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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.46 no.4 São Paulo out./dez. 2012

 

RESENHAS

 

Intervenções

 

 

Cláudio Laks Eizirik

Analista didata da Sociedade Psicanalítica de Porto Alegre SPPA, Professor associado do Departamento de Psiquiatria e Medicina Legal da Universidade Federal do Rio Grande do Sul UFRGS, Ex-presidente da International Psychoanalytical Association IPA

Correspondência

 

 

Autor: Renato Mezan
Editora: Casa do Psicólogo, São Paulo, 2011, 323p.
Resenhado por: Cláudio Laks Eizirik

As intervenções de Renato Mezan

Escrevendo sobre as relações entre a psicanálise e a literatura, André Green (1992) pergunta-se sobre o que faz um analista em face de um texto; Green sugere que o analista proceda a uma transformação, não de forma deliberada, mas esta se lhe impõe, por meio da qual ele não lê o texto, mas o escuta, de acordo com a modalidade específica da escuta psicanalítica, em uma espécie de leitura flutuante; ao contrário do que ocorre com a escuta de um sonho, neste caso lhe faltam as associações de quem sonhou; face ao estímulo de um texto, o analista reage com uma idéia e um afeto. A ideia é a de um enigma e o afeto é o de fascinação do texto, e é isto que o analista tenta analisar; assim, reagindo a um texto como a uma produção do inconsciente, o analista se torna o analisado do texto, pois sua tentativa de interpretação passará por sua própria subjetividade. Penso que tal aproximação se mostra igualmente valiosa para entender a relação da psicanálise com outras áreas.

Dentro da profícua produção de um dos mais inspirados e criativos pensadores da psicanálise brasileira, temos agora o prazer de ler Intervenções, de Renato Mezan. Desde logo, nosso autor questiona a propriedade do uso da noção de psicanálise aplicada, preferindo a de psicanálise implicada, de acordo com Pierre Fédida. De minha parte, eu iria mais longe, propondo que a ideia de uma psicanálise aplicada, mesmo que sugerida por Freud, já não mais se justifica: por que razão reservaríamos o nome psicanálise apenas para a teoria e a prática? E por que não seria mais justo com nosso método pensar em outra classificação, por mais temerária que possa ser: boa ou má psicanálise? Usar o método psicanalítico requer um longo e penoso percurso pessoal, cuja edição definitiva nunca fica pronta, como diria Drummond (Andrade, 1963); a maioria dos analistas se torna capaz de usar o método na clínica; alguns mais raros abordam e contribuem para a teoria; outros, ainda mais raros, são capazes de abordar o mundo, vasto mundo, com um olhar psicanalítico. O presente livro ilustra com perfeição este olhar.

Mezan divide seu livro em três partes, e nelas inclui uma coletânea de textos publicados em vários órgãos da imprensa, em especial no suplemento "Mais", da Folha de São Paulo, e de outras revistas. Na parte 1, intitulada "Cenas brasileiras", temos uma série de intervenções sobre o cotidiano brasileiro, em que inúmeras situações da atualidade são comentadas com um misto de ironia, indignação, erudição, e principalmente procurando reagir a elas com o olhar psicanalítico. Estas saborosas crônicas do cotidiano fazem desfilar personagens de hoje, de ontem ou de sempre, e o leitor vai encontrar nesse desfile de personalidades de maior ou menor calibre moral ou ético figuras tão semelhantes ou absolutamente incompatíveis como Mario Covas, Lincoln, Kaká, Lula, Hobbes, José Serra, Freud, Moacyr Scliar, Nelson Rodrigues, Felipão, Paulo Maluf, Maquiavel, Maria Antonieta, Pelé, Descartes, Ronaldo Nazário e tantos e tantas mais. Se eu tivesse que eleger uma dessas intervenções, minha escolha seria pelo comovente comentário sobre a figura e a morte de Mario Covas, e as razões pelas quais esta provocou tantas expressões de um genuíno pesar. Diz Mezan:

O homem comum pôde assim experimentar sentimentos que se potencializam mutuamente: frente a alguém que encarnava uma figura paterna e protetora, respeito e admiração, frente ao mesmo indivíduo, porém sob o aspecto fragilizado em consequência do câncer, empatia e solidariedade. Covas era ao mesmo tempo como eu e mais do que eu: identificação e idealização, portanto, soldaram-se como duas faces de uma mesma moeda. Acrescente-se a isto a imagem de honestidade no trato da coisa pública, que, traduzida na linguagem comum, pode-se chamar simplesmente decência - virtude rara entre nossos políticos - e teremos os ingredientes que, a meu ver, produziram o efeito de que falamos (p. 22-23).

Para mim, este trecho capta bem o que muitos brasileiros sentiram naqueles dias, entre os quais me incluo, e mostra como um olhar psicanalítico nos ajuda a entender uma complexa situação social e emocional. Este olhar, contudo, não se separa do olhar cidadão, e em dias em que Demóstenes et caterva ocupam o noticiário, é sempre bom lembrar que ainda é possível uma certa dignidade na política, como diria Hanna Arendt.

A segunda parte do livro se intitula "Novo, velho: a imaginação instituinte na cultura e no social". Partindo de uma idéia de Castoriadis, Mezan trata aqui de desenvolver reflexões sobre temas tão variados como a estrela de Davi, a festa de Pessach, a infância, o abuso sexual, Mozart, pesquisadores, as escolas de psicanálise, o fetiche da quantidade, a construção do caso clínico analítico, com o propósito de tentar criar formas, nas diferentes esferas da existência, retomando algo já existente segundo os esquemas da imaginação instituinte. De novo, erudição, pesquisa, cultura analítica se unem para permitir ao autor passeios por territórios tão distantes.

Por razões familiares, tive que estudar recentemente as questões relacionadas ao Pessach, e encontrei neste texto uma relevante contribuição para entender sua atualidade. Diz nosso autor que esta festa trata da afirmação da liberdade como direito irrevogável do ser humano. E mais:

A saída do Egito, embora essencialmente única, é um acontecimento que metaforicamente se reedita a cada momento: quando optamos pela luta e não pela acomodação, quando preferimos as areias escaldantes do deserto sem cadeias à vida em servidão às margens verdejantes do Nilo [...]. E, se cada um de nós tiver a coragem de matar seu feitor egípcio, se cada um de nós estiver disposto a trocar a modorra mental em que nos submerge o torvelinho da vida moderna pelo incômodo do pensamento independente, então talvez a celebração de Pessach venha a adquirir um significado novo e existencial: da escravidão à Terra Prometida, o Seder nos relembra que devemos atravessar nosso próprio Sinai (p. 169).

Boa literatura, boa psicanálise. Pois aqui vemos uma metáfora do tratamento analítico, com seu percurso tortuoso, oscilante, cheio de riscos e sofrimento, mas também de fantasias mirabolantes, idealizações, resistências, uma trajetória pelo deserto em busca de uma terra mais aprazível, não necessariamente em que jorrem o leite e o mel, mas em que se possa descobrir a insuspeitada alegria de com-viver. Sempre Drummond, que no deserto de Itabira encontrou a sombra de seu pai e partiu para construir a poesia brasileira mais universal.

Na terceira parte de suas intervenções, Renato Mezan pensa a atualidade e aqui se incluem ensaios mais especificamente "psicanalíticos", em que procura mostrar a vitalidade do pensamento freudiano, e sua contínua capacidade de produzir novos modos de encarar a subjetividade e os dramas de nosso tempo. Temas como a violência, o poder, o nazismo e a erotização da morte, a história da psicanálise no Brasil, os perigos da obediência, a crise atual do casamento, King Kong, um olhar psicanalítico da educação, palavras a um jovem psicanalista ocupam este setor. Mezan dialoga aqui com outros psicanalistas brasileiros, mas seu alvo parece ser o de mostrar como a psicanálise está viva e bem, e mora pelo mundo afora. O escritor George Bernard Shaw mandou publicar, em um jornal londrino, após a notícia de que teria morrido, uma nota dizendo que eram ligeiramente exageradas as notícias sobre sua morte; para mim, em particular, as notícias sobre a morte da psicanálise, ou sua suposta decadência, parecem não apenas ligeiramente exageradas como expressão de múltiplos interesses, e em total desacordo com o que tenho podido observar, em diferentes latitudes em que testemunhei pela psicanálise, o mesmo interesse e o mesmo entusiasmo, e as mesmas resistências que nos acompanham em nossa centenária história. Ao discutir quem tem medo do divã, Mezan nos oferece uma boa razão para entender esses arautos de uma suposta morte ou decadência:

A viagem psicanalítica ao fundo de si mesmo não é fácil, nem indolor. Ela está na contramão do narcisismo infantil, promovido sem pudor pela sociedade atual como solução para as dificuldades de viver. O espelho que ela estende ao paciente, como o da madrasta de Branca de Neve, lhe dirá que não é a mais bela, e esta descoberta provocará desconforto, às vezes terror e certamente angústia. A psicanálise pode ser tudo, menos complacente com nosso profundo desejo de iludirmos a nós mesmos [...]. Ela propõe a conquista da autonomia possível - e nisto é herdeira do Iluminismo; autonomia, contudo, fundada na admissão daquilo que para cada qual é o mais íntimo e secreto - e nisto é herdeira do Romantismo (p. 226).

Inquietante, subversiva, perturbadora, independente, não domesticável ao bom comportamento convencional ou ao politicamente correto, não passível de ser subjugada dentro de escolas, teorias únicas ou instituições exclusivas, irreverente, vivendo entre a tradição e a invenção, reinventando-se a cada dia em cada novo encontro entre paciente e analista, nossa psicanálise continua mais viva do que nunca, e pode ser um instrumento valioso para pensar o mundo e suas múltiplas expressões, conflitos e dramas, como evidenciam estas inteligentes e estimulantes Intervenções de Renato Mezan. E já que comecei com André Green, cuja morte estamos elaborando conjuntamente este ano, termino dizendo que se pode ver, neste livro, as razões pelas quais Renato Mezan é, como foi Green, um analista engajado. Desejo aos leitores o mesmo prazer, o mesmo estímulo e a mesma sintonia com o autor de que desfrutei ao longo de suas páginas.

 

Referências

Andrade, C. D. (1963). Antologia poética. Rio de Janeiro: Editora do Autor.         [ Links ]

Green, A. (1992). La déliaison. Paris: Les Belles Lettres.         [ Links ]

Green, A. (1994). Un psychanalyste engagé. Paris: Calman Lévy.         [ Links ]

 

 

Correspondência:
Cláudio Laks Eizirik
Rua Visconde do Rio Branco, 708
90220-230, Porto Alegre, RS
ceizirik.ez@terra.com.br

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