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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.46 no.4 São Paulo out./dez. 2012

 

RESENHAS

 

Flutuando atentamente com Freud e Bion

 

 

Ney Marinho

Membro efetivo com funções didáticas da Sociedade Brasileira de Psicanálise do Rio de Janeiro SBPRJ

Correspondência

 

 

Autor: Paulo Marchon
Editora: Imago, Rio de Janeiro, 2009, 288p.
Resenhado por: Ney Marinho

 

Pensar a psicanálise. Ou: flutuando atentamente com Marchon, Freud e Bion

Paulo Marchon, renomado psicanalista brasileiro, conhecido por sua longa, corajosa e íntegra trajetória em nosso movimento psicanalítico, sempre surpreendente, nos oferece um livro e um convite. O livro: Flutuando atentamente com Freud e Bion. O convite: o título já o explicita, mas podemos formulá-lo também como: Pensar livremente a psicanálise, o que nos evoca o histórico lema kantiano - Aude sapere (ousar conhecer). Contudo, não esperem os leitores uma exposição acadêmica, bem comportada, fria e intelecutal de um erudito pensador - embora isto não consiga o autor esconder: seu profundo conhecimento tanto da literatura psicanalítica, como da história do pensamento e, em particular, da filosofia da ciência.

Em um primeiro momento pensamos em resenhar o livro de Marchon segundo seu próprio estilo, informal, flutuando na corrente dos pensamentos que se ofereciam. Em uma nova reflexão, julgamos que não conseguiríamos nosso intento, pois o que faríamos seria uma caricatura da espontaneidade do autor, em sacrifício da nossa. Vamos tentar um breve resumo, a busca de invariantes ou de fatos selecionados que permitam dar um sentido - dentre os muitos que o texto sugere - ao universo de ideias e questões que Marchon nos oferece, e finalmente propor um diálogo com o autor.

Os agradecimentos - A verdade e beleza do que é dito merece a transcrição: "Este livro foi escrito em família, por Maria Livia, Livia Dinora, Pedro Luiz, Paulo Henrique e, em alguns momentos por mim" (p. 7). Acrescentaria que o que vamos examinar são pensamentos em busca de um pensador; ou, na formulação pirandelliana, personagens em busca de um autor.

Os primeiros capítulos - Uma deliciosa sequência de capítulos sobre uma gama de autores - Green, Renik, Cavell, Ogden, Searles, entre muitos outros - vai revelando as preocupações do autor, sempre voltadas para a clínica. A rigor constituem estes textos iniciais um amplo painel das dúvidas contemporâneas quanto à técnica psicanalítica, sua validade e fundamentação, e mesmo seu desespero perante os enormes desafios que a clínica de pacientes graves desperta. Marchon não se põe como crítico ou juiz de ilustres colegas que muitas vezes se digladiam, mal escondendo nossa impotência ante a loucura ou simplesmente a vida que não se deixa aprisionar pelas mais belas teorias. Assim, as diversas contribuições surgem através de curiosas histórias, autorrevelações de técnicas ousadas - desde declarações contratransferenciais do analista ao analisando até o uso irrestrito da intuição livre de qualquer avaliação racional -, sempre com a descrição de contextos clínicos, narrados pelos próprios autores. Um dos pontos distintivos do livro de Marchon é que ele não se limita a um repertório de anedotas psicanalíticas, no sentido amplo do termo, mas toda esta apresentação terá como pano de fundo uma consistente reflexão epistemológica. Está o autor interessado em preservar e encontrar uma racionalidade para o empreendimento psicanalítico sem sacrificar sua íntima ligação com a vida e com o sofrimento humano. Pensamos que Marchon não esconde suas origens popperianas, seu racionalismo crítico, mas também sua necessidade de superar os limites do cientificismo positivista tão criticado, o qual curiosamente ressurge, neste início de século, com toda a força nos projetos psiquiátricos em voga. Isto dá ao livro de Marchon também uma importante atualidade. Não se trata de discutir academicamente a cientificidade da psicanálise - como um galhardão a ser conquistado e reconhecido pela comunidade científica - mas uma proposta mais consequente de colocar em questão o papel da verdade, da objetividade, do progresso, da terapêutica em nossa clínica e teoria. Esta é a linha de compreensão que tivemos do livro. Neste trajeto é que o autor vai introduzir a contribuição de Bion como uma herança legítima das Recomendações de Freud (1912) aos praticantes da psicanálise.

Nesta linha de leitura da obra, a técnica será a contribuição privilegiada de Bion ao pensamento analítico. Entretanto, Marchon não ignora nem omite a íntima relação que a proposta técnica de Bion guarda com suas formulações teóricas, sobretudo as formulações para uma teoria da observação psicanalítica. Com grande pertinência surgem conceitos como O - realidade última, o incognoscível, infinito informe -, pensamento sem pensador, capacidade negativa, entre outros. Apesar de a ênfase recair sempre na proposta do trabalho sem memória, sem desejo, sem entendimento e sem sensorialidade. De forma muito clara e incisiva, Marchon esclarece a distinção entre memória-recordação e memória-sonho ou evolução; neste mesmo processo de esclarecimento dos conceitos bionianos, afasta o autor as críticas apressadas e conservadoras preocupadas em preservar a cientificidade da psicanálise de um misticismo ou de um relativismo que a desfigurasse como ciência. Interessante lembrar que tais críticas, que poderiam parecer ultrapassadas, ainda estão vivas e atuantes, como se pode constatar na leitura das Controvérsias psicanalíticas (ver Blass, 2011) acerca de um "primeiro" e um "último" Bion.

O núcleo duro: Freud e Bion - Marchon reserva um capítulo - "Quadro de semelhanças e diferenças entre as duas propostas" - para expor minuciosamente, cotejando as Recomendações de Freud com textos de Bion, o tema central do livro, ou seja, a atitude do analista proposta por aqueles autores para que ocorra a experiência de uma psicanálise. São dezessete itens, citações de Freud cotejadas com outras de Bion sobre o mesmo tema. Este exame minucioso tem uma extrema importância, não somente pelo rigor acadêmico de não banalizar comparações e negar diferenças, mas graças ao extenso conhecimento de Marchon de ambos os autores, questões em geral mal compreendidas são elucidadas e abrem caminho a um aprofundamento da proposta bioniana. Esta, ao partir da noção de atenção flutuante de Freud, desenvolve-a dada a experiência de Bion com pacientes graves - que exigem nossa abstenção de memória, desejo, entendimento e sensorialidade, caso desejemos trabalhar analiticamente com eles - expondo suas mais profundas consequências, a nosso ver, éticas e epistemológicas.

Como esperamos que os leitores desta resenha venham a ler o livro de Paulo Marchon, não vamos nos estender neste ponto, valendo apenas sublinhar certos aspectos que nos evocaram a leitura e que julgamos passar despercebidos frequentemente.

Cavell, Steuerman e a epistemologia da psicanálise - Marchon é um leitor atento de Marcia Cavell e Maria Emilia Steuerman, como seu texto revela. São escolhas preciosas; infelizmente, não devidamente reconhecidas a nosso ver no ambiente psicanalítico. Marcia Cavell, autora de The psychoanalytic mind from Freud to philosophy, inacreditavelmente ainda não traduzido para o português, produziu a mais extensa e consistente avaliação epistemológica da teoria psicanalítica baseada na teoria de relações de objeto e na moderna filosofia da linguagem, a partir de sua leitura de Donald Davidson e Ludwig Wittgenstein. Sua obra faz um perfeito contraponto à de Adolf Grunbaum - The foundations of psychoanalysis, a philosophical critique - cuja minuciosidade e contundência crítica obscureceram a fragilidade filosófica da obra que dominou por um longo tempo o debate epistemológico norte-americano sobre a psicanálise. Cavell, após uma pesquisa de mais de dez anos, a partir da proposta que formulara: "uma criança se torna um ‘sujeito' ou um ‘self somente através de relações com outras pessoas", sentiu-se levada a articulá-la com sua orientação filosófica, ligada à moderna filosofia da linguagem, o que a fez desenvolver a proposta inicial para outra mais abrangente: "[...] assim como a linguagem é uma atividade comunitária, da mesma forma a mente é um fenômeno mais interpessoal do que estamos propensos a pensar" (Cavell, 1996, p. 9). Esta tese permite-lhe uma leitura de Freud muito rica, e supera uma série de objeções levantadas pela crítica epistemológica tradicional, como a de Grunbaum - que considerava a psicanálise como uma atividade irrefutável, não passível de testabilidade, descartando-a como empreendimento científico -, oferecendo uma racionalidade para a teoria psicanalítica que atende às reais necessidades de seu objeto de estudo: a vida mental, em seu mais amplo sentido e escopo. Em que pese algumas divergências com Cavell, reconhecemos o formidável caminho que abre para uma consistente avaliação filosófica da psicanálise. Resta muito a fazer, sobre isto falaremos no diálogo com Marchon.

O caso de Maria Emilia Steuerman representa um novo passo no diálogo psicanálise e filosofia. Os limites da razão - Habermas, Lyotard, Melanie Klein e a Racionalidade (Steuerman, 2003) é uma proposta de trabalho comum de filósofos e psicanalistas para lidar com as grandes questões que a modernidade e a pós-modernidade nos apresentam, sobretudo as éticas. Ao introduzir, com extrema competência, Melanie Klein neste debate, Maria Emilia reconhece a imprescindível contribuição da teoria de relações de objeto para pensarmos as grandes questões éticas e os próprios limites da razão. Um dos últimos parágrafos de seu livro talvez revele o alcance de sua contribuição que desejamos registrar:

Para Klein, Bion e os kleinianos contemporâneos, o pensamento não pode ser dissociado de nossas experiências emocionais e concretas do mundo. Ele se enraíza na capacidade de estabelecer laços que remontam a experiências mais primitivas, pré-verbais, "não-racionais" do bebê, vulnerável, com a mãe. O pensamento e a razão incluem também o impensado e o irracional, e é somente ao nos tornarmos "familiares" com a dor e o sofrimento, com o amor e o prazer que sentimos, na relação com o "outro", que podemos usar nossas capacidades racionais maduras como seres humanos. Esta não é uma conquista solitária, e sim uma conquista intersubjetiva (Steuerman, 2003, p. 157).

Diálogo com Paulo Marchon - Marchon tem uma clara percepção do alcance das obras daquelas autoras e cita com frequência e propriedade suas contribuições, da mesma forma que utiliza os textos de Paulo César Sandler ou trabalhos de Roosevelt Cassorla, demonstrando uma rara capacidade de acompanhar as produções brasileiras e as estrangeiras com idêntico interesse. E não se trata de uma leitura ocasional, pelo que mostra sua arguta seleção de questões levantadas pelos autores. Tomaremos uma que nos permitirá abrir um diálogo, que entendemos ser um dos principais objetivos do livro.

Pensamos na questão mencionada por Ronald Britton de como distinguir um fato selecionado de uma ideia supervalorizada pelo analista, ou na semelhante de Noé Marchevsky, que admite o papel da intuição mas sente falta de um critério para sua validação. Temos a impressão de que estas questões pedem uma digressão sobre o papel da grade na obra de Bion. Seriam desdobramentos que o livro solicita ao leitor. Importante lembrar que em conferência de 2 de outubro de 1963 - apresentada em uma reunião científica da Britânica, publicada postumamente em 19971 -, Bion expõe em um mesmo texto suas primeiras idéias sobre a grade, articuladas com o embrião da teoria das transformações. Utiliza pela primeira vez o modelo do pintor, o quadro e o campo de papoulas! Fazemos este registro histórico, pois julgamos que a grade é um fundamental instrumento para o escrutínio tanto das comunicações do analisando como do analista, e neste sentido, toda e qualquer ideia - como, por exemplo, uma candidata a fato selecionado - poderá ser inspecionada e colocada nas diversas categorias, até na coluna 2 (dedicada ao uso como resistência ao desenvolvimento da investigação psicanalítica) como um uso de ideia prevalente, como uma possibilidade daquele específico contexto. Temos a impressão de que a importância deste instrumento nem sempre é devidamente realçada, talvez por ser um dispositivo fundamentalmente conjectural, infenso a qualquer pretensão dogmática ou mesmo meramente assertiva; é um permanente exercício no campo das hipóteses, das incertezas e do permanente questionamento.

Um diálogo vivo com o autor poderia partir do extenso material clínico que apresenta, que não comporta comentários em uma simples resenha, e revela a seriedade, o compromisso com a psicanálise, com o sofrimento humano, que dá ao livro um valor muito especial. Revela também não se restringir o autor ao âmbito do conhecimento (K), mas ao do ser (O), próprio da aventura psicanalítica.

Iniciando um possível diálogo, perguntaríamos se a clínica apresentada não poderia também ser estudada à luz dos diversos vínculos? Não seria ela um testemunho da importância no trabalho analítico de mantermos a predominância do vínculo K (conhecimento) e, ao mesmo tempo, reconhecermos que sem a presença de L (amor), pairando sobre todos as demais vincula-ções (sempre presentes a nosso ver), nossas interpretações seriam rasas e inúteis como o sino sem caridade de que falava um outro Paulo aos Coríntios?

Não seria possível terminar esta resenha sem dar meu depoimento sobre o impacto do livro que me evocou sempre o autor. Pois seu estilo mostra, mais do que diz, o que significa trabalhar sem memória, sem desejo, sem entendimento e sem sensorialidade; trabalhar no âmbito da fé2 . Isto só é possível para aqueles que de fato se proponham a viver a experiência analítica. Vejo nesta atitude o mesmo Marchon presente em generosas lutas de nossos tempos, desde a campanha pela paz, contra as armas nucleares e pela desmilitarização de nossos países latino-americanos, até o corajoso defensor da descriminalização do uso de tóxicos, e autor de projetos que atendam realmente ao adito, sem a truculência e hipocrisia dos métodos meramente repressivos. Estamos falando de décadas de lutas, que remontam aos primórdios dos movimentos de democratização e modernização de nossas instituições. É toda uma vida psicanalítica que o livro transpira, como bem observou Paulo Sandler.

Termino a leitura de Marchon e lembro-me de uma das últimas frases do prefácio de Ludwig Wittgenstein para suas revolucionárias Investigações filosóficas:

Não desejaria, com minha obra, poupar aos outros o trabalho de pensar, mas sim, se for possível, estimular alguém a pensar por si próprio (Wittgenstein, 1991, p. 8).

 

Referências

Blass, R. B. (org.). (2011). Psychoanalytic controversies. International Journal of Psychoanalysis, Londres, 92(5),1081-1116.         [ Links ]

Cavell, M. (1996). The psychoanalytic mind from Freud to philosophy. Cambridge: Harvard University Press.         [ Links ]

Freud, S. (1996). Recomendações aos médicos que exercem a psicanálise. In S. Freud, Edição standard das obraspsicanalíticas de S. Freud (Vol. 12). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1912).         [ Links ]

Grunbaum, A. (1984). The foundations of psychoanalysis, a philosophical critique. Berkeley: University of California Press.         [ Links ]

Steuerman, M. E. (2003). Os limites da razão: Habermas, Lyotard, Melanie Klein e a Racionalidade. Rio de Janeiro: Imago.         [ Links ]

Wittgenstein, L. (1991). Investigações filosóficas. São Paulo: Nova Cultural.         [ Links ]

 

 

Correspondência:
Ney Marinho
Rua Sergio Porto, 153
22451-430 Gávea, Rio de Janeiro, RJ
Tel.: (21) 2294-4686
neymarinho@globo.com

 

 

1 Esta conferência tem uma longa história. Foi dada, em 1971, pelo Dr. Hans Thorner a Rosa Beatriz Pontes de Miranda, e tornou-se um dos textos tradicionais de estudo da Grade no grupo de estudos de Rosa Beatriz, o qual durou cerca de 30 anos, com reuniões quinzenais, uma teórica e outra clínica. Rosa, em 1994, encaminha o texto para Francesca Bion, pensando em uma possível publicação, o que ocorre três anos após.
2 Um ponto alto do livro de Marchon é o capítulo "O raio de trevas iluminador", que é bastante esclarecedor da concepção bioniana do "ato de fé" e sua distinção de outras elaborações do mesmo tema, como as de natureza religiosa.

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