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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.46 no.4 São Paulo out./dez. 2012

 

RESENHAS

 

Adições: paixão & vício

 

 

Diva Reale

Psiquiatra, Psicanalista, Ex-estagiária do Hospital Marmmotan/Paris, Coordenadora do Curso de Aperfeiçoamento do Instituto Sedes Sapientiae "Drogas, dependência, autonomia: o barato no divã", Médica assistente SEPIA/IP-HC/FMUSP, membro da Associação Brasileira Multidisciplinar de Estudos sobre Drogas ABRAMD

Correspondência

 

 

Autor: Decio Gurfinkel
Editora: Casa do Psicólogo, São Paulo, 2011, 470p.
Resenhado por: Diva Reale

 

Clássico e atual

O livro Adições: paixão & vício, o mais recente do autor, trata de reduzir ao mínimo as lacunas da psicanálise voltada para a clínica das adições, conceito preferido pelo autor no lugar do termo dependência, consolidado entre os especialistas do campo das drogas.

Originário de uma pesquisa de pós-doutorado sobre o "estatuto" das transformações da psicanálise das adições - quando da passagem do modelo pulsional ao modelo relacional -, trouxe consigo a vantagem de conter o rigor e detalhamento que geralmente suscita o trabalho acadêmico. Este, em particular, foi conduzido com seriedade e paixão. A desvantagem que poderia haver foi suplantada pelo estilo do autor, que nos envolve com fluência e cadência ao longo do caudaloso fluxo de informações e considerações teóricas. Saboroso, extenso e rico conteúdo.

Dois eixos são destacados ao apresentar a forma de produção da obra: o eixo histórico e o eixo da paixão.

O eixo histórico nos aproxima, simultaneamente, dos bastidores e dos textos "chave", con-textualizados no que ficou conhecido como "episódio da cocaína" de Freud. É atraente a hipótese de que o silêncio de Freud na produção teórico-clínica sobre os problemas associados ao abuso ou dependência de substâncias como o álcool e outras drogas poderia muito bem indicar a limitação tanto do teórico, quanto do clínico, diante do próprio envolvimento humano com a experimentação e uso da cocaína. De entusiasta propositor dos usos terapêuticos da cocaína, podemos pensar, a partir dos dados fornecidos no livro, que Freud sofreu o baque de ser traído pela droga, que em um intervalo relativamente curto de anos mostra-se nociva o suficiente para que a sociedade decida proscrevê-la, jogando-a para a ilegalidade. O estudo dos movimentos de temperança mostra que eles culminaram com a promulgação das leis antidrogas. O inaugural Harrison Act, de 1914, exemplifica como foi enraizada nestas duas primeiras décadas do século XX aquilo que viria a se tornar a forma dominante de visão sobre as drogas, conhecida como proibicionismo.

Graças às campanhas publicitárias, ou francamente bélicas, que a repressão às drogas empreendeu, principalmente após a declaração norte-americana de "guerra às drogas", feita por Nixon, em 1968, o imaginário social dominante nas sociedades ocidentais passou a tratar a droga como flagelo. Inverteu-se, muitas vezes, a ordem dos fatores de uma gama enorme de mazelas sociais, que culminaram com a organização e fortalecimento assustador da narcoeconomia mundial, a terceira em potência da economia do planeta.

A busca do pensamento de Freud sobre a relação que o homem estabelece com as drogas - ainda não diferenciadas em lícitas e ilícitas nos poucos rastros deixados por ele (cartas, notas de rodapés, pequenos e raros trechos de artigos), resulta na descrição do que seriam os brotos freudianos embrionários da visão do pai fundador de uma Psicanálise das Adições.

Uma vez que tais embriões foram descongelados, o autor segue seu caminho pautando suas considerações teóricas em um uso desenvolto e próprio da teoria pulsional desde seus primordios até a atualidade.

O eixo da paixão é também articulado fundamentalmente na e pela pulsionalidade, sobretudo quando pensada como paixão oral e paixão anal. A adição pode ser tomada como forma de paixão, e a paixão como forma de amor viciado ou vício amoroso. Assim, fica trilhado o caminho de extensão da questão da adição para além das drogas lícitas ou ilícitas.

Nesta obra o autor não cede ao fascínio que a droga em si produz - objeto investido no imaginário social de qualidades mágicas ou demoníacas. Também não cede à força que emana da complexa e árdua clínica da dependência de drogas, limitando-se a investigar somente as adições às drogas. Amplia seu escopo partindo da Toxicomania e Alcoolismo, seguindo para a adição ao sexo e adição ao outro, formas de vício tomadas em conjunto com outras adições, como os relacionamentos aditivos e a sexualidade aditiva.

A dependência se constrói em uma circularidade de necessidades e significados [...] a própria experiência de uso de objeto retroalimenta as causas, reestruturado a vivência e autopercepção. O sujeito com suas necessidades vive, no encontro com o objeto, uma experiência particular de reestruturação de si mesmo [...]. Essa é uma tese sistêmica que se aproxima de diversas formulações psicanalíticas, especialmente do pensamento das relações de objeto (p. 34-35).

Esta formulação também é encontrada no pensamento de Olievenstein1 sobre a toxicomania. Ao descrever a memória do prazer que a droga dá - frisemos que o modelo clínico olivens-teiniano para pensar a toxicomania vem da clínica feita com heroinômanos -, Olievenstein alerta que este será o grande obstáculo a ser evitado. Refletir sobre isso, estabelecendo equivalências com vistas a sua substituição, é caminhar em campo minado. O flash, ou sentimento ordálico, são vivências que ao serem recuperadas na memória exercem tal fascínio e pregnância que colapsam, naquele instante, a função do pensar. Quem trabalhou com grupos de drogados já experimentou períodos da sessão nos quais o assunto droga toma uma tal dimensão que nos sentimos partícipes de algo similar à "roda da droga" (roda de pico, roda de maconha etc), em que a apresentação dos efeitos opera em um outro registro, "apresentativo", ou de consciência expressiva, no qual a função representativa do discurso não está operando naquele momento.

Assim, reafirma Décio, o "encontro com as drogas", experiência única e originária, estabelece a relevância do "fator atual" na etiologia das adições.

E ele segue: "a conduta aditiva é um fator atual que interfere de tal forma na vida psíquica e no destino do sujeito que ela quase que subverte e reconfigura a sua estrutura clínica pregressa" (p. 35).

Esta corrente tem opositores fortes no ambiente psicanalítico de língua francesa, como Bergeret2 , que situa a clínica da toxicomania como resultado de vários comportamentos que podem surgir em qualquer estrutura psíquica, modificando, quando o fizer, apenas seu funcionamento secundário.

No capítulo "O jovem Freud, a cocaína e as adições", adentramos nos antecedentes do campo analítico, acompanhando a trajetória do fundador no âmbito pessoal e de sua carreira médica. A cocaína como protagonista desta contextualização da relação entre vida pessoal, ambições científicas e projeção na carreira médica cria uma instigante intersecção entre a psicanálise em sua fundação. Ou seja, o âmbito da medicina e dos especialistas em drogas.

Três artigos foram dedicados à droga, fato que foi objeto de omissão inicial na biografia e na lista de publicações de Freud, motivo de retratação e investigação feita por biógrafos em estudos mais recentes: "On coca" (1884); "Addenda to On Coca" (1885a); "Contribution to the knowledge of the effect of cocaine" (1885b); "On the general effect of cocaine" (1885c); e "Remarks on craving for and fear of cocaine" (1887).

Os capítulos seguintes, "Vício e hipnose", "Sexualidade e adições: entre o somático e o psíquico" e "Sexualidade e adições: entre a neurose e a perversão", fazem a passagem do registro histórico, agora incluindo uma viagem a textos seminais da época pioneira da psicanálise, enfocando principalmente Abraham e Jones, chegando a Radó, já em 1932.

A proposição da associação livre, que transpõe o método da hipnose e da sugestão, é incluída como parte do processo de descoberta e eleição do novo método: o reconhecimento de Freud de um indesejável efeito clínico chamado de "adição à hipnose".

A explanação do espaço entre o registro somático e o psíquico - que já está posta no cerne do conceito de pulsão - permite uma ampliação da base metapsicológica, indicando quais podem ser os caminhos para o estabelecimento das distintas relações entre os sujeitos e as drogas.

Na ênfase dada ao papel das neuroses atuais, articulada com a discussão das possíveis relações entre a neurose e a perversão, o autor lança mão do artigo pioneiro de Abraham sobre a sexualidade e o alcoolismo.

A partir dos capítulos "A paixão, um amor tóxico" e os seguintes, o eixo que ganha destaque para pensar a adição é a paixão, amor viciado ou vício amoroso. "O ‘calibanismo': uma paixão anal" e "A comilança: uma paixão oral" são o substrato da análise que se desenvolve sobre as tramas e personagens, apoiado fortemente na leitura pulsional da gritante psicopatologia dos personagens. O recurso de utilizar um material advindo da literatura e do cinema dá maior liberdade ao autor que o uso do material clínico.

No capítulo "Paixão, caráter e seus paradoxos", a elaboração teórica sobre o caráter prossegue. Apoiando-se em Abraham e Jones, e aproximando Suzane Dupetit, Decio desenvolve o espinhoso tema da "degradação de caráter", assim se referindo ao fato de que pacientes dependentes graves de drogas muitas vezes desenvolvem comportamentos de natureza antissocial, como furtos, mentiras de toda ordem, roubos etc. Tais aspectos são associados a certo tipo de evolução desfavorável da paixão anal na direção de uma perda progressiva de princípios e freios na relação com o outro.

No ensaio de Freud (1912) "Sobre una degradación general de la vida erótica" há uma passagem onde é feito um contraponto entre a vida sexual e amorosa e a relação do bebedor intenso de vinho, referida como uma relação de "harmonia perfeita". A partir desta "harmonia perfeita", é introduzida a temática da paixão amorosa, apresentada como fixação no plano amoroso, correlata ao fetichismo como fixação no plano das pulsões.

No rastro da paixão que leva o sujeito a ser engolido pelo objeto da paixão, surge a temática da falta, que ocupa lugar privilegiado na clínica das adições. A paixão busca anular toda e qualquer falta. E assim fazendo, leva o sujeito a ser capturado de tal forma pelo objeto da paixão, que se vê dominado por ele.

Também é através do tema da paixão à droga que Decio propõe a origem do proselitismo comum que acirra e aprofunda a visão pró ou contra as drogas, de forma absoluta e parcial. Esta forma de adesão ao grupo é dada de maneira acrítica e alienada. Ou, na descrição feita por Freud, em "Psicologia das massas" (1921), são presas mais fáceis as pessoas cuja estrutura do Eu e de seus ideais está debilitada - tal como os adictos.

A incriminação de um desvio de caráter patológico da pulsão oral tomando-a como protótipo de toda adição é, afinal, uma tese psicanalítica clássica sobre a dependência de drogas, apresentada no texto "On addiction" (1960), publicado no livro Os estados psicóticos, de H. Rosenfeld (1968).

Isto se daria pelo curto-circuito de um dos aspectos centrais da pulsão sexual que, segundo a teoria do apoio, diz: "a sexualidade se apoia sobre a auto-conservação". Na vigência desta reversão, o curto-circuito instaura a droga como objeto vivido, como aquilo que garante a sobrevivência.

A pergunta que muitos autores se fazem, e ele cita em particular Piera Aulagnier, é: "qual é, afinal, o estatuto metapsicológico desse prazer não sexual que na toxicomania se torna uma questão de vida ou morte?".

No caminho da desarticulação máxima, o curto-circuito final da vida pulsional culmina com a morte do sujeito encarnado. O objeto da paixão acaba por anular a existência daquele que atribuiu ao objeto droga a capacidade de sanar definitivamente qualquer tensão que surja pela ausência mínima da presença desse objeto.

No capítulo "Paixão, caráter e seus paradoxos", novamente é abordado um tema difícil. Aqui o desafio é investigar "como" e "se" é possível definir a normalidade (o caráter normal) dentro da psicanálise. Na leitura atenta e sutil feita da obra de Abraham, o autor defende que ele não faz "uma redução linear e normatizadora do desenvolvimento e do caráter", ao contrário, aprendemos que "absorver, expulsar e reter [...] são experiências psicossomáticas fundamentais que formam a base de toda relação de objeto" (p. 359).

Através da articulação entre paixão, caráter e paradoxo, avançamos em direção à abertura para um modelo relacional no qual é anunciado que haverá maior distanciamento do modelo pulsional. Sairemos do domínio do quantitativo para o qualitativo, previne Decio.

Já no campo do modelo relacional, a leitura de Christopher Bollas exemplifica a possibilidade de pensar a personalidade prescindindo do conceito de caráter, ao retirar o conceito de pulsão da centralidade da constituição da pessoa. Bollas analisa as personalidades borderline, narcisista, esquizoide e histérica, prescindindo de tratá-las no registro clássico-pulsional como caráter anal e oral. Tais distúrbios são entendidos como reflexo de perturbações de modalidades distorcidas de relação com o objeto primário, seguindo a tradição do pensamento do grupo do meio, ou dos independentes, que se formou a partir de Winnicott.

Nos capítulos "Relacionamentos aditivos", "As terapêuticas vinculares na clínica das adições" e "A adição de transferência e os vícios da psicanálise", chegamos ao final desta jornada. Em "Relacionamentos", o autor analisa o amor vampírico e a patologia nas relações de objeto, articulando as adições dentro desta perspectiva. Neste trecho do percurso somos apresentados ao pensamento de Joyce McDougall.

Aqui as terapêuticas vinculares ganham relevo. A inclusão da família na gênese da adição e no tratamento é tratada com o senso de propriedade de quem conhece a importância desse imbricamento quando se debruça sobre esta clínica tão singular.

As considerações feitas permitem iluminar um fenômeno comum na clínica da dependência que envolve os relacionamentos dos dependentes com familiares, principalmente mãe ou esposa: trata-se da co-dependência, termo que se tornou um verdadeiro clichê, tanto entre pacientes quanto ex-drogados que participam do amplo universo das comunidades terapêuticas ou de grupos de autoajuda.

O grand-finale se faz com uma autocrítica dos excessos ou vícios a que nos vemos entregues quando descuidamos de vigiar nossa prática clínica psicanalítica, sobretudo quando estamos falando nas adesões dogmáticas a grupos e autores (nas antigas "escolas"), em parte fruto das identificações não suficientemente analisadas no processo formativo.

 

Referências

Freud, S. (1975). On coca. In R. Bick (ed.), Cocaine papers by Sigmund Freud. New York: Meridian. (Trabalho original publicado em 1884).         [ Links ]

Freud, S. (1975). Addenda to On coca. In R. Bick (ed.), Cocaine papers by Sigmund Freud. New York: Meridian. (Trabalho original publicado em 1885a).         [ Links ]

Freud, S. (1975). Contribution to the knowledge of the effect of cocaine. In R. Bick (ed.), Cocaine papers by Sigmund Freud. New York: Meridian. (Trabalho original publicado em1885b).         [ Links ]

Freud, S. (1975). On the general effect of cocaine. In R. Bick (ed.), Cocaine papers by Sigmund Freud. New York: Meridian. (Trabalho original publicado em 1885c).         [ Links ]

Freud, S. (1975). Remarks on craving for and fear of cocaine. In R. Bick (ed.), Cocaine papers by Sigmund Freud. New York: Meridian. (Trabalho original publicado em 1887).         [ Links ]

Freud (1981). Sobre una degradación general de la vida erotica. In S. Freud, Obras completas de Sigmund Freud (Vol. 2). Madri: Biblioteca Nueva. (Trabalho original publicado em 1912).         [ Links ]

Freud, S. (1981). Psicología de las masas y analísis del yo. In S. Freud, Obras completas de Sigmund Freud (Vol. 3). Madrid: Biblioteca Nueva. (Trabalho original publicado em 1921).         [ Links ]

Rosenfeld, H. (1968). Da toxicomania. In H. Rosenfeld, Os estados psicóticos. Rio de Janeiro: Zahar. (Trabalho original publicado em 1960).         [ Links ]

 

 

Correspondência:
Diva Reale
R. Itacolomi, 333, cj 35
Higienópolis, São Paulo, SP
Tel: (11) 3257-0983
dreale@uol.com.br

 

 

1 Claude Olievenstein: (1933-2008) psiquiatra que implantou na França um sistema articulado em cadeia terapêutica na atenção aos toxicômanos, em trabalho pioneiro nos anos 70. Seu pensamento clínico e de Saúde Pública influenciou e formou inúmeros especialistas brasileiros, muitos dos quais fundaram alguns dos principais Centros de Referência para a questão da dependência de drogas.
2 Jean Bergeret: psiquiatra francês (1923), autor de artigos e livros sobre a toxicomania representa outro polo do pensamento sobre a toxicomania, mais reconhecido entre os psicanalistas de língua francesa.

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