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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.46 no.4 São Paulo out./dez. 2012

 

RESENHAS

 

Luto e melancolia

 

 

Pedro Heliodoro Tavares

Psicanalista e Germanista, Professor da Área de Alemão: Língua, Literatura e Tradução da Universidade de São Paulo, autor de Versões de Freud - breve panorama crítico das traduções de sua obra (2011)

Correspondência

 

 

Autor: Sigmund Freud (Marilene Carone, trad.)
Editora: Cosac Naify, São Paulo, 2011, 144p.
Resenhado por: Pedro Heliodoro Tavares

 

A tradução de Luto e melancolia de Freud por Marilene Carone: luto por uma grande pioneira

Na língua portuguesa o vocábulo luto traz a interessante equivocidade entre o substantivo, que remete a "sentimento de tristeza profunda por motivo da morte de outrem" (Houaiss & Villar, 2001, p. 1794), e o verbo lutar flexionado na primeira pessoa do singular: eu luto. O trabalho de tradução de Marilene Carone de fato é fruto de uma luta na qual ela se colocou muito implicada como sujeito enunciador. Se o luto de que Freud trata diz respeito a um embate psíquico, movido pela perda do objeto e uma necessidade de redirecionamento da libido, o trabalho de Carone tem muito de uma luta, um combate pela defesa do autor e de sua obra a partir de uma tradução que fizesse justiça à grandeza de seus escritos e de suas ideias.

Na década de 1980, no Brasil, já era lugar-comum reproduzir as críticas à Standard Edition inglesa de James Strachey, difundidas a partir da influência do freudismo francês e do livro Freud and man's soul, de Bruno Bettelheim (1983). Contávamos à época, afinal, como até o presente momento continuamos contando, somente com uma coleção de suas obras ditas completas elaboradas a partir da célebre versão inglesa. A edição Standard Brasileira parecia, logo, reproduzir os "pecados" dos traduttore, tradittore britânicos. Naquele momento surgiram, porém, as críticas de Carone acompanhadas das de Paulo César de Souza ao demonstrar em publicações para o caderno "Folhetim", da Folha de S.Paulo, que "nossos" problemas, com a única e indireta versão disponível, eram bem mais graves.

Nas contundentes palavras da tradutora:

Na sua maioria, os erros da tradução brasileira nada têm a ver com os eventuais descaminhos da versão inglesa, nem são norteados por qualquer orientação filosófica particular. Trata-se pura e simplesmente de falta de competência e responsabilidade no trabalho intelectual. Com ela, temos a melancólica oportunidade de ver um escritor do porte de Freud falando como um personagem de filme dublado de televisão, cometendo erros crassos de português, usando uma linguagem retorcida e pedante, assumindo incoerências teóricas e às vezes fazendo afirmações inteiramente sem pé nem cabeça (Marilene Carone, 1985a/1989, p. 161).

Remetemos aqui o leitor à infelizmente esgotada publicação Sigmund Freud e o gabinete do Dr. Lacan, organizada por Souza (1989), na qual está disponível a trilogia de artigos de Marilene Carone: "Freud em português: uma tradução selvagem" (21/04/1985), no qual se aponta para os graves erros identificados na edição Standard Brasileira (Marilene Carone, 1985a/1989), seguido de "Freud em português: ideologia de uma tradução" (20/10/1985), em que aparecem os vieses interpretativos da indireta versão realizada pela Imago (Marilene Carone, 1985b/1989), e finalmente, "Freud em português: tradução e tradição" (23/01/1987), no qual se sinaliza para os desafios colocados diante de uma eventual nova tradução das obras de Freud a ser empreendida no Brasil (Marilene Carone, 1987/1989).

Marilene Carone falava, então, do trabalho que se propunha à época, confiante na possibilidade de realizar uma primeira publicação de traduções de Freud diretamente do alemão ao português em 1989, cinquenta anos após a morte do autor. Ficamos a par de sua empresa de tradução a partir do artigo do também tradutor e professor de filosofia da UNIFESP, André Medina Carone (2005), filho de Marilene. A intenção era, baseando-se no modelo da Studienausgabe (Edição de Estudos) alemã, elaborar cinco volumes temáticos. Deste projeto foram concluídas as traduções das Conferências introdutórias, além de dois artigos isolados: "A negação" e "Luto e melancolia". Infelizmente, em 1987 surgem os primeiros sintomas da doença que levou a tradutora ao falecimento alguns meses mais tarde.

Na realidade, alterações na lei dos direitos autorais fizeram com que o domínio público sobre a obra do criador da psicanálise recaísse não mais cinquenta anos após seu falecimento, mas somente após setenta anos decorridos. No caso específico de Freud, isso se deu a partir de 1o de janeiro de 2010, primeiro dia do ano subsequente ao 70o aniversário de sua morte em 23 de setembro de 1939 (Lei 9.611/98). Foi este afinal o ensejo para o surgimento dos primeiros volumes de obras de Freud traduzidas diretamente do alemão há dois anos pela Companhia das Letras, de São Paulo, a cargo de Paulo César de Souza, e pela L&PM Porto Alegre, a cargo de Renato Zwick. Na verdade, em 2004, às vésperas de expirarem os direitos autorais, a então detentora Editora Imago, do Rio de Janeiro, iniciara um criterioso projeto de tradução a cargo de Luiz Alberto Hanns. Eis, portanto, o contexto em que surge também ao leitor brasileiro a primeira publicação em livro das traduções desta importante pioneira.

No recém-lançado belíssimo trabalho editorial realizado pela Cosac Naify, vemos uma ótima relação entre o trabalho gráfico e a funcionalidade do paratexto apresentando-se a uma concisa, mas paradigmática, obra de um dos mais importantes pensadores da cultura ocidental. O texto introdutório de Maria Rita Kehl, "Melancolia e criação", contextualiza historicamente as ideias de Freud, resgatando uma história das "teorias dos humores" até o paradigma atual da "clínica das depressões", mas parece concentrar sua principal contribuição na frase de abertura: "O mérito de um texto bem escrito é, sobretudo, ético: liberta o leitor" (Kehl, 2011, p. 9). Eis, afinal, o constante desafio ao tradutor.

Na sequência temos o privilégio de contar com o texto "Marilene Carone - tradutora de Freud", de Modesto Carone (2011)1 , que escreve um importante ensaio testemunhal de quem pôde intimamente acompanhar o desenvolvimento do trabalho desta competente tradutora. Vale aqui destacar o fato de que Marilene era antes de tudo psicanalista, e que vivenciava o contato com a obra de Freud a partir de sua prática clínica. No entanto, em uma época em que a psicanálise se via muito dominada pela esterilidade de um discurso técnico-cientificista, Modesto Carone nos lembra que Marilene era, como o próprio Freud, uma pessoa fortemente interpelada pela cultu-ra, pela erudição, aliando "experiência clínica a uma educação literária consistente" (Modesto Carone, 2011, p. 35). Somente assim pôde-se aliar seu "rigor conceitual" a um português "elegante, fluente e preciso" (p. 35). Fechando a edição, o leitor conta ainda com o belo texto "Uma ferida a sangrar-lhe a alma", de Urania Tourinho Peres (2011), que enriquece o debate psicanalítico com grandes mestres da escrita em relação às temáticas do texto freudiano em questão.

Mas certamente que, para além do instigante paratexto, o que mais conta na edição é a possibilidade de contarmos com a "libertadora" tradução de Carone. Temos, aliás, com este importante fato de tradução pela primeira vez um texto de Freud em quatro versões oficialmente publicadas em língua portuguesa, o que em muito enriquece a discussão sobre os usos freudianos dos recursos da língua alemã em seu estilo e vocabulário, e suas possíveis transposições à língua portuguesa. A própria Carone faz questão de apontar em um apanhado de notas de tradução, "Discussão de algumas divergências" (Marilene Carone, 2011, p. 90-97), as opções alternativas que faz em relação à já existente tradução coordenada por Jayme Salomão. Em paralelo a esta importante contraposição, desde a tradução por ela realizada há mais de vinte anos, foram recentemente publicadas as versões de Luiz Alberto Hanns e a de Paulo César de Souza, nomes que polarizam os estudos e debates sobre a escrita de Freud e suas traduções desde o desaparecimento de Carone.

Em se tratando de um importante artigo de metapsicologia de Freud, valeria observarmos um quadro comparativo das soluções ali apontadas para alguns dos mais importantes conceitos/ vocábulos de controversa tradução:

 


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No tocante à terminologia, a posição de Carone expressa no terceiro dos acima referidos artigos era a de levar em consideração a tradição quando possível e necessário, corrigindo distorções. Em sua opinião, o controverso recurso ao latim feito pelos tradutores ingleses, vertendo os pronomes Ich e Es por Ego e Id, era um caso de distorção não mais remediável, dada a grande influência da tradição. Ao mesmo tempo, apontava para a necessidade de uma correção na indução ao erro expressa na versão de Trieb por instinto, preferindo a tradição alternativa, de influência francesa, optando porpulsão (Marilene Carone, 1987/1989).

Diferentemente, portanto, da tônica recorrente quanto às opções terminológicas ao vocabulário metapsicológico, as críticas da tradutora na comparação de suas opções com as da Standard Edition e, sobretudo, com as da Standard Brasileira recaem sobre passagens baseadas em uma leitura equivocada ou que poderia conduzir o leitor ao erro. Um caso emblemático é o de quando Freud utiliza indem er es beschimpft (1917/1999) e é bem traduzido para o inglês por abusing it. Na tradução indireta obteve-se o falso cognato abusando, corrigido por Marilene por insultando-o. Exemplos semelhantes são coletados nos referidos artigos de 1985 e 1987.

Entretanto, se são numerosos os casos de um espelhamento inadequado em cognatos latinos, curiosamente são identificadas alterações quando os termos têm função conceitual no vocabulário freudiano do texto-fonte alemão. É o caso de Kompromiss, vertido para o inglês por e deste ao português por transigência, sendo corrigido por operação de compromisso na tradução agora publicada. Lembremos aqui da importância conceitual de Kompromissbildung (formação de compromisso) em Freud. Caso semelhante é o de regredieren, adequadamente vertido por regress em inglês, e deste transformado em retroceder na versão indireta, ignorando-se com isso o valor da Regression como conceito freudiano na teoria da libido. Marilene aqui propõe o uso de regredir.

Mas certamente o caso mais emblemático da necessidade de uma tradução que alie o rigor conceitual à sagacidade nos usos da linguagem vem de um exemplo pinçado como paradigmático pelos tradutores de Freud à língua francesa (Bourguignon, Cotet & Laplanche, 1989, p. 18). Trata-se da passagem em que Freud joga com o "saber da língua" na comparação das queixas-lamentos (Klagen) do paciente com as queixas-reclamação visando reparo ou punição (Anklagen). Lembremos que em alemão Angeklagte, literamente "queixado", seria o termo para se referir ao acusado ou réu em um processo.

Para a construção ihre Klagen sind Anklagen (Freud, 1917/1999, p. 434), optou-se por their complaints are really plaints na Standard Edition (apud Marilene Carone, 2011, p.92) e por leur plaintes sont des planites portées contre na edição francesa da PUF (Freud apud Bourguignon et al., 1989). A equivocada solução da Standard Brasileira era suas queixas são "queixumes" (Freud, 1917/1996, p. 254). Hanns, em sua versão direta, optou por seus lamentos e queixas [Klagen] são acusações [Anklagen] (Freud, 1917/2006, p. 108). Já Paulo César de Souza, interlocutor de Carone, no referido caso utiliza a solução de sua colega e a credita em nota (Freud, 2010, p. 180). Eis a solução da tradutora "para eles queixar-se é dar queixa". Como coloca André Carone, afinal, se na busca pela fidelidade o lema adotado pela tradução francesa foi "jamais perder a pista do significante", o de Marilene parece ter sido "afastar-se da letra para aproximar-se da fala" (André Carone, 2005, p. 452). Deixemos, pois, que Freud, mestre da escuta, se faça escutar em língua portuguesa na rigorosa fluência dessa competente "intérprete".

 

Referências

Bettelheim, B. (1983). Freud and mans soul. Nova Iorque: Knopf.         [ Links ]

Bourguignon, A., Cotet, P. & Laplanche, J. (1989). Traduire Freud. Paris: PUF.         [ Links ]

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Correspondência:
Pedro Heliodoro Tavares
Departamento de Letras Modernas (DLM-FFLCH-USP)
Av. Prof. Luciano Gualberto, 403
05508-900 São Paulo, SP
pht@usp.br

 

 

1 Jornalista, tradutor e escritor agraciado com o Prêmio Jabuti de 1999 na categoria romance. Seu trabalho de tradutor que mais lhe rendeu reconhecimento foi certamente o das obras de Franz Kafka para a Cia. das Letras. Modesto Carone foi professor de Literatura na Universidade de Viena no período em que Marilene frequentava suas aulas na faculdade de Medicina. Para muito além da relação conjugal, destacamos aqui a importante interlocução entre estes intelectuais brasileiros que gozaram de um íntimo contato com a língua e a cultura da Viena de Freud.

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