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Revista Brasileira de Psicanálise

Print version ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.46 no.4 São Paulo Oct./Dec. 2012

 

ARTIGOS

 

O dinheiro como conceito central do setting psicanalítico

 

Money as the core concept of the psychoanalytic setting

 

El dinero como concepto central del setting psicoanalítico

 

 

Francesco Castellet y BallaràI; Traduzido por Sonia Scala Padalino

INeurólogo, Psiquiatra, Membro da Sociedade Psicanalítica Italiana, Membro da Associação Internacional de Psicanálise IPA, Tesoureiro do Centro Psicoanalitico di Roma

Correspondência

 

 


RESUMO

O dinheiro é um dos parâmetros fundamentais da configuração analítica (setting) mas, ainda assim, raramente é abordado na literatura e nos intercâmbios científicos. O autor propõe que a principal razão disso seja o vínculo inconsciente entre o dinheiro e as bases emocionais de nossa vida psíquica, ou seja, o apego, a dependência nas relações primárias, nas quais amor e ódio, vulnerabilidade e poder são paradoxalmente predominantes. Alguns casos clínicos fornecem evidências clínicas às estruturas teóricas propostas.

Palavras-chave: dinheiro; setting; relações precoces; dependência do analista; paradoxo.


ABSTRACT

Money is one of the fundamental parameters of the analytic setting and, yet, it is rarely addressed in the literature and in scientific exchanges. The author proposes that the main reason for this is the unconscious link between money and the emotional foundations of our psychic life: i.e. the attachment and dependence in our primary relationships, where love and hate, vulnerability and power, are paradoxically prevalent. Some clinical vignettes provide clinical evidence to the theoretical frameworks proposed.

Keywords: money; setting; emotions; early relationships; dependence on the analyst; paradox.


RESUMEN

El dinero es uno de los parámetros fundamentales de la configuración analítica (setting) pero, al mismo tiempo, raramente es abordado en la literatura y en los intercambios científicos. El autor plantea que la razón principal sea el vínculo inconsciente entre el dinero y las bases emocionales de nuestra vida psíquica, es decir, el apego, la dependencia en las relaciones primarias donde amor y odio, vulnerabilidad y potencia son paradójicamente predominantes. Algunos casos clínicos proporcionan evidencias clínicas para los marcos teóricos propuestos.

Palabras clave: dinero; setting; relaciones precoces; dependencia del analista; paradoja.


 

 

O dinheiro é o único objeto concreto - mas rico de significados simbólicos e emocionais complexos - que nós, analistas, pedimos e recebemos de nossos pacientes.

O dinheiro tem, portanto, importância grande e paradoxal em nossa disciplina, que se encontra na fronteira entre ciência, filosofia e arte.

Por outro lado, os significados que o dinheiro assume em nossa vida emocional e na prática profissional recebem pouca atenção durante nossa formação, reuniões científicas e discussões clínicas.

É possível que quanto mais essa questão for subestimada, posta de lado ou negada, mais se torne crucial na construção da relação analítica e no resultado terapêutico.

Segundo Bleger (1967), o setting (frame) formado pelos acordos estabelecidos com o paciente, incluindo o pagamento das sessões, é o elemento da relação analítica em que se escondem as fantasias inconscientes e as defesas mais recalcitrantes e profundas. O setting não faz parte do processo terapêutico, ou seja, representa as constantes deste e os limites dentro dos quais o processo analítico se desenvolve.

O autor afirma fundamentalmente que as áreas psicóticas e fusionais da personalidade do paciente - "o mundo dos fantasmas" - encontram-se no setting, o qual funciona como uma instituição destinada a autoperpetuar-se, sem ser suficientemente questionada e elaborada pelas diferentes gerações de analistas.

De fato, é comum que o setting - o dinheiro, principalmente - seja aplicado pelo analista do mesmo modo específico em que foi aplicado a sua própria análise de formação e supervisões, sem nenhuma reflexão adicional. Em alguns casos, pode-se dizer que o setting é aplicado com base na identificação com o agressor, típica das situações institucionais. Refiro-me, por exemplo, ao problema das notas fiscais ou dos pagamentos recebidos e não declarados à Receita, que levantam considerações importantes a propósito das influências culturais e sociais sobre cada terapia analítica, sem falar da dificuldade que existe em confrontar estes temas junto a colegas de países em que o fato de pagar em dinheiro vivo é já, por si só, sinônimo de fraude, como na Holanda e nos países escandinavos.

Etchegoyen (1990), em seu manual de técnica, separa, no âmbito da análise, as normas culturais relativas ao dinheiro - e, portanto, modificáveis e ligadas ao ambiente - daquelas que são consideradas específicas ao setting - como o pagamento das sessões às quais o paciente faltou -, que permitem analisar as resistências com precisão.

No caso descrito por Bleger, em um artigo de 1967, é justamente o dinheiro, ou seja, a dívida acumulada no pagamento dos honorários, que constringe o paciente a admitir que estivera negando a realidade de sua situação econômica real, agarrando-se, na fantasia, a sua infância abastada.

Bleger ressalta que, em todas as análises, o setting (e assim também o dinheiro) deveria constituir um objeto específico da análise (Bleger, 1967, p. 516).

Do ponto de vista da troca emocional, e de como o analista lida com ela, o dinheiro, assim como os presentes, representa a ligação emocional da dupla analítica. Uma ligação recíproca, pois o bem-estar emocional de ambos depende da quantidade, qualidade e trans-formabilidade "daquilo" que se troca na sala de análise.

Assim, no nível concreto da realidade externa, o dinheiro, como objeto transferencial, está conectado às relações objetais internas, ou seja, aos fantasmas inconscientes de ambos os participantes do teatro analítico.

A metáfora do teatro, ou seja, da análise como representação teatral, pode ser útil neste caso se lembrarmos de que, tanto no teatro quanto no cinema, paga-se um ingresso para ter direito a sentar em uma poltrona mais ou menos cômoda (assim como para estender-se em um divã analítico) e deixar-se transportar a outra realidade, a outro mundo, ou seja, a uma história ou enredo que apenas aparentemente é "outra de nós", pois representa partes de nós não pensadas mas conhecidas, ou ainda não nascidas mas possíveis (Bollas, 1997).

O despertar emocional que o ator consegue provocar em nós, o processo de transformação que a obra teatral (cinematográfica, musical, pictórica etc) é capaz de induzir no ouvinte são, em minha opinião, comparáveis às melhores sessões e aos momentos "mágicos" (insights) que ocorrem conosco e com os pacientes quando um objeto "estético" se manifesta.

Segundo Meltzer, a terapia analítica desenvolve-se com as características de um inevitável conflito estético entre um exterior obstrutivo e um interior enigmático do sujeito no qual cada ato criativo "acontece como num sonho e é uma função dos objetos internos, dos Lares e dos Penates daquele específico artista-cientista" (Meltzer & Harris Williams, 1988/2008, pagina XVII de la introduction).

O dinheiro analítico é, então, metaforicamente, o ingresso para o teatro (o setting como espaço e tempo analítico), no qual os atores (a dupla analista-paciente e seus fantasmas inconscientes), graças à criatividade do autor-diretor (o inconsciente), podem entrar em cena.

O dinheiro - ou mais exatamente, o acordo sobre o preço - é um dos instrumentos do setting (juntamente com o tempo e o espaço alugados) com o qual delimitamos e protegemos um espaço artístico/científico interior e exterior, no qual a "magia" (as transformações) possa acontecer, no qual os sonhos, assim como os pesadelos, possam realizar-se ou tornarem-se reais, para serem revividos ou compartilhados.

Durante a atividade clínica, nossa rêverie, nossa capacidade de sonhar e de poder, assim, efetuar transformações alfa (Bion, 1965/1984), nossa capacidade de ouvir e de enxergar "além" é posta à disposição (alugada?) de nossos pacientes, a tal ponto que o analista pode chegar a suportar níveis de dor e angústia potencialmente perigosos para sua saúde física, até porque dor e angústia são transmitidos de corpo a corpo.

O dinheiro, então, deveria compensar e equilibrar essa carga, permitindo um padrão de vida capaz de acrescentar paraíso suficiente ao inferno com o qual nos defrontamos.

Paradoxalmente, do ponto de vista emocional, o dinheiro "em si" é tudo e nada, mas está sempre carregado (por meio de identificações projetivas) do background emocional da relação na qual é trocado.

O dinheiro pode ser amor, desejo, cuidados, gratidão, ou exatamente o contrário, mudando rapidamente de significado emocional.

O valor paradoxal do dinheiro é magnificamente representado, por exemplo, pelo famoso mito grego de Midas, o rei cujas mãos podiam transformar qualquer coisa em ouro e que, justamente por isso, estava condenado a morrer de fome por não poder tocar os alimentos.

Em nossa atual civilização pós-moderna e capitalista, é possível dizer que sofremos de uma "idolização" generalizada do dinheiro, como se fôssemos todos adoradores do "deus dinheiro", que se tornou, após o desmoronamento das ideologias de massa do século XX, o objeto de todos os objetos, a "mãe de todos os objetos".

David Tuckett (2011), em recentíssimo livro sobre finanças emocionais, propõe o termo "objeto fantástico" para indicar a fantasia onipotente de possuir dinheiro e de ter, por meio dele, acesso permanente e exclusivo a todos os bens do mundo, como uma espécie de lâmpada de Aladim.

Ao mesmo tempo, nega-se ou omite-se o fato incontestável de que nem tudo pode ser comprado com dinheiro. Não podemos, particularmente, comprar as emoções de outro ser humano, as quais são essenciais para nosso bem-estar psicofísico, quando adultos, e para nosso crescimento e sobrevivência, quando crianças (Stern,1985).

O dinheiro, assim como o ouro, é sim o "meio de troca universal", mas por si só não é essencial à vida, como o são o ar, a água, o alimento e, acrescentaria, o alimento emocional; este fato é redescoberto com angústia sempre que ocorrem desastres naturais, guerras ou crises econômicas com forte desvalorização da moeda nacional.

Quem é mais rico no deserto, aquele que possui ouro ou aquele que possui um cantil de água?

Quem é mais rico quando criança, aquele que desfruta de uma experiência parental razoavelmente boa e estável, ou aquele que vive em uma família de posses, mas emocionalmente desertificada?

Desse modo, como um espelho - ou melhor, como um diamante facetado -, o dinheiro nos remete às paisagens emocionais interiores daquele que o dá e daquele que o recebe.

O tema do dinheiro é, com frequência, evitado ou subestimado também em nossas comunicações científicas, e é terrivelmente potente em evocar entre nós, colegas, sentimentos perturbadores como avidez, inveja, rivalidade e vergonha.

Aparentemente, nosso balanceamento e equilíbrio narcísico, assim como de nossos pacientes, podem ser facilmente testados em relação a esse tema, e parece, portanto, paradoxal e estimulante o conselho dado por Freud (1913/1975, p. 131) de tratar esse tema "diretamente, com a mesma honestidade autoevidente em relação ao paciente com a qual se pretende educá-lo nos assuntos da vida sexual".

Segundo Freud, o analista aluga seu tempo, seu espaço e sua experiência no tratamento, mas se aprofundarmos a questão, é principalmente seu espaço emocional profundo e sua capacidade de rêverie que ele põe à disposição.

De fato, o forte contraste existente entre compartilhar aspectos extremamente íntimos e dolorosos da vida emocional de outra pessoa e exigir pagamento para fazer isso pode constituir um aspecto difícil de nossa profissão e causar dificuldades não apenas para os analistas mais jovens.

Além disso, foi o próprio Freud que fez notar, no texto citado, que as reações relativas ao dinheiro e à sexualidade sobrepõem-se, talvez porque o dinheiro remeta, ele também, a necessidades primárias ligadas à sobrevivência, ou seja, ao tema da dependência primária e do apego.

Ao tentar elaborar ainda mais o significado do dinheiro na relação analítica, podería-mos conceituá-lo como o ódio do analista e, assim, como o avesso do amor do analista já que, como sabemos, estar em uma relação profunda e de holding com alguém significa balancear o amor e o ódio em relação ao outro (Winnicott, 1949).

Cobrar um preço, assim como manter os limites temporais e espaciais de cada tratamento, é um dos modos de fazer esse balanceamento: consiste, de fato, em proteger a relação terapêutica dos excessos de amor/ódio.

Entretanto, o trabalho do analista pode ser pago com dinheiro apenas em parte - talvez a parte mais racional e consciente. Precisamos ser reembolsados também com emoções como, por exemplo, a gratidão pelo nosso envolvimento emocional com aquela pessoa específica. Nesse sentido, em nível profundo, nossa autoestima, não só como analistas, depende mais da "qualidade" do dinheiro com o qual somos pagos do que da quantidade.

Há pacientes, por exemplo, que exprimem gratidão com o simples gesto de respeito, e não de pura cortesia, com o qual pagam a quantia, e com o agradecimento sentido que acompanha o pagamento. Mas pode haver, ao contrário, indiferença, mal-estar ou atrasos repetidos que caracterizam a desvalorização, o ressentimento e assim por diante.

O dinheiro e o pagamento são, em todos esses casos, um dos lugares privilegiados nos quais observar a transferência e a contratransferência em ação; é privilegiado, pois se inscreve no setting e refere-se à troca concreta, e é ao mesmo tempo, simbólico de um objeto, um espelho-diamante com significados multiformes e de relevância emocional tanto familiar quanto transgeracional.

Do ponto de vista evolutivo, a clássica interpretação do dinheiro como equivalente simbólico das fezes, inicialmente proposta por Freud (1908/1972) e depois retomada por Ferenczi (1914/1990), Jones (1913) e Abraham (1924/1975), mantém certa validade clínica. Segundo essa hipótese, ligada à teoria do desenvolvimento libidinal por zonas erógenas, as fezes são uma parte concreta de si, carregada de afetos, que a criança dá à mãe/pai; mais adiante isso será verdade também para a criança dentro do adulto.

O dinheiro tem significados tanto criativos quanto destrutivos, como as fezes, e tem valor fundamental de troca com o outro, entre o próprio mundo interior e o mundo exterior, mais exatamente uma extroflexão de "mim" para "você".

De consequência, quando tratamos de dinheiro, uma parte de nós ecoa os primeiros tipos de relacionamento pré-verbal com o outro, e portanto, os fundamentos de nosso mundo relacional.

Um dos pilares da teoria psicanalítica do desenvolvimento infantil é a dependência absoluta do recém-nascido em relação ao pai/mãe/cuidador. Segundo as contribuições da escola kleiniana (Klein, 1975) e pós-kleiniana, as primeiras reações emocionais ao outro, por parte da criança pequena, acontecem neste estado de dependência primária, no qual está em jogo a sobrevivência; como consequência, nas situações de insuficiência de cuidados paren-tais, as emoções de raiva e frustração - até o sentimento de inveja do seio materno e da mãe que começam a formar-se - podem adquirir intensidade desastrosa para o cérebro da criança em desenvolvimento, e até provocar danos estruturais (Shore,1994).

Inicialmente, o leite e a disponibilidade corporal e emocional do adulto que cuida da criança são essenciais para o bem-estar e o desenvolvimento do recém-nascido; posteriormente, e com importância cada vez maior, o dinheiro se torna o objeto concreto e simbólico que representa valor, cuidados e amor por parte dos pais. Torna-se o meio pelo qual o próprio desejo pode se realizar, e pelo menos em nosso meio cultural atual, é no dinheiro dado, recusado ou emprestado pelos pais à criança, ao menino ou ao adolescente que se exprime a diversidade variada e multiforme de relações emocionais.

Por exemplo, a passagem de "dinheiro e dependência em relação aos pais" para "dinheiro e autonomia/independência em relação a estes" constitui uma das passagens fundamentais da adolescência.

Acredito que quando propomos a um novo paciente nosso contrato mais ou menos padronizado e mais ou menos flexível quanto ao preço, acionamos e despertamos todos esses significados e ressonâncias emocionais.

Sem dúvida, as reações que se seguem a nossa proposta podem dar imediatamente uma ideia do estágio de desenvolvimento afetivo do paciente em relação aos conflitos de dependência/independência, ao exame da realidade, à propensão a defesas maníacas e à onipotência, ao nível de autoestima e aos valores internos (estrutura do superego), citando apenas as mais frequentes (Krueger, 1986).

Estamos habituados, além disso, como analistas, a pensar defensivamente que a dependência e seus conflitos revelados pelo dinheiro estejam apenas do lado do analisando; apenas raramente e com relutância discutem-se as consequências sobre a organização interna do analista, que derivam do encerramento ou da interrupção de uma análise de alta frequência e paga a preço pleno. Em tempos de crise econômica e penúria de pacientes, em que medida esta realidade influencia nosso trabalho, nossos contratos analíticos e até nossa autoestima como profissionais?

Será que podemos dizer, parafraseando Winnicott, que "não existe analista sem analisando"?

E quais diferenças podemos notar entre analistas de período integral e analista de meio período, cuja fonte de segurança (e dependência) provém consistentemente de outro trabalho?

Acredito que faça parte do trabalho analítico, do lado do analista, monitorar suas vivências em relação a este tema, assim como prestar atenção à situação econômica e financeira dos pacientes, investigando-a sem pruridos ou hipocrisias (seguindo, nesse caso, os conselhos de Freud de tratar o dinheiro como um dado de fato, ou seja, de realidade). Ao proceder deste modo podemos, de fato, entrar em contato ou ter uma ideia da estruturação profunda de nossos pacientes em relação aos conflitos de dependência, à autoestima, ao senso de si.

Os pacientes "dependentes", ou assalariados, e os pacientes "autônomos" costumam ter modos diferentes de se relacionar com o dinheiro, até mesmo com o dinheiro analítico.

Por exemplo, a possibilidade de ter um plano de saúde que cubra ou reembolse as despesas desempenha um papel, na terapia, que ainda precisa ser analisado. As síndromes de ressarcimento são comuns e provocam uma resistência secundária difícil de superar. Em alguns países, como na Alemanha, a presença de um terceiro, representado pelas companhias de seguros que pagam a terapia, é ainda mais marcante e influencia profundamente as análises (Chodoff, 1986).

Além disso, o dinheiro, por ser - mais do que se espera - um objeto concreto e simbólico capaz de sobreviver à morte de seu proprietário, pode estar muitas vezes carregado de emoções como culpa e vergonha para quem o herda, e pode potencialmente revelar muitos dos segredos e vicissitudes de uma família.

É comum que grandes sofrimentos e conflitualidades aflorem abertamente no momento da divisão de uma herança; nesses casos, é comum que os conflitos sejam "monetizados", e quem quer que se sinta emotivamente prejudicado por um dos pais ou por um parente se vingue e peça uma compensação "em dinheiro ou em propriedades". Parece que assistimos, nesses casos, ao estágio final de um processo conflituoso de separação da família nuclear de origem; uma passagem arriscada de elaboração das ligações familiares, dos fracassos familiares, dos esquemas de relação abusivos ou impeditivos entre os membros da família.

Assim, usando as palavras de Bleger (1967), qual é o "mundo de fantasmas" que se esconde por trás do tema do dinheiro em cada análise?

Como analistas, somos solicitados a examiná-lo por dentro.

 

Exemplos clínicos

A. - paciente de aproximadamente 40 anos, psicoterapia analítica com duas sessões por semana no divã, pagamento sempre atrasado e por meio de transferência bancária - está em tratamento há vários anos por dificuldades acentuadas de relacionamento com as mulheres, em particular, e tendência cada vez maior a fechar-se em atividades solitárias em razão de uma destrutividade inconsciente.

Em uma das sessões, fala-me com sarcasmo de um amigo com o qual compartilha -ou melhor, gostaria de compartilhar - uma paixão esportiva em geral solitária, a pesca submarina. Este amigo tem grande capacidade de escrever artigos sobre a pesca, e cada vez que meu paciente os lê, fica impressionado e - admite com dificuldade - comovido.

O amigo comparou o prazer de pescar com o de ser seduzido e depois abandonado por uma mulher belíssima. Meu paciente admite que sua inveja esteja ligada também ao fato de que o amigo não o leve com ele para pescar. O amigo o considera um companheiro de pesca ideal, mas apenas na fantasia, e reserva para si os melhores lugares... Ou seja, a belíssima mulher. Meu paciente tem uma intuição de por que o amigo não o quer com ele: "Se dois homens ficam com a mesma mulher, ela é uma vadia!"

Em nível profundo, seu mundo emocional está devastado por uma mãe invasiva e manipuladora que sempre o dominou, como sempre dominou o pai. Uma mãe-tubarão (como apareceu nos sonhos) que ele não consegue derrotar e que, metaforicamente, o engoliu. Por toda a vida, de fato, ele sofreu de doenças no aparelho digestivo pelas quais correu até o risco de morrer, e que deixaram alguns vestígios em seu corpo, dos quais se envergonha profundamente.

O sarcasmo parece uma variante da inveja, a qual, por sua vez, parece estar relacionada à baixa autoestima: desvalorizar o outro por meio do sarcasmo é um modo de não sentir inveja. Além disso, é uma defesa maníaca que nega sua "deficiência" e a relativa depressão.

O paciente "ataca" o setting em seus três parâmetros fundamentais: chega regularmente com atraso de pelo menos 10-15 minutos (tempo), com frequência tira férias fora dos períodos convencionais (espaço), paga regulamente com atraso e apenas por transferência bancária, mantendo assim à distância os sentimentos [negativos] ligados ao dinheiro e a mim - como raiva e desvalorização -, mas também os positivos, caracterizados por uma hiperracionalidade fria.

A relação com o pai é problemática, em razão dos excessos emocionais do último e da total submissão à mulher; mas também positiva, pois lhe deu o exemplo de um trabalho muito bem pago que, depois, transmitiu a ele. O paciente, porém, inconscientemente despreza-o e critica-o, e por isso tem problemas contínuos no local em que trabalha e no qual permanece basicamente pelo dinheiro (e não por paixão). Dinheiro, autodestrutividade e destrutividade estão, assim, intimamente ligados.

Em minha contratransferência, a arrogância, desvalorização e generalização ("nós, homens, e elas, mulheres") suscitam muitas vezes incômodo e intervenções, cuja finalidade é mostrar-lhe o efeito de distanciamento que podem ter sobre uma relação potencialmente íntima com o outro.

Por exemplo, consigo tolerar melhor os atrasos nas sessões e no pagamento quando os compreendo e os interpreto como uma defesa necessária ao controle da relação, tendo em vista a intensidade da sua desconfiança básica - quase uma psicose paranoide - em relação ao outro. A desconfiança teve origem na relação com a mãe e também com o pai, às vezes imprevisivelmente violento.

Todos estes acting, incluindo a verbalização obsessiva e a intelectualização, tornam as sessões pesadas e repetitivas, difíceis de manter; e em relação ao dinheiro, sustentam a convicção de que o outro está interessado naquilo que ele possui, e não em sua pessoa.

Já a paixão que nutre pela arte fotográfica e pela música, em especial, teve um papel fundamental para ter acesso a seu mundo emocional.

Em uma recente sessão, por exemplo, A. conta que tem sentido mais espontaneidade ao exprimir seu desejo à garota que está cortejando. A esse ponto lhe vem em mente um episódio acontecido no dia anterior, embora não entenda que relação tenha com o discurso precedente: um músico seu amigo, que organiza encontros musicais experimentais de introdução à música para crianças e adultos, telefonou-lhe pedindo sua ajuda como técnico de som para gravar esses encontros. Estava pouco à vontade ao pedir-lhe esse favor, pois não podia pagar pelo trabalho. Meu paciente respondeu que seria um prazer colaborar, e que o dinheiro teria estragado o espírito com o qual queria ajudá-lo.

A experiência musical ao vivo, em meio aos músicos - à qual ele mesmo havia assistido muitas vezes como espectador -, foi tão bela e comovente que não teve preço.

Diante dessas palavras de valorização, o amigo por sua vez, se sensibilizara e, conhecedor de suas dificuldades amorosas, havia-lhe garantido que se uma mulher ouvisse suas palavras certamente se apaixonaria por ele.

M. - mulher de 40 anos, com filhos; está em análise com três sessões por semana, no divã. Paga as sessões com atraso variável, conforme o momento em que recebe o dinheiro do marido, do qual é totalmente dependente, embora tenha há anos um amante que mantém em segredo, por medo de ser abandonada. Ela me faz, assim, viver diretamente seu penoso estado de dependência econômica em relação a um companheiro instável. Minha dependência econômica em relação a ela estava acompanhada, por sua vez, de minha dependência/necessidade de ser considerado útil e válido do ponto de vista profissional, em razão da constante e sutil desvalorização que a paciente manifestava em relação a mim. Tais vivências, por outro lado, permitiram-me sentir melhor a angústia de abandono na qual M. vivia e na qual crescera, e que lhe impedira de manifestar abertamente sua necessidade de proximidade e presença. Uma vez que essas necessidades foram manifestadas aos companheiros, com o apoio do analista, elas permitiram que a paciente percebesse claramente a realidade decepcionante de sua vida sentimental, mas reforçaram seu contato com a realidade.

Assim, depois de alguns anos de terapia, separou-se do marido narcisista e megalomaníaco que a traíra continuamente a ponto de ter filhos ilegítimos (fora do casamento). A separação foi decidida e provocada por ela, mas com muita ambivalência. Para obter maior autonomia econômica, M. vendeu uma propriedade sua, presente do pai, que havia sido anteriormente alugada ao amante sádico abaixo do preço, apenas para não ser abandonada por ele. Com essa iniciativa, ela se defrontou com a raiva narcísica do amante, com a conflitua-lidade em relação aos irmãos, em razão da divisão da herança, com a ansiedade do pai, com a insipiência da mãe e, sobretudo, com a própria fragilidade ao tomar decisões autônomas.

É interessante notar que com uma parte do dinheiro recebido e disponível (a maior parte do qual foi sabiamente reservada para outra aquisição imobiliária) comprou um anel muito caro, que a tornou novamente dependente da pensão paga pelo ex-marido, e pela qual deve sempre mendigar.

Estimulada por mim a refletir sobre o significado que atribuía a essa compra, a paciente respondeu que já que ninguém queria ficar com ela (nem o ex-marido nem o ex-amante), quis casar-se consigo mesma e deu-se um presente. Especifica que o anel é muito parecido com a aliança que seu marido lhe dera, à qual continua muito apegada.

Trata-se, para ela, de um ressarcimento pelo sofrimento dos últimos meses ligado à separação, e em sintonia com os episódios de compras compulsivas com as quais se vingava dos abandonos, desperdiçando o dinheiro do marido.

Procurou sempre, de fato, compensar a dor das traições e a carência afetiva com compras, viagens e reformas caras da casa.

Deve-se notar que em sua atividade profissional tem grande dificuldade em receber e cobrar uma retribuição justa; isso indica a baixíssima autoestima que a compra do anel parece precisar compensar. Nesse sentido, porém, o dinheiro assume a forma do que falta, mas não é o que falta. A paciente pode comprar um anel de noivado, mas fica sem noivo, ou seja, não desejada. O dinheiro cobre o vazio, a ausência, a falta de desejo do outro.

Como analista, sinto que a compra do anel é tanto uma negação maníaca de sua precária situação econômica e afetiva quanto o início de sua autovalorização; esta, porém, não está acompanhada pela valorização da ligação que tem comigo. Como outras vezes, estou diante de uma bifurcação: interpretar a defesa desvalorizadora e tentar então fazer surgir a necessidade, ou apoiar a tentativa de autovalorização, pois contém a novidade de um movimento autônomo (testemunhado também pela aquisição de um novo imóvel) em relação à passividade e ao medo de tomar decisões?

Escolhi a segunda, esperando que sua autoestima se reforçasse o suficiente para sustentar a tomada de consciência da autodestrutividade e da necessidade de ligar-se mais ao analista como representante de suas partes danificadas.

O plano emocional parece ser negado por meio da ilusão de que é possível possuir o sentimento do outro como se possui dinheiro, ou melhor, como se existisse uma equivalência entre dinheiro e desvalorização dos sentimentos; sua própria história pessoal contribuíra a estruturar tal equivalência.

No início da análise, para definir o setting, visto que o marido rico pagava, controlava e desvalorizava tudo e todos, tentei estabelecer um acordo sobre o pagamento que viesse a favorecer posteriormente a autonomia da paciente, encorajando-a a desenvolver suas atividades profissionais e a pagar a análise com o dinheiro ganho por ela mesma.

A razão disso foi também o fato de que a paciente considerava ter direito a que o marido pagasse a terapia como uma espécie de ressarcimento, convicção esta que obviamente a mantinha ligada ao marido, como o episódio do anel evidencia.

Um contato maior com a realidade interior e exterior e comigo só se concretizou realmente depois da separação, com acordos claros sobre a pensão alimentícia, a qual continuou, porém, a ser paga de modo irregular.

A maior dificuldade contratransferencial foi a de não sucumbir à desvalorização imo-bilizadora e aos ataques de raiva narcísica com os quais a paciente se opunha a qualquer sugestão de considerar que ela própria contribuía consciente e inconscientemente para a situação. Ultimamente conseguiu chorar durante a sessão e considerar que eu era a única pessoa que podia entender que seu sofrimento, sua autonomia econômica e afetiva estão progredindo simultaneamente, já que investiu na atividade profissional sem precisar depender necessariamente do ex-marido ou do ex-amante.

C. - 35 anos, em análise quatro vezes por semana, no divã. Pagamento pontual.

Sua situação econômica e afetiva é, desde sempre, caracterizada pela confusão geral, e até de gênero.

Os pais, embora separados de fato desde que o paciente era pequeno, nunca se separaram emocionalmente, embora a mãe viva com outro homem desde então.

O pai, em particular, nunca teve outra companheira e continua a ajudar economicamente tanto a mãe quanto o filho, já grande, como se fosse um adolescente. A confusão refere-se, em particular, ao fato de que o paciente é, e se sente ainda, o companheiro de referência de ambos os pais: sente, de modo inquietante, que o pai o confunde com a mãe.

Nosso acordo sobre o pagamento das sessões foi taxativo sobre a necessidade de que o dinheiro para a análise fosse fruto de seu trabalho, e não dado pelo pai. O paciente paga com regularidade, e considera a sala de análise um lugar separado da confusão familiar, um lugar em que pode delinear com clareza a própria identidade, onde as coisas são mais claras, e ele, mais definido.

Sente que existem, para ele, dois tipos de dinheiro: o que é do pai ou da mãe, e não tem valor - sente prazer em desperdiçá-lo com videopôquer ou jogos de azar na Internet -, e o dinheiro que ele mesmo ganha, que lhe dá senso de valor e que não gosta de gastar.

Com este dinheiro paga-me a contragosto, sentindo que o prejudicado é ele, e que deve ser ressarcido eventualmente.

O pagamento das sessões tem, neste caso, o valor de um objeto que separa e age contra a confusão em que baseia as fantasias fusionais e onipotentes que caracterizam seu funcionamento psíquico básico.

As coisas que têm valor e sentido custam caro; a análise, para este paciente, tem enorme valor, graças ao fato de que ele já a paga inteiramente com seu trabalho. O dinheiro é bom porque ganho honestamente, e não como retribuição por permanecer enredado, funcionando como colante entre pai e mãe.

A interrupção desta ligação perversa, baseada na mesada - cola da dupla de pais -, tornou-o mais aberto e reativo no mundo do trabalho. Ultimamente chegou até a superar o bloqueio relativo a escrever artigos científicos, que havia prejudicado enormemente sua carreira.

A raiva sutil e a inveja com que me paga regularmente no fim do mês dá-me o senso de sua ambivalência em relação a nosso acordo: de um lado, é irritante para mim confrontar-me com seu rancor e avidez destrutiva, mas de outro lado, compreendo isso também como expressão da dificuldade mais ampla de confiar em mim e de desprender-se de suas coisas preciosas nessa relação, e de que tudo isso seja ainda objeto de interpretação de minha parte. Este comportamento é também um modo de pôr à prova minha capacidade de elaborar e conter sua área danificada relativa à "basic trust" de Balint, pela qual a não-retaliação é a prova de que é possível um modo diferente e menos persecutorio de relacionar-se.

Minha retribuição, fundamental no plano económico-emocional, é seu reconhecimento de que a análise lhe proporciona um espaço que não existe em nenhuma outra relação. Em uma sessão recente, ele mediu mentalmente as dimensões da sala de análise para tentar avaliar se seu escritório teria, quando fosse reformar sua casa, dimensões suficientes para ele.

 

Conclusões

É sempre difícil perguntar a um colega o preço que cobra pelas sessões, se recebe em cheque ou em dinheiro, se dá ou não nota fiscal.

Quando se fala concretamente de dinheiro na análise, a dificuldade de perguntar e de responder está ligada à particularidade da relação analítica, como dizem, por exemplo, Herron e Welt (1992) no texto mais atualizado que conheço sobre essa questão:

[...] a psicoterapia não é amizade nem história de amor nem um substituto para isso e nem mesmo uma relação significativa de outro tipo. É uma relação especial com suas características próprias e definidas, e em particular, é um serviço qualificado pelo qual se paga. O terapeuta vende habilidade e não si mesmo, e espera ser pago por isso. [...] isso não é a mesma coisa que trabalhar só por dinheiro. Existe interesse pela pessoa e interesse econômico (p. 7-8).

Acredito, de meu lado, como tentei argumentar anteriormente, que o tema do dinheiro na psicanálise seja difícil de abordar e discutir, até porque remete a vivências emocionais básicas de nossa vida psíquica, ao entrelaçamento paradoxal de amor e ódio entre mãe e filho, se assim podemos dizer, e desse modo, ao tema do apego e da dependência em relação ao objeto primário, do qual depende nossa própria existência biológica. A especificidade da relação analítica, para retomar a sugestão de Herron e Welt, seria a de proporcionar uma experiência única de regressão guiada, por assim dizer, aos níveis primários de experiência emocional em um ambiente facilitador e protegido.

Em nível de grupo e instituição analítica, o tema do dinheiro suscita ainda mais facilmente emoções fortes e conflituosas ligadas ao confronto, à rivalidade, à inveja entre pares e em relação às figuras parentais e edípicas dos mestres, bem como à necessidade de pertencer e de ter uma identidade profissional. Essas dinâmicas perturbadoras são provavelmente o principal motivo pelo qual este tema é dificilmente abordado pela comunidade analítica.

Muriel Dimen (1994), em uma das raras contribuições para a literatura sobre o dinheiro, reflete sobre como a relação analítica caracteriza-se pelo paradoxo. Ela pode ser, em alguns aspectos, mais íntima e aberta do que uma relação sexual e matrimonial e "está limitada justamente pelo pagamento em dinheiro que a permite" (p. 90).

Como todos os paradoxos, também este paradoxo entre distância e intimidade, entre dinheiro e análise - em síntese, entre ódio e amor - não pode ser resolvido, continua Dimen, mas deve ser habitado e vivido sem buscar rotas de fuga prematuras porque, penso, indica provavelmente o limite de nosso conhecimento/consciência e, certamente, de nossa linguagem ao explorar a realidade emocional profunda.

Em geral, de fato, a única solução de um paradoxo é outro paradoxo:

De certo modo, todas as vezes, com cada paciente novo, em cada relação íntima nova, a "lição" do paradoxo precisa ser novamente apreendida: "Que amor e ódio caminhem juntos é um lugar-comum da análise. Mas não lembrar disso, no instante crucial em que nos apaixonamos ou odiamos, talvez seja sabedoria" (Dimen, 1994, p. 97).

Gabi Bonwitt, analista de training e secretário da comissão científica da Sociedade Psicanalítica Israelense, dá mais um passo neste percurso, propondo que a dificuldade que temos com o dinheiro, na análise, baseia-se em ainda outro paradoxo:

Dimen (1994) afirma que o paradoxo entre dinheiro e amor pode ser compreendido apenas quando se recorre à transformação em paradoxo entre amor e ódio. [...] Gostaria [...] de dar um passo mais além e falar do paradoxo que evidentemente existe entre o poder do analista e sua vulnerabilidade. Desejo sugerir que o paradoxo entre vulnerabilidade e poder é também um princípio básico da relação terapêutica, como exprime a relação de dinheiro entre analista e cliente.

Quando falo de vulnerabilidade e poder, não me refiro ao cliente, mas ao terapeuta. A razão disso é que, apenas se reconhecermos nossa própria vulnerabilidade na situação terapêutica - expressa na transação em dinheiro com os clientes -, poderemos ter empatia com as dificuldades, feridas e vulnerabilidade dos próprios clientes em relação ao dinheiro (Bonwitt, 2010, p. 9).

Se a vulnerabilidade do paciente (não o definiria cliente, pois sofrimento e angústia são o motor de todas as análises) está em seu sintoma, seu poder está na dependência econômica que temos em relação a ele, ou seja, em nosso sintoma que é a necessidade de sermos analistas, talvez para poder encontrar, compreender e reparar ainda uma vez nossas partes danificadas, pondo-as de lado em ressonância com as de nossos pacientes.

Ao pedir que a análise nos seja paga, permitimos a nós e aos pacientes que nos odeiem e, por fim, nos deixem. Ou seja, ensinamos a eles e aprendemos, de nosso lado, a experimentar que amar é também odiar, que ter poder sobre alguém é também ser vulnerável àquela pessoa, tolerando assim os paradoxos da vida emocional ou sua íntima divina (Eros) loucura.

A capacidade de reparação do analista - considerada como preocupação materna primária ou rêverie, e também como sua outra face, que é o ódio primário por parte do cuidador - é um "presente", que não pode, porém, ser "pago" ou exigido pelo paciente, pois nem o analista pode dá-la como ato voluntário e a priori, se quiser ser autêntico. Ela é, de fato, o resultado esperado e desejado de um longo processo de aproximação e aceitação entre os dois membros da dupla analítica.

Um "presente" que, se aceito com gratidão, é um momento de articulação da análise e prelúdio de sua conclusão, já que é na abertura da possibilidade de receber do outro e dar ao outro, de amar e odiar, que reside o elemento mais importante da saúde psíquica.

Tenho convicção de que, nestes planos profundos da relação, postos em evidência pelo dinheiro como elemento central do setting e relativos às primeiras fases do desenvolvimento emocional, o analista só pode recorrer a "técnicas" como confiança no método analítico (ditada pela experiência), ou seja, deve estar do modo mais autêntico possível com o outro, e por todo o tempo necessário tolerando os paradoxos.

O "estar com o outro" não é de modo algum passivo; ao contrário, é capaz de agir e modificar, em nível corporal e inconsciente, a capacidade do analista de "compreender" com o corpo e com a mente. A esse ponto, a palavra que o analista dirige ao paciente tornar-se-á, de fato, ação transformadora para ambos, como a palavra poética.

A sessão analítica, como uma poesia ou uma tela em branco, cria um lugar; um espaço dentro do qual paciente e analista podem explorar os múltiplos significados que seu envolvimento simultâneo gera; uma "sala" [...] na qual ambos podem entrar, e juntos, como os espectadores teatrais, olhar e interpretar o drama que vai se desvelando; um drama no qual ambos desempenham os papéis principais (Davies, 1998, p. 820).

 

Referências

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Correspondência:
Francesco Castellet y Ballarà
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Tel.: (39-06) 534-6635
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Recebido em 8.12.2011
Aceito em 15.5.2012

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