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Revista Brasileira de Psicanálise

Print version ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.47 no.1 São Paulo Jan./Mar. 2013

 

DIÁLOGO

 

1Entrevistacom Jaime Ginzburg2

 

 

Linguagem e experiência na questão da representação

Com a palavra, Jaime Ginzburg:

Sou professor de literatura há vinte anos e estou na USP há dez. O problema da representação - relação entre linguagem e experiência - teve prioridade em minha trajetória. Ao longo desses anos, confrontei-me com as limitações que a linguagem impõe à representação de certas condições da experiência, especialmente as de violência, catástrofe, guerra e regimes autoritários.

 

Limites do representável

A meu ver, a produção cultural elabora de modo variado e problemático a questão de saber o que é representável e o que não é. Em que medida as situações de destruição coletiva e individual podem se converter em linguagem de modo comunicável e apreensível por todos? Essa questão assumiu, para mim, várias formas ao longo dos anos. Em determinado período concentrei-me nas relações entre a ditadura militar e a produção cultural. Em outro momento a ênfase esteve em como as humanidades - especialmente os estudos de arte e literatura - discutem conceitualmente o impacto do trauma e da violência. Interessei-me também por problemas ligados à melancolia e à morte, e à possibilidade de configurar as situações de perda e a imagem da "fala dos mortos" como mediação para pensar as limitações das relações entre linguagem e experiência. Sim, porque temos em literatura, no cinema e nas artes plásticas, uma série de encenações da figura de um morto que fala sobre o passado -por exemplo, em "Memórias póstumas de Brás Cubas" de Machado de Assis, e em outras que esboçam situações muito próximas à morte, mas ainda em vida. Nesses casos observa-se uma tensão entre a necessidade de atribuir sentido à existência e a percepção de que isso já não é mais possível. É como se tentar ouvir o que o morto tem a dizer fosse o modo mais extremo de confrontar as situações-limite. Em situações de catástrofe e de guerra, temos os testemunhos dos sobreviventes, mas precisamos formular também o que os mortos expri-miriam se pudessem falar. Escritores e cineastas têm feito essa pergunta e elaborado formas para isso. Marçal Aquino, escritor atual, escreveu Inventário, obra em que o narrador considera a possibilidade de se ter suicidado e analisa o que teria acontecido nas situações de sua vida se o tivesse feito. Não diz com clareza se cometeu suicídio ou não, mas o fato de formular essa hipótese já é suficiente para que mude a perspectiva relativa a todos os seus valores.

 

Linguagem e narrativa

A questão da narrativa implica saber se é possível atribuir sentido à experiência, atribuir ao passado uma imagem totalizante capaz de fazer sentido perante os outros. Em termos de literatura e ficção, assumimos, em princípio, que se o personagem não tem oportunidade de narrar o que lhe acontece, é como se aquilo não tivesse acontecido. É só por meio da mediação da linguagem que o outro reconhecerá que aquela experiência faz parte do sujeito. Trata-se, então, de verificar se os recursos de linguagem de que o sujeito dispõe para falar do que lhe aconteceu conseguem ser compreensíveis para quem o escuta. Quem trabalha com tradição oral e testemunhos embate-se constantemente com a questão de saber se o que é dito na situação oral é entendido pelo outro de acordo com a expectativa de quem fala. Como a linguagem é polissêmica e permite o mal-entendido, há sempre o risco de que, ao elaborarmos uma história para outra pessoa, esta a interprete segundo suas próprias projeções e referências, e não seja capaz - não de se colocar no lugar de quem fala, trata-se de algo ainda mais primário - de entender a função potencial da interação e a relevância disso para o conhecimento recíproco.

Há testemunhos nos quais surge o problema da dor. Como diz Wittengstein, a linguagem tem condições de lidar com as situações cotidianas: há inúmeras palavras para distinguir diversos tipos de fruta, por exemplo. Mas no campo da dor - e não me refiro ao vocabulário da medicina, profissional - dispomos de palavras restritas. Quem sente dor física diz "estar com dor"; quem está com saudades de alguém diz a mesma coisa; e dizem a mesma coisa os que têm algum distúrbio emocional. Segundo Wittengstein, se eu usar a palavra "dor" para contar minha história, é improvável que o outro reconheça semanticamente o que essa palavra comporta. Em razão dessa margem constante de mal-entendido, a narrativa acaba sendo menos capaz do que se espera de estabelecer com clareza a imagem do sujeito.

Nos casos de sobreviventes de catástrofes e torturas, isso é muito evidente: a linguagem de quem fala não consegue elaborar uma narrativa que seja reconhecida pelos outros como narrativa dotada de sentido, ou que corresponda ao tipo de experiência sobre a qual nos exprimimos com o vocabulário cotidiano.

 

Linguagem e memória

A questão da memória está ligada à tentativa de totalização da autoimagem. Quando alguém pergunta "onde você nasceu? como foi sua vida? como chegou até aqui?", a tendência habitual - ainda no âmbito dos textos com que trabalho - é tentar organizar ao máximo a narrativa para que pareça ser dotada de sentido. Segundo Benedito Nunes, ao fazer isso, usa-se o critério primário da causalidade entre os acontecimentos. Como se a vida fosse um encadeamento em que tudo está ligado a tudo; tudo é necessário e funcional para que se tenha chegado ao momento presente. Mas no campo da catástrofe isso não funciona; a ideia de causa é problemática.

De que modo alguém que sobreviveu a Auschwitz pode estabelecer causa e efeito para o que aconteceu? A qual causa seria razoável atribuir o fato de ter vivido aquela situação -como no caso de Primo Levi, por exemplo? Nos casos de tortura, como se poderia estabelecer uma causa moral e legítima para ter passado pela tortura corporal?

Adoto muitas vezes o trabalho do psicanalista uruguaio Marcelo Viñar, que explica de modo convincente a conexão entre corpo e linguagem. Ele explica que a dor intensa experimentada na tortura cria uma memória corporal associada às imagens do passado. Isso compromete a possibilidade de falar de modo fluente deste mesmo passado, pois reencontrar as imagens do passado seria como reencontrar também a dor física experimentada. Há mecanismos de proteção que impedem essa volta.

 

Narrativa e memória: situações de catástrofe

Quanto à narrativa e à memória, a questão na qual mais me concentrei foi na relação entre ficção e não ficção em situações de catástrofe. Alguns escritores falam sobre situações de horror - como Graciliano Ramos, em Memórias do cárcere, ou o Diário, de Guimarães Rosa, do seu período em Hamburgo durante a Segunda Guerra Mundial.

Temos a expectativa de que, por serem escritores, consigam dizer algo completo e harmônico sobre o que viveram, de modo que possamos visualizar bem o que aconteceu. Eles, porém, caem na fragmentação formal, na fragmentação temporal, as partes da narrativa não se encaixam entre si. As lacunas passam a ser muito eloquentes.

A dificuldade de falar e os silenciamentos são muito expressivos. De fato, em situações de catástrofe, as coisas não ocorrem como no cotidiano. No cotidiano, tentamos formar uma imagem totalizante do passado que faça sentido para quem ouve. Na catástrofe, a tensão em relação ao passado é tão grande que naufraga no colapso da linguagem, e parece que nenhum modo de falar, nenhum fraseado é suficientemente transparente para se referir ao que aconteceu.

 

Linguagem da memória brasileira

O Brasil tem grande dificuldade de lidar com a memória coletiva. Temos uma política do esquecimento deliberadamente elaborada pelas instituições. É algo que precisa ser ainda investigado, mas há uma escolha canônica das leituras dentro da escola e da universidade; a mídia privilegia o discurso conservador, os políticos reforçam hábitos autoritários. O Brasil tem dificuldade de lidar com seu próprio passado doloroso. A sociedade brasileira não tem o grau de consciência necessário, em termos de debate público, para entender o impacto do passado sobre o presente. A dificuldade em lidar com as representações - ou a falta delas -do que aconteceu de pior no passado do país cria impactos de fantasmagoria: são imagens do horror do passado que reaparecem como se fossem parte do presente, criando um efeito perturbador. Por exemplo, escritores contemporâneos fazem referências repentinas à escravidão, como se tivessem tido uma intuição que nem sequer será desenvolvida. Ou referências à questão indígena, ao Estado Novo, aos campos de concentração no Brasil. Essas questões dificilmente são abordadas de modo direto e detalhado. Como são assuntos mal resolvidos nas discussões do espaço público, elas aparecem como se fossem insights eventuais sobre algo que não foi explicado, e que precisa ser lembrado, apesar de não se saber como. O cinema de Sergio Bianchi é o exemplo mais conhecido da fantasmagoria narrativa.

Estou convencido de que há uma política do esquecimento no Brasil, e de que há várias instituições voltadas para isso, conscientemente ou não. A tendência é reforçar o esquecimento. Conversando hoje com pessoas que estão atentas a isso há muito tempo, elas afirmam não só que isso não foi resolvido, como está se agravando junto às lideranças universitárias, por exemplo, nos periódicos e nos eventos: os assuntos ligados aos problemas do passado são deixados de lado em favor de pautas de tipo afirmativo ou baseadas em ilusões consolidadas.

 

Linguagem e espaço público

Historicamente é difícil estabelecer os critérios que definem uma civilização como bem-sucedida. O pacifismo é, para mim, um desses critérios. Há pacifismo quando não há elementos autodestrutivos contínuos. Mas há poucos períodos longos, em qualquer continente, em que o pacifismo predomina sobre a ação violenta como constitutiva das relações institucionais. Quando predomina o pacifismo, em algum grau, este é em geral salvaguardado por um princípio de soberania, sustentado militarmente ou por articulações com países vizinhos. Significa que é muito difícil imaginar uma sociedade cuja cultura seja espontaneamente pacifista e autoafirmativa, na qual os conflitos estejam voltados à conciliação, e na qual os discursos levem a sínteses sobre o bem comum e o modelo civilizatório.

Há um debate permanente que pode estar estabelecido, mais ou menos bem, no espaço público. Esse é um indicador de uma sociedade razoavelmente autossustentada e autoprotegida. A ideia de que a cultura possa sustentar em longo prazo uma posição afirmativa para a sociedade depende necessariamente do senso de interesses comuns e dos valores comuns partilhados em favor da satisfação coletiva.

Se tomarmos como referência o Brasil dos anos 30 para cá, temos dois períodos oficiais de autoritarismo - Estado Novo e Ditadura Militar - e períodos considerados democráticos. Mas nas práticas sociais - Paulo Sérgio Pinheiro escreve sobre isso - temos a continuidade dos mesmos princípios da ditadura nos períodos considerados democráticos. O fato de termos hoje torturas em delegacias, e mesmo o fato de dizer que "a ditadura acabou", quando na verdade subsistem as mesmas práticas, não nos permite dizer que a situação atual é uma superação da ditadura. O que temos são graus diferentes de qualificação do espaço público, que variam ao longo da história. Isso depende muito da educação, da universidade e da escola.

A situação atual discute as perspectivas de futuro a partir da iniciativa de pequenos grupos, pequenas formações sociais que querem mais visibilidade, e a partir de iniciativas individuais. Mas não temos, nos partidos políticos, representações da sociedade capazes de organizar o espaço público.

A cultura no Brasil está em uma arena permanente. Isso não é bom nem ruim; é o jeito de funcionar. Quando temos a impressão de que estamos nos aproximando de uma espécie de caos, podemos pensar que esta é uma condição em que é possível estabelecer discursos de diversidade e pensar, assim, a transitoriedade dos valores como algo positivo. Por mais que tenhamos a imagem pessimista de que a sociedade parece fragmentar-se e diluir-se em termos de valores, a possibilidade da fala está dada; ela não está removida. Quanto mais houver dúvidas sobre a possibilidade de ter uma linguagem comum pelo bem comum, mais razão há para usar a linguagem, cada vez mais, no espaço público. Essa é a minha maneira de não enlouquecer.

 

Linguagem, memória e repetição

Isso está relacionado a Theodor Adorno. A questão da repetição das catástrofes do passado foi elaborada por ele como um problema pedagógico: "É preciso que todos os processos pedagógicos levem a não repetir as catástrofes da Segunda Guerra Mundial e qualquer outro princípio pedagógico deve se subordinar a este primeiro". Segundo ele, tínhamos já muitos séculos de civilização, já cultivávamos gênios do pensamento na tradição intelectual, tínhamos obras primas consagradas, e nada disso impediu que a catástrofe acontecesse. Afinal, que produção de ideias é essa que tem uma tradição capaz de moldar a civilização, mas que leva a uma autodestruição brutal como a da Segunda Guerra? Ele critica o pensamento no qual a ética não está inscrita, critica a produção de ideias que não se preocupa com a sobrevivência da humanidade. Quando não se consegue lidar com o passado - pois os aspectos de violência, genocídio e catástrofe são recalcados, e a sociedade age com uma imagem ilusória ou de superação de todas as dificuldades por meio da economia, do capital ou pela necessidade de formar um espaço público racionalizado -, deixa-se de lado a discussão do que de fato incomoda a sociedade. Adorno acredita que isso irá evidentemente irromper mais tarde. E considera espantoso que não apareçam outros campos de concentração, levando em conta o que há de terrível, agressivo e conservador na própria educação - falo da Alemanha, mas é um problema geral.

Seguindo esse raciocínio, se eventos como os de 11 de setembro não forem compreendidos da maneira necessária dentro do espaço público, é previsível que reapareçam em outras situações. Nesse caso específico, temos hoje uma violência por parte do Estado em relação ao estrangeiro que é sistemática e quantitativamente assustadora, além de ser planejada, deliberada. Esse é um caso evidente de que a ideia de segurança e proteção está necessariamente articulada com a ideia da produção de mais violência, como forma de terror exemplar.

O caso da Europa Oriental é muito difícil na literatura. Na produção literária e cinematográfica deste período, o que mais se vê é o personagem que não consegue falar. É o silen-ciamento. Minha opinião quanto ao aparecimento de fantasmagorias é que podemos esperar que haja mecanismos de canalização. No Brasil, por exemplo, podemos observar, em algumas situações da vida social cotidiana, problemas anteriores. Um exemplo é a situação, em São Paulo, dos moradores de rua, nos últimos dois anos. Observamos vários indicadores de que há uma política de genocídio, de higiene. Nem a imprensa nem o governo dão as devidas explicações, mas existem os movimentos sociais que vão pedir satisfação e esclarecimentos. Nessa situação, podemos identificar vários problemas que foram recalcados do ponto de vista coletivo, e reafloram agora em uma espécie de mal-estar que não exige expressão discursiva. Como sociedade, não sabemos como falar disso; o espaço público não dá recursos de linguagem nem condições de discussão para que se possa dizer claramente "isso é um absurdo", "isso já aconteceu historicamente em São Paulo"; e volta a acontecer, como se se apostasse na barbárie como constituição de sociedade.

 

Linguagem e medo

É preciso refletir sobre a relação entre linguagem e medo. Do ponto de vista da história política, quem é perseguido tem, em princípio, medo de se manifestar. No caso de perseguições religiosas, políticas ou xenófobas, nota-se que, no âmbito da produção cultural, é difícil não só encontrar condição de interlocução no espaço público, tanto por quem persegue quanto por quem é perseguido - a questão não é sequer colocada -, mas mais ainda, o discurso oficial se apresenta com intransigência de escuta. Na ditadura era muito comum que todo o palavreado de quem era da resistência fosse considerado como fala comunista. Essa interpretação, essa redução, estava muito equivocada, mas era conveniente para o Estado e se justificava perante a necessidade de homogeneidade das falas consideradas legítimas.

No caso da Segunda Guerra Mundial, Guimarães Rosa, em seu Diário, sente-se duplamente vulnerável, pois sabe que o avanço do nazismo pode destruí-lo - ele trabalha como funcionário do consulado brasileiro em Hamburgo - e, além disso, a Inglaterra está entrando em Hamburgo e bombardeando a cidade, e ele sabe que as bombas podem matá-lo. Uma bomba, de fato, cai no consulado brasileiro e outra ao lado da casa dele. Tudo o que ele descreve depois disso é em parataxe, uma sintaxe coordenativa muito fragmentada. Ele não consegue mais elaborar uma reflexão. Em uma parte do diário há só a palavra "Alarme", escrita diversas vezes. Essa é uma configuração exemplar do medo. A linguagem está calcada na tensão e não na comunicação. A vida dele esteve em risco por muito tempo. Ele não queria deixar de escrever, mas não tinha como dizer o que pensava (por clareza) aos nazistas ou aos ingleses. De certo modo, estava falando para si mesmo. Era a fala da dor, era a fala da tensão da vulnerabilidade.

Do ponto de vista do cinema e da literatura, o medo é uma situação-limite para a linguagem. Com o medo, a função referencial entra em crise. Essa função é a ideia de que as palavras devem remeter a um fato ou objeto externo, de modo que o significado possa ser verificado por quem ouve. A situação de medo produz linguagem expressiva, linguagem de valor interno. A eficácia dessa linguagem é dar ao sujeito um espaço no qual ele se sinta autorreconhecido e autoprotegido. Isso não tem nada a ver com comunicar-se com o outro; é proteger-se do colapso total.

Temos atualmente Beatriz Bracher, escritora que trabalha com a violência contra crianças nas metrópoles brasileiras. O medo é o constitutivo de suas narrativas. O que aparece nas narrativas é que cada segundo que virá pode trazer a morte. Ela tenta elaborar, mas é uma linguagem que não encontra sintaxe coordenativa nem encadeamento.

 

Medo e participação social ou a antropologia do medo

Outro ponto que me interessa em relação ao medo é a antropologia do medo, dentro do conceito do rito de terror. Estou tentando estudar, atualmente, elementos da cultura brasileira com base no conceito de ritual, principalmente nos ritos de iniciação. Em várias situações da cultura brasileira - institucionais, privadas, familiares, religiosas - há ritos de iniciação, mais ou menos conhecidos publicamente. Vários deles são ritos de terror. Isso significa que é necessária alguma mutilação ou castração ou renúncia para poder fazer parte do grupo. Até onde consigo examinar, a ideia é que o medo seja constitutivo da participação social. É necessário que o sujeito tema o grupo do qual vai participar para merecer fazer parte dele. Um rito de terror pressupõe que o sujeito assuma que, antes de entrar para o grupo, estava morto; o que o grupo propõe é uma ressurreição, o estabelecimento da identidade. A possibilidade de participar de um grupo já instituído envolve castração, impõe uma espécie de humilhação pública.

No caso dos moradores de rua, eles só terão acesso à cidadania se deixarem de ser moradores de rua, ou seja, se deixarem de ser o que são, e passarem a assumir uma imagem de cidadania externa a eles.

Os trotes aos calouros universitários é um caso evidente. Trotes agressivos são ritos de terror para a inclusão no grupo. A ideia é que se você não morrer simbolicamente, você não pode viver. E por mais que pareça que a lei deva intervir no espaço público, quem faz esse tipo de trote está dentro dessa expectativa, não fora.

Os ritos fazem parte de valores, e valores podem ser questionados. A própria cultura pode dinamizar seus ritos de maneiras diferentes. Já se fizeram escolhas, na atualidade, contra a violência, no Brasil e fora. Isso merece ser discutido. Por que acentuar situações de medo como condição para a participação social?

 

Pacto social e cultura sacrificial: totem e tabu em crise?

Isso traz outro tópico: o sacrifício. "Algo precisa ser destruído para que algo seja constituído". Dentro da produção cultural atual, há um reforço das imagens sacrificiais. Isso é muito constante no cinema da Europa Oriental e da Ásia. Trata-se da ideia de que é preciso provar que se é capaz de suportar a exposição ao terror e ultrapassar as dificuldades para poder constituir-se como humano. Constituir-se como humano já não seria mais possível sem a exposição do corpo à dor, e sem a exposição do pensamento à rejeição. O mito de Abraão e Isaac tornou-se um paradigma narrativo para uma série de elementos da produção cultural.

É a ideia de que os pais devem expor os filhos a situações de risco e sofrimento -escola e outras atividades - em função de uma expectativa de transcendência. Há também questões ligadas à política e ao militarismo: é a ideia de que os jovens devem ser expostos ao risco e à morte, serem passíveis de sacrifício, em nome de um bem maior, que seria a segurança de uma nação.

Essa cultura sacrificial está ganhando força e complexidade e está relacionada ao problema da fragmentação: os pactos são cada vez mais difíceis de sustentar; as leis se tornam cada vez mais artificiosas e, portanto, mais severas. É como se tivéssemos que provar constantemente que somos dignos de sermos humanos, a partir da disposição ao sacrifício em várias esferas.

Um paradigma disso encontra-se na literatura do escritor Roberto Bolaño. Ele descreve, em um conto, crianças prostituídas de seis anos em um bordel. Ele alude ao fato de que as crianças vão parar no bordel porque dentro da cultura em que vivem foram rejeitadas pela família e não têm ninguém que as ampare. A cultura em que vivem é de alta religiosidade, e a comunidade é muito integrada. Nesse exemplo encontra-se a possibilidade do sacrifício mais extremo, que permite, a quem o observa, compreender seus limites e delimitações como humano.

Como as instituições são frágeis, como as leis não são consideradas justas, como os pactos sociais não são sólidos, a visão do sacrifício garante uma última possibilidade de dignidade e integridade. Assim, os sobreviventes dos campos de concentração constituem a prova de que o humano deve continuar. Essas são as ideias que se debatem atualmente. O sobrevivente do campo de concentração é aquele de quem tudo foi tirado. Como Jó. O fato de que ele ainda queira continuar vivendo é sinal de que nenhum de nós está em posição de rejeitar pelo menos essa possibilidade.

 

Psicanálise e literatura: representar o não representável

Quanto à alternativa que a literatura pode oferecer, há estudos literários que pensam a narrativa como cura. Walter Benjamin escreveu sobre isso. Há uma tendência a pensar que o sofrimento se baseie em uma incompreensão: sofremos porque não entendemos o que acontece conosco, física e emocionalmente.

No momento em que aquilo ganha nome e ganha uma perspectiva temporal de mudança no futuro, sofre-se menos ou deixa-se de sofrer. A função da narrativa e do relato do paciente poderia ser a de passar do estranho ao familiar, do que não é verbal ao verbal, para ter, pelo menos, momentos de conforto ao entender o que está acontecendo.

Consigo ver, sobretudo no cinema, que o ato de contar a própria história tornou-se problemático, principalmente a partir da perspectiva do trauma: quem conta uma história de muito sofrimento não tem clareza sobre o interlocutor, sobre a finalidade do que conta, nem sobre a linguagem adequada. A fala abre a possibilidade do vazio, pode cair no nada. Esse é um fator de angústia: a ideia de que qualquer esforço para traspor a experiência em linguagem possa falhar porque não há escuta preparada para o que é dito. O caso das testemunhas de catástrofe é esse. Por isso me interessa saber como a psicanálise lida com a superação de traumas. Quem não esteve em um campo de concentração não entende a potência referencial do que Primo Levi escreve. Qualquer abstração, qualquer imagem, é ínfima diante do impacto real.

Fiz um estudo de depoimentos filmados em vídeo sobre perseguições violentas. É muito comum que haja cortes estranhos, pausas em lugares inesperados, tensão por lembranças involuntárias que surgem sem que o sujeito previsse. Isso deve acontecer na clínica também. A fala dos sobreviventes de genocídio é uma fala difícil. O que é não dito tem um poder semântico imenso. É preciso saber como interpretar aquilo, para que a própria fala não se torne uma espécie de confinamento.

O professor Roberto Vecchi levanta a hipótese muito interessante da "caustrosofia", a partir da leitura de Gramsci e outros intelectuais que estiveram confinados. Ele acredita que existe linguagem própria para quem está se sentindo inteiramente preso, tanto em uma prisão ou em um campo de concentração, quanto na dificuldade de inserção no espaço público. Segundo ele, este é um discurso próprio, com raízes próprias. Ele supõe que haja desconfiança continuada a respeito da função referencial. Há muitos casos em que o sobrevivente vive em uma espécie de prisão interna porque a pressão da dor e a pressão do passado estão acima da capacidade de fluência da linguagem do presente.

 

Linguagem e tortura

A diferença é a empatia (nas narrativas de sobreviventes de violência face a face e de catástrofes impessoais). Trata-se de saber se o processo de tortura envolve ou não empatia. Pode acontecer que a linguagem da vítima de tortura apresente um deslocamento. Por exemplo, a vítima, ao falar sobre o que lhe aconteceu, refere-se ao carrasco. O texto do Dorfman, A morte e a donzela, mostra isso. O sujeito é cindido de tal modo que não consegue delimitar o espaço corporal de autorreconhecimento, a menos que faça uma fusão com o que está à sua volta, o que inclui o carrasco.

Há dez anos fiz um trabalho que comparava a diferença narrativa entre escritores que falaram da tortura aderindo ao ponto de vista da vítima com escritores que falaram da tortura aderindo ao ponto de vista institucional. São absolutamente diferentes. A linguagem de Renato Tapajós, que aderiu à perspectiva da vítima, entra em tensão interna e em crise da função referencial. Torna-se uma linguagem de produção expressiva, no sentido de "ausência de lugar", de não pertencer ao espaço público da linguagem.

Embora a sobrevivência à tortura seja a manutenção da vida, ela implica também - e aqui está novamente a questão da memória - o fato de que, se o sobrevivente tentar recuperar o passado, que define o modo em que ele chegou ao presente, ele estará sujeito a confrontar-se repetidamente com a dor vivida.

A tensão entre a autoproteção contra a vivência repetida da dor do passado e a possibilidade de superá-la e seguir em frente é um impasse sem solução. Isso está em Adorno também. Segundo a sua dialética negativa, pensamos, tradicionalmente, que forças em conflito podem chegar a uma conciliação - aceitação comum por parte de duas forças antagônicas, duas sociedades, ou dois grupos ou dois modos de pensar - mas isso não acontece. Forças em confronto talvez nunca cheguem a uma reconciliação, e a capacidade de produzir confrontos e impasses é potencialmente infinita. As vítimas de tortura estão em um lugar de destaque porque suas vozes estão muito ligadas a esse senso de impasse. Ou seja, não dá para superar o que aconteceu; é preciso permanecer naquele mesmo lugar. O confronto jamais abandona o sujeito.

Não há possibilidade de resgate. É por isso que me interessa saber como a psicanálise lida com a superação de traumas, principalmente traumas coletivos, pois a produção cultural, o cinema e a literatura mostram que é um caminho sem saída. Na perspectiva de Adorno, isso consiste em uma constituição agônica do sujeito.

 

Linguagem e empatia à vulnerabilidade: lugar da psicanálise?

O problema da empatia é fundamental para a narrativa, pois estabelece a função do interlocutor.

Abro um parêntese: costumo dizer a meus alunos que tenho observado, ao longo dos anos, que a maioria deles escreve para o nada e para ninguém. São textos para deixar na gaveta, para ganhar nota, são protocolares, sem nenhuma expectativa de empatia. Isso inclui as teses dos alunos de doutorado. É como se não fizesse a menor diferença ter um parágrafo a mais ou a menos, uma frase a mais, um conceito ao invés de outro; é como se as escolhas não tivessem relevância alguma. Diante disso, sugiro que assumam a perspectiva contrária, ou seja, potencialmente alguém lerá, sim, em algum momento, com alguma consequência. A maioria não acredita em mim, mas isso coloca uma questão de fundo para eles: eles precisam encontrar alguém a quem falar. A escrita do isolamento faz mal a eles, e eles devem resolver esse problema dentro deles.

Abri esse parêntese, pois acho que há uma dificuldade em relação à empatia. O que ocorre no discurso autoritário é diferente. Li os intelectuais autoritários brasileiros, um pior do que o outro - Oliveira Vianna, Plínio Salgado, Gustavo Barroso, os projetos excludentes do Brasil. São textos que esperam empatia no sentido de afirmação máxima: "Pense como eu, pois assim você se sentirá o homem brasileiro com h maiúsculo, que ocupará o futuro". Já nos testemunhos das vítimas de tortura e catástrofe, quando há empatia, ela se dá em larga medida pela vulnerabilidade, pelo desamparo, pela falta de recursos e de linguagem para lidar com a situação.

Nem todos estão dispostos a cair nesse espaço de reconhecimento do desamparo de modo frontal. É frequente que, ao trabalhar com Renato Tapajós, quando lemos passagens dos textos, muitos alunos saiam da sala, pois não aguentam as imagens. O mesmo acontece quando passo filme de Pasolini com cenas de tortura. Eles vão embora e não voltam. Mas não reclamam por eu ter passado o filme. O que acontece é que não contavam com a exposição à vulnerabilidade, não contavam com a exigência de empatia. Isso se tornou um objetivo de educação para mim, o objetivo de "importar-se", o objetivo de que aquilo faça alguma diferença. Isso é dificílimo. Minha premissa é que uma das condições para o que se chama de pacto social, estabelecimento de interesses comuns, é o reconhecimento da vulnerabilidade, das fragilidades e limitações.

Em Grande sertão veredas e A hora da estrela, isso fica muito claro. A condição para que as coisas funcionem é o reconhecimento da vulnerabilidade pelas partes envolvidas. É ali que as coisas se esclarecem. Isso supõe que se abra mão de qualquer síntese conciliatória das forças em conflito. O caso do escultor brasileiro Cildo Meirelles é impressionante. Ele criou a escultura "Espelho cego". Cada pessoa que se olha no espelho vê as cinzas do cadáver. Isto é exposição máxima à vulnerabilidade.

A Revista Brasileira de Psicanálise agradece o Professor Jaime Ginzburg pela instigante entrevista.

 

 

1 Entrevista realizada em São Paulo, no dia 18 de fevereiro de 2013, com a participação de Ana Maria Brias Silveira, Bernardo Tanis, Raya Angel Zonana, Rogerio Nogueira Coelho de Souza, Sonia Soicher Terepins e Thais Blucher.
2 Professor associado de Literatura Brasileira na Universidade de São Paulo USP

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