao trabalho de não metaforização do discurso do outro.

De fato, Torok (2002) destaca que o outro é uma verdadeira "máquina de influência" (p. 42) para o sujeito e, com isto, pressupõe que as relações entre sujeito e objeto podem conduzir a duas vicissitudes distintas: por um lado, a introjeção pode guiar o sujeito rumo às operações de simbolização e à quebra da relação simbiótica; por outro, quando ela não se efetiva, advém em seu lugar o mecanismo da incorporação, conduzindo à alienação subjetiva das palavras, dos valores e dos sentidos concernentes ao objeto. A incorporação denunciaria o fracasso do trabalho de metaforização, impedindo a singularização.

A incorporação é definida, em linhas gerais, como um mecanismo erigido para compensar uma insuficiência ou, até mesmo, uma ausência da introjeção. Em outros termos, quando, por alguma razão, o objeto mostra-se impossibilitado de servir de mediador para a metabolização do sentido e das representações que lhe dizem respeito, instaura-se uma apropriação e interiorização do próprio objeto na esfera subjetiva (Torok, 1968/1995).

A principal consequência do mecanismo de incorporação revela-se no uso peculiar que o sujeito faz da linguagem articulada: por não ter alcançado êxito em apropriar-se do sentido do objeto, metaforizando seu discurso, o sujeito passa a empregar a linguagem de modo a anular o caráter figurativo das palavras. Desta maneira, entra em cena um processo designado de desmetaforização (Abraham & Torok, 1972/1995), ou seja, a tomada ao pé da letra daquilo que se poderia entender no sentido figurado. Afirmam os autores:

Convém inventar uma nova figura da destruição ativa da figuração, para a qual propomos o nome de antimetáfora. Precisemos que não se trata simplesmente de voltar ao sentido literal das palavras, mas de fazer uso delas [...] de modo que sua "figurabilidade" seja como que destruída. [...] Ela [a incorporação] implica a destruição fantasística, do ato mesmo pelo qual a metáfora épossível: o ato de pôr em palavras o vazio oral original, o ato de introjetar (Abraham & Torok, 1972/1995, p. 250-251, grifo dos autores).

Desta forma, "a incorporação denuncia uma lacuna no psiquismo, uma falta no lugar preciso em que uma introjeção deveria ter ocorrido" (Abraham & Torok, 1972/1995, p. 245). Com isso em mente, os autores traçam duas importantes analogias: a primeira consiste em associar a introjeção a uma imagem metafórica e a incorporação a uma imagem fotográfica; a segunda relaciona a introjeção à aprendizagem de uma língua e a incorporação à compra de um dicionário (Abraham & Torok, 1972/1995).

Ainda em conformidade com suas argumentações, no caso da incorporação, existe o risco de tal situação culminar na instalação de uma cripta no psiquismo do sujeito - algo que remete, por sua vez, a uma espécie de soterramento psíquico da palavra do outro, que ocorre quando o sujeito não media o sentido de seus discursos e formações desejantes. Logo, instaura-se uma identificação bastante peculiar com as palavras do outro - uma identificação endocríptica (Abraham, 1975/1995), manifesta no fato de o objeto tornar-se um verdadeiro posseiro, que utiliza o sujeito como máscara para a realização de seus próprios desejos. Assim, encriptada a figura do outro, bem como seus enunciados e desejos, o sujeito passa a abrir mão de sua singularidade em prol desta identificação alienante.

Segundo Abraham e Torok (1971/1995), a cripta se instala em uma região que eles denominam de inconsciente artificial, que se diferencia do inconsciente tal como conceituado por Freud por se configurar como um núcleo clivado no aparato, e que não estabelece relação ou conflito com os demais sistemas psíquicos. Isto nos permite compreender que um psiquismo encriptado possui uma topografia fundamentalmente cindida, na qual se manifesta certo paralelismo entre dois modos de funcionamento. Estes, apesar de coexistirem lado a lado, se desconhecem completamente.

Neste ponto da discussão cabe a ressalva de que a incorporação é tratada por Abraham e Torok em uma acepção eminentemente defensiva, ou seja, ela diz respeito a uma situação de perda objetal na qual o sujeito opta por manter o objeto vivo dentro de si, recusando-se a empreender o trabalho de luto. No entanto, acreditamos que a incorporação pode ser conduzida para além desta vertente defensiva, e contemplada, assim como a introjeção, como um mecanismo mais amplo de vinculação com os outros. Isto porque, em nossos mais variados encontros com os objetos, por vezes, não metaforizamos seus discursos, o que pode acontecer em virtude de uma idealização extrema, da própria incapacidade do objeto de mediar o sentido de seus discursos ou de qualquer outra condição atrelada à história de vida de cada sujeito.

Ainda, os trabalhos de introjeção e de incorporação, apesar de caminharem em sentidos opostos, não seriam mutuamente excludentes. Pensamos ser possível ao sujeito introjetar alguns discursos e incorporar os demais, podendo ambos os processos existir simultaneamente em uma mesma dinâmica psíquica. Consoante a esta hipótese é nossa constatação clínica dos pacientes acima referidos, que geralmente logram metaforizar o discurso do outro, mas que, não obstante, apresentam um conjunto de proposições desmetaforizadas. Tomadas nesta acepção mais ampla, as noções de introjeção e de incorporação podem ser de grande valia para nossos propósitos, servindo como embasamento metapsicológico para os fenômenos clínicos em questão neste artigo.

Em primeiro lugar, o trabalho da incorporação de um discurso responderia pela impossibilidade de o sujeito fornecer sua própria significação àquilo que vem do outro -conforme mencionamos, com ela anula-se o trabalho de produção simbólica, bem como o de construções metafóricas. A incorporação ainda tornaria compreensível o fato de o sujeito passar a empregar a linguagem de modo a transformá-la em um conjunto de enunciados já plenos de sentido, soando como algo perfeitamente claro e não enigmático. Pela anulação do caráter figurativo das palavras, o discurso deixaria de abrir espaço para a dúvida, o vacilo ou o tropeço, como se estivesse atado a uma significação rígida. Quanto a isto, também não podemos negligenciar a condição de estranhamento advinda da impressão de que o discurso congelado de nossos pacientes parece não lhes pertencer, o mesmo ocorrendo com os desejos subjacentes a tais discursos, que eles se esforçam imperativamente em realizar. Ademais, a palavra do outro ser encriptada e clivada do restante dos enunciados subjetivos explica o paralelismo discursivo desses pacientes, algo que remete à constatação de que a fala desme-taforizada jamais circula ou se associa a quaisquer outros enunciados.

Tendo em vista a observação de que este discurso não metaforizado funciona como uma espécie de obstáculo aos dispositivos da associação livre e da interpretação, cabe agora investigar outras possíveis modalidades de intervenção frente a eles.

 

Sobre a produção de enigmas na clínica

Nosso objetivo é, por fim, analisar a questão da direção do tratamento face à singularidade dessas construções discursivas. Com isto, teremos a oportunidade de examinar a função desempenhada pelo campo do enigma na prática psicanalítica.

Para tal, voltemos nosso foco para o ensaio "Romances familiares", em que Freud (1909a/1995) analisa uma série de teorizações construídas pelas crianças para fornecer algum sentido ao enigma concernente às suas origens. O ponto de partida da discussão é a constatação de certo desmoronamento de suas certezas em relação ao amor das figuras parentais. Com efeito, ao sentir-se, em algumas situações, negligenciada e desprovida dessa afeição, a criança se põe a elaborar as mais variadas elucubrações sobre sua condição familiar. Estas girariam em torno da temática da adoção, sendo possível a ela, por este viés, fornecer algum sentido para a diminuição da estima: como fora adotada quando criança, ela pertence na verdade a outra família e, por isso, não é digna de carinho. Temos, neste caso, uma situação que envolve indícios relacionados à perda de afeição. A criança vivencia o comportamento dos pais como enigmático e, assim, se vê na obrigação de lançar mão de uma série de explicações no intuito de oferecer um sentido para o fato estranho. Como resultante deste procedimento, vislumbra-se a construção de uma fantasia que, de certo modo, justifica o enigma em questão.

Também no âmbito das teorizações sexuais infantis, Freud (1908/1995) menciona o caso de crianças que suspeitam que o provável nascimento de um irmão trará consequências irreversíveis para seus narcisismos. Para fazer frente a tal estado, a atividade imaginativa da criança é acionada e ela se põe a criar tentativas de solucionar os enigmas relacionados à esfera da sexualidade. Nestes casos, o enigma gira em torno da questão da origem dos bebês. Aqui entra em cena uma série de construções narrativas referentes à universalidade do pênis, à concepção sádica do coito e à possibilidade de as crianças saírem do corpo da mãe através do orifício anal. Tal como ocorre no caso das fantasias dos romances familiares, estas construções possibilitam à criança atingir alguns progressos em seus esforços para o entendimento de um enigma. Nas palavras de Freud, embora estas teorias "cometam equívocos grosseiros, [...] se assemelham às tentativas dos adultos [...] para decifrar os problemas do universo que são tão complexos para a compreensão humana" (Freud, 1908/1995, p. 195).

Uma discussão sobre estes dois textos é fundamental para nossos propósitos na medida em que deles se destaca o seguinte: frente a um enigma, nada mais resta ao sujeito senão produzir uma narrativa para dar conta da situação. Enfatizamos que estas histórias consistem em tentativas do sujeito de elaborar certos dados da experiência que até então se manifestavam como estranhos. Através delas, o sujeito obtém algum consolo e proteção, uma vez que encontra as devidas condições para pensar sobre um enigma e assumir uma posição ativa frente a tal estado de coisas.

Retomando o que dissemos antes, destacamos que, assim como as teorizações das crianças, o trabalho de metaforização do discurso do outro carrega consigo uma dimensão propriamente mítica. Queremos enfatizar, deste modo, que sua função é a mesma daquela desempenhada pelo mito no contexto de determinada cultura. Trata-se, em suma, do processo de conferir sentido a uma série de fenômenos que, a princípio, se mostram como enigmáticos.

O fato é que o discurso do outro sempre comporta um enigma - isto porque a circunscrição de um desejo inconsciente, subjacente a ele, acaba por promover certa distância entre o que o outro enuncia e aquilo que verdadeiramente almeja dizer. Para tentar dar conta deste enigma, o sujeito tem a necessidade de construir um sentido singular àquilo que vem do outro. Logo, a ordem do enigma deve ser considerada como condição de possibilidade para a instauração do trabalho de introjeção. Em outros termos, o enigma estimula a função interpretativa e a capacidade devaneativa do sujeito. No caso de o indivíduo não lançar mão desse trabalho de metaforização, o discurso poderá ser encriptado, dando origem aos enunciados desmetaforizados. Tudo ocorre como se, no mecanismo de incorporação, a dimensão mítica de todo o processo fosse relativamente silenciada.

Trazendo a discussão para o domínio da clínica, consideramos que o lançamento de um determinado enigma, pela via da transferência, pode funcionar como um importante artifício para incitar os processos de metaforização e de singularização frente aos discursos anteriormente incorporados pelo analisando, sendo o analista aquele que promove o encontro do paciente com o poder enganador da fala. Diante disto, o analisando poderá construir novos sentidos para tais discursos, escapando da condição de alienação.

Portanto, em relação ao discurso encriptado, o processo analítico não operaria em sua desconstrução, tal como o faria em relação aos enunciados historicizados e romanceados; antes, ao invés de desatar suas ligações por meio da interpretação e da livre associação, faz-se necessário produzir certo ponto de ancoragem, visando abrir espaço para que o analisando construa algo de novo para si. O ponto de ancoragem em questão remete justamente à produção de um enigma no tratamento.

A título de ilustração, tomemos o caso clínico do Pequeno Hans (Freud, 1909b/1995). Nele, observamos um enunciado da criança, repetido incessantes vezes no relato, e que diz respeito ao medo de um cavalo que possui um estranho objeto preto na boca. A tal objeto preto, Hans não consegue associar absolutamente nada. Apesar das múltiplas tentativas de Freud e de seu pai, o menino diz que o referido objeto preto não simboliza, de maneira alguma, um arreio, um bigode ou qualquer outro elemento. Ao que tudo indica, o objeto preto na boca do cavalo não consiste em formação metafórica alguma. Parece impossível substituí-lo por qualquer elemento inconsciente.

Com efeito, este enunciado contrasta com as outras produções discursivas do menino - romances ou histórias por ele inventados, visões sobre os mais variados fenômenos do mundo e anseios sobre o futuro. Frente a tais construções discursivas, o trabalho analítico, de certo modo, se efetiva. Porém, sempre que as associações esbarram nesse estranho objeto preto, o discurso de Hans se congela. Do mesmo modo, sempre que a fala retorna, as mesmas reticências se manifestam. A cena, em si, já é clara e aparentemente não constitui enigma à criança, que se mostra irredutível aos esforços interpretativos.

Entretanto, algo se modifica quando se dá o único encontro de Hans com Freud. A criança fala a respeito do objeto preto e Freud, à guisa de brincadeira, o relaciona com o bigode do pai. Em seguida, comunica ao menino que "bem antes dele nascer [...], já sabia que ia chegar um Pequeno Hans que iria gostar tanto de sua mãe que, por causa disso, não deixaria de sentir medo de seu pai" (Freud, 1909b/1995, p. 45).

A intervenção freudiana é bastante conveniente, pois, a partir desta consulta, Hans começa a empreender um trabalho de elaboração de sua fobia e a relacionar o cavalo à figura do pai. Tanto que, decorridos alguns dias desta intervenção, o pai de Hans busca novamente saber a que se refere o objeto preto e a criança afirma que ele se parece com um focinho. No decorrer do relato, lemos o seguinte:

Nesta manhã, Hans veio ver-me, enquanto eu me lavava e estava nu até a cintura.

Hans: "Papai, você é lindo! Você é tão branco".

Eu: "Sim. Como um cavalo branco".

Hans: "A única coisa preta é o seu bigode", (continuando:) "Ou talvez seja um focinho preto?" (Freud, 1909b/1995, p. 54-55).

Neste diálogo, vemos que uma formação metafórica foi construída por Hans, ligando simbolicamente o objeto preto a um focinho; a criança pôde fornecer um sentido singular ao discurso de Freud, que em sua intervenção irônica associara o objeto preto a um bigode. No entanto, o mais importante a ser destacado da intervenção freudiana é a constatação de que ela só surtiu efeito por trazer consigo, pela via da ironia, algo da ordem do enigmático. É lícito conjeturar que, ao ouvir as palavras de Freud, Hans experimentou certo sentimento de estranheza e isto se evidenciou em sua fala ao sair do consultório: "O Professor conversa com Deus? Parece que já sabe de tudo, de antemão!" (Freud 1909b/1995, p. 45).

A partir desse trabalho de metaforização, o objeto preto não mais reaparece no discurso de Hans. Mas seria errôneo supor que o trabalho analítico atuou no sentido de suprimir o enunciado congelado, fazendo-o desaparecer. Trata-se, antes, de afirmar que as constantes construções edipianas enunciadas à criança passaram a envolver, em uma mesma trama narrativa, o elemento até então desmetaforizado; o processo de assimilação da fala anestesiada desfez o paralelismo discursivo até então presente em seu campo enunciativo.

Consideramos que a intervenção freudiana pode ser considerada como exemplo para o trabalho analítico frente a uma fala não metaforizada: ela abre o devido espaço para o paciente se defrontar com algo da ordem da surpresa, fornecendo, em seguida, os subsídios necessários para que ele construa uma compreensão singular para tal experiência. No entanto, vale assinalar que, com esta discussão, não pretendemos atribuir ao exemplo freudiano o estatuto de técnica privilegiada de intervenção frente aos discursos não metaforizados. Muitos outros modos de encaminhamento são possíveis, importando cumprir o papel de trazer, para a cena clínica, uma variável enigmática a ser confrontada com um enunciado perfeitamente claro e unívoco.

Assim, o artifício de produzir enigmas no tratamento pode vir a aguçar a capacidade criativa do sujeito, promovendo o advento da constituição de uma singularidade frente ao discurso do outro. Se relacionarmos este artifício à discussão metapsicológica a respeito do trabalho de introjeção, veremos que o sujeito introjetaria o sentido da palavra que lhe é transmitida, sendo este trabalho viável pela fala do outro comportar algumas variáveis enigmáticas. Nesta perspectiva, o novo sentido pode assumir um colorido eminentemente edipiano, tal como foi demonstrado a respeito do caso de Hans. Mas também devemos considerar os múltiplos e infinitos sentidos que podem adquirir o novo discurso construído pelo paciente. Com base nesta discussão, o espaço analítico pode ser visto como um lugar de criação, onde se produziria o novo, retirando o paciente de uma recorrente estagnação discursiva.

 

Referências

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Recebido em 19.6.2012
Aceito em 13.8.2012

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