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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.47 no.1 São Paulo jan./mar. 2013

 

ARTIGOS TEMÁTICOS: MEDO

 

O medo da perda do amor

 

The fear of loss of love

 

El miedo a la pérdida del amor

 

 

Ignacio Gerber

Psicanalista, Membro efetivo da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo SBPSP

Correspondência

 

 


RESUMO

Este artigo propõe que o amor constitui o afeto primordial do ser humano, o qual já nasce com uma preconcepção filogenética de acolhimento por parte de sua espécie, a humanidade. As falhas de acolhimento provocam o medo da perda do amor, e o medo conduz ao ódio e à violência.

Palavras-chave: amor; medo; ódio; violência; inconsciente; lógica emocional contraditória.


ABSTRACT

This article proposes that love constitutes the primary affection in human beings, who are already born with a phylogenetic preconception to be cared for by its species, mankind. The failures in being cared for provoke fear of loss of love and fear leads to hate and violence.

Keywords: love; fear; hate; violence; unconscious; contradictory emotional logic.


RESUMEN

Este artículo propone que el amor es el afecto primordial del ser humano, el cual ya nace con una preconcepción filogenética de acogimiento por parte de su especie, la humanidad. Las fallas en el proceso de acogida producen el miedo a la pérdida del amor, y el miedo conduce al odio y a la violencia.

Palabras clave: amor; miedo; odio; violencia; inconsciente; lógica emocional contradictoria.


 

 

Provisoriamente não cantaremos o amor,

que se refugiou mais abaixo dos subterrâneos.

Cantaremos o medo, que esteriliza os abraços,

não cantaremos o ódio porque este não existe,

existe apenas o medo, nosso pai e nosso companheiro,

o medo grande dos sertões, dos mares, dos desertos,

o medo dos soldados, o medo das mães, o medo das igrejas,

cantaremos o medo dos ditadores, o medo dos democratas,

cantaremos o medo da morte e o medo de depois da morte,

depois morreremos de medo

e sobre nossos túmulos nascerão flores amarelas e medrosas

("Congresso internacional do medo", Carlos Drummond de Andrade, 2008, p. 27).

 

O medo entre o amor e o ódio

Tese: o medo é um afeto primordial intermediário entre o amor e o ódio. A experiência emocional de medo entre os humanos é perene, uma velha conhecida de todos nós; entretanto, se pensarmos na literatura psicanalítica de modo geral, parece que o lugar dado ao medo para a compreensão de fenômenos psíquicos não é tão grande quanto a ênfase que, a meu ver, esse afeto mereceria. Fala-se muito no dualismo amor-ódio e como todos os outros afetos seriam apenas derivações desses dois polos afetivos opostos e primordiais.

Em grande parte dos textos psicanalíticos, em especial nos textos metapsicológicos de Freud e também nos de seus seguidores, existe por princípio e quase invariavelmente um dualismo. Basta lembrar o debate entre Jung e Freud sobre a existência de um instinto básico, uma libido, uma energia vital única, ou de dois instintos básicos, distintos um do outro. Essa é uma discussão antiga e bastante complexa. No entanto, parece-me que ficar pautado em uma lógica puramente dualista contraria a coisa essencial da psicanálise: a postulação do inconsciente. O princípio básico de funcionamento do inconsciente é, em última instância, exatamente assumir e admitir a contradição, aceitar a simultaneidade contraditória de processos monistas e dualistas. E, indo um pouco além, ser capaz de lidar com o medo tem a ver com a nossa capacidade de suportar a existência de dados contraditórios e tolerar situações das quais nós não temos controle - e, provavelmente, jamais teremos.

Prosseguindo com a questão do dualismo, não é novidade para ninguém que Freud, no decorrer de sua obra, pensou toda uma série de formulações dualísticas conflitantes: consciente versus inconsciente, instinto de autopreservação versus instinto erótico, princípio do prazer versus princípio da realidade etc, até chegar à sua formulação final: o dualismo pulsão de vida versus pulsão de morte. Nos escritos finais de Freud - em "An Outline of Psychoana-lisys" [Esboço de psicanálise] (1938/1964), por exemplo -, essa formulação ganha um sentido muito claro: nesse ponto da obra, é possível reconhecer sem qualquer dificuldade a divisão entre pulsão de união (correspondente à chamada pulsão de vida) e pulsão de separação (correspondente à chamada pulsão de morte). Eros, amor, pulsão de vida, é o que une as coisas, e Tânatos, ódio, pulsão de morte, é o que as separa. A existência concomitante e articulada de uma força que busca a união e de outra que busca a separação nos remete a uma velha frase que vem de Heráclito - filósofo pré-socrático grego - e chega a Niels Bohr, físico quântico: os opostos são complementares. Sendo assim, pulsão de vida e pulsão de morte são apenas duas visões de um mesmo conjunto de coisas: unir e separar. É preciso separar para compreender a união e é preciso unir para compreender a separação. Todavia, proponho que a pulsão de unir é, de alguma maneira, anterior à pulsão de separar.

Freud falava em herança arcaica, em fantasias primárias, ou seja, conteúdos filogene-ticamente herdados que se expressariam na constituição de cada ser humano, na ontogênese. Bion, mais adiante na história da psicanálise, postulou as preconcepções - aquilo com o que qualquer bebê já nasce, a expectativa que ele tem do que vai encontrar após seu nascimento, e mesmo antes disso, já na vida uterina. Como exemplo, Bion enfatizou uma preconcepção básica, a preconcepção do seio: a criança já nasce esperando encontrar um seio, o seio da mãe.

Freud afirmava que, ao sugar o polegar, o bebê estaria alucinando o seio na ausência deste. No entanto, isso, em tese, só poderia ocorrer após uma experiência concreta com o seio e não antes disso. Algumas evoluções tecnológicas - como ultrassonografias, visões das crianças dentro do útero etc - levaram-nos a repensar essa hipótese freudiana. Através das imagens intrauterinas é possível observar que o bebê já chupa o dedo e já faz o movimento de sucção dentro do útero materno, ou seja, ele já está exercitando uma atividade futura que, portanto, já está inscrita de alguma maneira nele. Então, a ideia de uma preconcepção do seio é absolutamente pertinente.

É possível ir além e pensar a preconcepção do seio como uma expectativa inata do bebê em ser aceito no seio da humanidade, isto é, o seio deixa de ser apenas um objeto concreto e passa a ser também uma experiência simbólica. Isso nos remete a Melanie Klein e à ideia de que o seio não é só o seio que dá leite: é o seio que dá amor, é o seio que dá calor, é o seio que dá proximidade e é o seio que dá pertinência ao grupo humano.

Em outro salto na mesma direção, podemos pensar na ideia freudiana da horda primeva. Sim, o homem é um animal gregário. Existe uma preconcepção de humanidade porque o ser humano simplesmente não subsiste sozinho - não só por uma questão de sobrevivência física, mas por uma questão de sobrevivência psíquica e afetiva. O ser humano precisa do amor de seus pares; sem o amor destes, ele não sobrevive. O bebê já nasce imerso numa totalidade, ele já espera por isso, ele não está isolado do mundo.

Minha hipótese é que o amor é o afeto primordial, que toda criança já nasce com um potencial de amar e com uma expectativa de ser amada. E essa expectativa de amor está presente nas duas gestações pelas quais o ser humano passa, diferentemente dos animais, que passam apenas pela gestação intrauterina. Provavelmente, muitos de nós já tivemos a experiência de observar um cavalinho nascer - é uma coisa espantosa! Ele nasce, fica junto da mãe e, rapidamente, lá está ele sobre as quatro patas; logo, está andando por ali. Já no ser humano, as coisas são um pouco mais complexas: há uma segunda gestação fora do útero, que é a gestação simbólica de inserção na humanidade. Então, seja na primeira gestação, seja na segunda, é claro que o que a criança capta não são apenas os traços maternos; em última instância, o que ela capta é o acolhimento da mãe, representante contingente do acolhimento da humanidade.

Seguindo essa linha de pensamento, o bebê nasce com potencial de amor, e quando este, por alguma razão, é frustrado, não é correspondido, o primeiro afeto que surge é o medo e não o ódio. Antes que se instale a relação de ódio, o que se instala é uma relação de medo. O medo é a segunda emoção básica fundamental, e o ódio deriva do medo. O que estou propondo é a ideia de amor como afeto básico que, quando não se desenvolve, cria o medo da perda do amor, do acolhimento, e esse é o medo básico que vai criar todos os outros medos aos quais nós estamos submetidos. O medo da perda de amor, do acolhimento, é que vai levar ao ódio e, consequentemente, à violência. Gosto dessa linha de raciocínio, que me parece mais generosa em relação ao ser humano.

O renomado físico atômico Roger Penrose, que colaborou com Stephen Hawking em vários trabalhos, escreveu um livro muito interessante chamado The large, the small and the human mind [O grande, o pequeno e a mente humana] (1997), no qual relaciona conceitos da física quântica, da cosmologia e da mente humana. Em um dos capítulos, ele analisa as teorias sobre a origem e o destino do cosmos; basicamente, três teorias: uma postula o fim do universo a partir de uma expansão constante iniciada pelo Big Bang; outra prevê uma reversão do movimento de expansão do universo para uma contração que o levaria ao fim (Big Crunch); e uma terceira propõe ciclos alternados de expansão e contração, levando a um equilíbrio. Penrose expõe um detalhado e minucioso raciocínio teórico defendendo essa última hipótese e, após essa demonstração rigorosa, apresenta seu argumento decisivo e final em favor de sua hipótese preferida: "Essa é a que eu mais gosto". Uma afirmação como essa, que, em tempos passados, poderia ser desprezada como um simples "achismo", passa a ser considerada hoje um fator científico respeitável na tentativa de comprovação de uma hipótese.

Utilizo duas citações de Freud, do texto "An outline of psychoanalysis" (1938/1964), que, em meu modo de ver, comprovam a ideia do amor e do medo da perda do amor e do acolhimento como afetos primordiais:

As crianças estão protegidas tanto dos perigos quanto das ameaças do mundo externo pela solicitude dos pais. Elas pagam por essa segurança com o medo da perda do amor, que as deixaria desamparadas ante os perigos do mundo externo (p. 200).

Algumas páginas adiante:

Na medida em que o ego funciona em completa harmonia com o superego, não é fácil distinguir entre essas duas manifestações; mas as tensões e os confrontos entre eles tornam as diferenças claramente visíveis. Os tormentos causados pelas reprovações, pelas cobranças da consciência, correspondem, precisamente, ao medo da criança da perda do amor (p. 206).

Parece-me, então, que a virulência do superego seria um produto do medo da perda do amor. O medo da perda de acolhimento e reconhecimento pelo outro (inicialmente, pelas figuras parentais) seria, no decorrer do desenvolvimento psíquico, depositado nessa agência moral. A partir da conceituação do superego, Freud formulou o chamado ideal de ego, ou seja, paralelamente a uma instância que diria o que não devemos fazer, haveria também uma instância que diria o que devemos fazer para sermos amados, acolhidos e reconhecidos. Sendo assim, em última instância, o superego e o ideal de ego são mecanismos de defesa contra o medo de perder todas essas coisas que nos são tão essenciais para nos sentirmos parte da humanidade.

A partir desse reconhecimento da necessidade veemente do humano de se sentir incluído em um todo, podemos seguir adiante e reconhecer que o medo da morte, em última instância, é fruto do medo da exclusão. Todos nós sabemos, com base em nossa experiência, seja como analistas, seja como analisandos, que, no final das contas, o medo fundamental é o medo da morte; mais cedo ou mais tarde, essa questão acaba surgindo em qualquer processo de análise. Começa-se com os medos mais diversos, localizados, pontuais, e por fim, de alguma maneira, chega-se lá.

Todavia, será que o medo maior que está em jogo é o medo da morte? Pensemos assim: se um cometa ou um grande meteoro se chocasse contra o planeta Terra e, de repente, tudo se acabasse, como nós nos sentiríamos? Claro, se soubéssemos de antemão que isso iria ocorrer, cada um tentaria elaborar o inevitável destino dentro de si e à sua maneira. Sim, seria uma tragédia, mas talvez não fosse sentida como uma tragédia tão grande quanto a ideia de nossa morte individual. É mais ou menos assim: se o planeta inteiro for destruído, a festa acabou para todos. Seria uma pena, a festa estava tão boa... Mas, pior que isso, seria ir embora da festa que continua - quem tem filho adolescente e já foi buscá-lo na balada sabe exatamente do que eu estou falando.

Em termos de medo da exclusão, há uma situação ainda pior: é o medo de ficar sozinho no meio das pessoas, situação em que a exclusão fica explícita. Para exemplificar, é só pensarmos na solidão do homem urbano contemporâneo em nossas grandes cidades, a absoluta solidão no meio de uma multidão de pessoas. Outro exemplo dessa solidão no meio de um grupo é a brincadeira entre três crianças. O pior número de crianças para brincar é três - claro, uma referência explícita à questão edípica: a essência do Édipo é a existência de três partes -, isso porque, se três crianças estão brincando, basta que duas delas façam uma aliança para que a outra fique radicalmente excluída e solitária. Diante disso, é inevitável - sempre alguém termina chorando. Se são quatro crianças, já existe a possibilidade de se formarem dois partidos.

O que quero ressaltar com tudo isso é o sentimento de exclusão como o mais terrorífico para o ser humano, talvez até mais do que o medo da morte em si. É possível pensar, por exemplo, na questão dos chamados "homens-bomba". A esses homens, tomados por sua intensa convicção religiosa, é prometido que, após a morte, irão encontrar no paraíso muitas mulheres e muitos homens justos, ou seja, estarão no meio de pessoas e serão profundamente admirados e amados por elas. Se considerarmos algumas ideias de continuidade da vida após a morte a partir de uma dissolução da identidade própria, veremos que elas satisfazem muito menos do que a ideia de um pós-vida no meio de outras pessoas, ou seja, precisamos ter certeza da inclusão no meio dos pares. A exclusão remete ao desamparo, Hilflosigkeit - a terrível experiência de se sentir absolutamente sozinho, desconectado, sem o acolhimento e a compreensão do Grande Outro.

Lembro-me de uma passagem recente com um analisando em que ele dizia estar muito ansioso. Naquela circunstância, perguntei: "Você está com medo?". Ele respondeu: "Não, eu não estou com medo, estou ansioso" Às vezes, a coisa mais difícil é dizer: "Estou com medo". Sim, claro, compreendo e respeito a necessidade de uma precisão terminológica maior para distinguir diferentes vivências afetivas; todavia, às vezes, isso nos faz esquecer que todas, em última instância, são variações da manifestação do medo. Fobia é medo, paranoia é medo, depressão é medo, angústia evidentemente é uma manifestação do medo, e isso vale para tantos outros termos habituais em nosso vocabulário Psi.

Gostaria também de expor brevemente algumas contribuições feitas por Zygmunt Bauman, sociólogo polonês de nascimento, que iniciou sua carreira na Universidade de Var-sóvia, mas que emigrou de lá para países como Canadá, Estados Unidos e Grã-Bretanha; deu aulas na Universidade de Leeds por mais de vinte anos. Hoje, aos 84 anos, vem publicando um ou mais livros por ano, todos traduzidos para o português, com enorme aceitação seja da comunidade acadêmica, seja do grande público. Ele criou o termo modernidade líquida para definir a pós-modernidade, isto é, este momento histórico em que vivemos, em que todas as coisas são fluentes, são líquidas, e não há mais coisas sólidas, estáveis, permanentes. Um de seus livros chama-se Medo líquido (2008), e o autor o inicia com uma metáfora muito interessante - uma análise sobre o reality show Big Brother.

Segundo Bauman, o que mais atrai os telespectadores no programa não é exatamente quem vai ser o ganhador ou os jogos eróticos entre os participantes, mas o ritual de exclusão, ou seja, são as mortes simbólicas que cada participante vai sofrendo no decorrer do programa. Em português, usa-se o termo "paredão" para se referir à situação em que alguns participantes, de tempos em tempos, se encontram, correndo o risco de serem eliminados do programa. A palavra "paredão" faz uma clara alusão ao paredão de fuzilamento. A cada tanto, um participante é radicalmente excluído do grupo, ou seja, ele está no meio da festa e sente a ameaça permanente de ser posto para fora. Imaginemos que os próprios participantes do programa pudessem chegar a algum tipo de acordo, uma aliança que, utopicamente, os preservasse da exclusão - mas não, os próprios pares são cúmplices do ritual de "fuzilamento", planejam, em geral por baixo do pano, quem será excluído. E por que fazem isso? Porque o medo comanda as ações.

Cabe lembrar que, mesmo após várias edições repetitivas do programa, sem muitas variações entre elas, a audiência não cai, os telespectadores não se cansam. Isso porque a representação da morte pela exclusão atrai o público, que se identifica com os personagens na própria vivência vicária de exclusão e de morte: "Que alívio, não fui eu...".

Um pensador francês chamado Jean Delumeau inicia o seu livro La peur en Occident [O medo no Ocidente] (1978) com uma passagem de Montaigne relatando uma de suas viagens pela Europa, mais precisamente sua chegada a Augsburgo, na época a maior e mais rica cidade do então Sagrado Império Romano. Montaigne chega de noite ao local, convidado por cidadãos de prestígio. Augsburgo era completamente cercada por altas muralhas e, ao chegar, ele precisa passar por uma ponte levadiça que atravessa um fosso; encontra um portão com um orifício por onde deve dizer quem é e por quem foi convidado, e depois fica esperando num cômodo isolado e sem iluminação por bastante tempo. De repente, a porta à sua frente se abre mediante um mecanismo oculto. Aberta aquela porta, Montaigne entra em outra sala escura, com uma porta fechada à sua frente, enquanto a de trás, que havia sido aberta para ele passar, também se fecha. Novamente, ele tem de falar por um comunicador qualquer, sem obter resposta. Mas eis que a segunda porta também se abre. Enfim, após passar por mais três ou quatro portas sem ver ninguém - embora soubesse que havia ali toda uma guarda armada -, ele ganha acesso à cidade.

Sim, tudo isso ocorreu há muitos séculos, mas inevitavelmente nos remete aos condomínios contemporâneos, com sua tecnologia de segurança avançada, seus vidros escuros blindados e a constante sensação de que ali não há ninguém, embora, como no caso de Montaigne, haja um exército armado em alerta. Então, quais as peculiaridades do medo que sentimos nas cidades hoje em relação ao medo que era sentido pelos habitantes urbanos no passado? Poderiamos afirmar que, antigamente, a cidade se protegia contra as ameaças externas, contra inimigos para além das muralhas, contra as hostes inimigas, os bárbaros, os bandidos etc; dentro das próprias cidades, as pessoas se sentiam protegidas. Hoje em dia, em contrapartida, é dentro das cidades que está o grande perigo.

 

O medo e a violência ou o ovo e a galinha

O que veio primeiro: a violência ou o medo? Não me parece absolutamente uma pergunta bizantina, tipo sexo dos anjos. Pelo contrário, ela desperta em nós (acho que nesse caso posso falar por nós) uma inquietude ansiosa diante do que é irrespondível dentro dos parâmetros de uma lógica tradicional dualista e não contraditória. Tenho pensado que tanto quanto a outra pergunta, a do ovo e a galinha, ela pode ser encarada como um koan. Na tradição zen, o koan propõe uma questão que escapa a essa lógica não contraditória, prevalecente em nosso sistema consciente, predominantemente pragmático. Esse pragmatismo é necessário à sobrevivência do indivíduo: ele precisa reagir diante de um estímulo - mormente quando apresenta ameaça à sua sobrevivência - com uma ação determinada, não contraditória. Talvez surja daí a aversão que temos - ou, melhor dizendo, que nosso sistema consciente tem - de situações contraditórias. Geralmente queremos uma resposta do tipo: diante dessa situação, faço isso ou aquilo. Visando a respostas como esta, o pensamento consciente planeja a ação e, para tanto, limita as infinitas possibilidades associadas à situação de perigo a uma ação determinada, informada por suas experiências anteriores. Já nosso inconsciente é o campo das emoções, que são contraditórias em essência; que obedecem a outro campo lógico no qual simplesmente não existe a contradição - tudo nele se associa de alguma maneira, ou seja, a lógica inconsciente expande as possibilidades até o impensável infinito. Os fenômenos observados por Freud nos sonhos, e que agridem nossa lógica habitual (deslocamento, condensação, atemporalidade, ausência de negação etc), são produtos inerentes a essa lógica paradoxal. É importante frisar que tanto o inconsciente como o consciente em estado puro são virtualidades teóricas. O que podemos observar - ou melhor, viver - são sempre misturas de diferentes proporções desses dois modos de ser, cada um com sua lógica própria. Em outras palavras, no sistema consciente, temos predominância da lógica racional não contraditória; e no sistema inconsciente, é a lógica emocional contraditória que prevalece. Podemos imaginar o "aparelho psíquico" como um continuum com diferentes proporções das duas lógicas.

A função do koan é justamente despertar uma essência humana que escapa da lógica a que nos habituamos: a lógica consciente do ego. Trata-se de esvaziar a cabeça dessa lógica e entregar-se a um vazio mental, a uma ausência de pensamentos que permita uma aproximação mais desapegada com esse nosso outro modo de ser. O koan, ao propor questões que agridem nossa lógica usual, propicia aberturas para o desconhecido impensável. Como exemplo, um koan clássico: qual é o ruído produzido por uma única mão batendo palmas?

O problema não é só da alçada de psicanalistas e terapeutas em geral; a ciência contemporânea está ousando defrontar-se com questões que transcendem a lógica clássica, aristotélica. As teorias e práticas do pensamento complexo (Gerber, 2003b) inauguram uma outra maneira de o ser humano pensar a si mesmo e seu cosmos, mas a psicanálise foi pioneira ao propor um novo modo de ser com outra lógica simbólica, um outro nível de realidade1: o inconsciente que nos constitui tanto mais que nosso habitual consciente.

Uma tendência atual da ciência, que incorpora as contribuições da psicanálise e da tradição filosófica oriental entre outras, é pensar a síntese possível da contradição num outro nível de realidade que admita o que parece contraditório em um nível menos complexo: uma visão dialógica transcendente. A dialógica é uma expansão da dialética. Nesta última, a síntese se dá em um segundo tempo, ainda que próximo; na dialógica, ela acontece simultaneamente, mas em outro nível de realidade, em outro campo lógico. A própria postulação da mecânica quântica implica um outro nível de realidade, com regras físicas, lógicas e matemáticas próprias, irreconciliáveis, ao menos no momento, com a física do nosso senso comum2. A aproximação que faço entre os dois níveis de constituição do universo físico e os dois níveis psíquicos, consciente e inconsciente, vai além da metáfora poética - penso essa aproximação em termos de um raciocínio analógico muito em uso na ciência contemporânea, e mesmo que a tomemos como uma metáfora especulativa, as propostas desse texto não se alteram.

Voltando à questão do medo e da violência, ela certamente resvala em conteúdos ideológicos, dentro de cada um de nós, além das conceituações lógicas. Por exemplo, a eterna questão: o homem nasce violento ou torna-se violento premido pelas circunstâncias da vida? Em outras palavras, o problema da existência ou não de um instinto destrutivo congênito. Pessoalmente, prefiro a ideia de um ser humano que se desenvolve desde o embrião já na expectativa (preconcepção, diria Bion) de uma humanidade da qual ele faz parte - ele espera o acolhimento amoroso de seus iguais, o corpo da mãe representando Gaia (a Terra) e o Cosmos que nos contém. Existe no bebê a esperança de amor, qualidade primordial que nos constitui. E é exatamente o medo de perda do amor, o medo da exclusão, que vai significar o desamparo e a morte que se seguem à experiência primeira de amor: o medo de perder o vínculo com o próximo, com a colmeia humana.

Como propus acima, o ódio e a violência surgem como consequência do medo. Essa cadeia genética tenderia a se repetir nas experiências emocionais vividas. É claro que, a partir das colocações básicas da teoria da complexidade, não cabem mais pensamentos lineares, simplificações unidimensionais; as relações entre essas três emoções básicas (amor, medo, ódio) são complexas - algo como as configurações mutantes do nível de realidade quântica. Assim, o módulo <amor-medo-ódio> vai se manifestar em infinitas variações fractais, desde uma cintilação quase instantânea de experiência emocional numa sessão de análise até um padrão permanente e enrijecido, neurotizando ou psicotizando toda uma vida. Diz Bion: "Essas características fundamentais - amor, ódio, medo - são aguçadas a tal ponto que [...] podemos senti-las como quase insuportáveis" (1970, p. 66). Como determinantes dessas configurações possíveis, suportáveis ou insuportáveis, estão a ação de Eros, o instinto que une, e a de Tânatos, o instinto que cinde. Reitero, foi assim que Freud os definiu no "Outline" (Abriss der Psychoanalyse), obra póstuma, definitiva e definitória - no sentido de definir a versão final, a última palavra do pai da psicanálise sobre temas polêmicos e mutáveis ao longo de sua obra.

Quero, porém, ressaltar a atitude ideológica implícita no modelo proposto. Ele pressupõe que um medo excessivo, desproporcional (terror sem nome), transmuta-se defensivamente em ódio, antecipando o ato violento. Essa visão toma em consideração o contexto específico do ato violento como atenuante e permite-nos ver o autor da violência com olhos mais tolerantes - mas não menos preocupados e ativos; um olhar mais generoso e esperançoso sobre nossa imperfeita humanidade.

Enfim, proponho como recomendação prática que consideremos o medo como causa primeira da violência, que por sua vez se torna causa imediata do medo, e assim por diante, numa progressão geométrica enlouquecida. Tomar em consideração o amor e o medo presentes na origem do ódio e da violência pode nos ajudar a compreender melhor as razões e as desrazões emocionais do ser violento.

Penso que ainda podemos entrever nessa violência que resulta do medo via ódio uma certa funcionalidade. Por mais que nos repugne a desmedida emocional de um crime passional, de uma tortura política, de uma ação terrorista, eles são atos de poder que visam a um ganho prático, por mais abjeto que seja. Existe, porém, um tipo de violência que escapa ao modelo acima: a violência fria, psicopática, não funcional (o ódio pelo ódio, a violência pela violência), própria de um ser que cortou (ou encontrou cortados) todos os seus vínculos com a humanidade, com o Outro, com a vida dos outros - a terrível e absoluta solidão, um ser radicalmente só num planeta hostil.

Voltando à intolerância pragmática de nosso consciente habitual perante situações contraditórias, podemos pensar os mecanismos de repressão e de negação como tentativas de reprimir ou de negar fatores inerentes ao problema vivido, capazes de produzir configurações emocionais contraditórias. Ou seja, mais além da censura moral, existe uma censura lógica. A configuração emocional do complexo de Édipo propõe uma situação triangular primordial plena de contradições lógicas. Essas censuras funcionam associadas; basta observar as racionalizações nas quais os fatores morais a priori, devidamente disfarçados, vão determinar falsas conclusões lógicas, justificando ações preconceituosas eticamente injustificáveis.

Arriscamos uma conclusão provisória, tão simples que parece ingênua: se pudermos reduzir a ameaça que paira sobre um ser humano, haverá uma redução - provavelmente desproporcional e imprecisa - no seu índice de violência. Uso o termo imprecisa com o mesmo sentido ambíguo de necessidade e de precisão do verso de Fernando Pessoa: "Navegar é preciso, viver não é preciso".

Para finalizar, lembro um sábio rabino hassídico, Nachman, de Breslov, que viveu por volta de 1800. Dizia ele: "A vida é uma ponte muito estreita; o importante é lidar com o medo" (1994, p. 35). Ou seja, é impossível não ter medo; coragem é admitir o medo e encontrar uma forma de lidar com ele.

 

Referências

Bauman, Z. (2008). Medo líquido. (C. A. Medeiros, Trad.). Rio de Janeiro: Jorge Zahar.         [ Links ]

Bion, W. R. (1970). Attention and interpretation. London: Tavistock.         [ Links ]

Delumeau, J. (1978). La peur en Occident (XIVE-XVIIIE siècles). Paris: Hachette Littératures.         [ Links ]

Drummond de Andrade, C. (2008). Congresso internacional do medo. In C. Drummond de Andrade, Sentimento do mundo. Rio de Janeiro: MEDiAfashion.         [ Links ]

Freud, S. (1964). An outline of psychoanalysis. In S. Freud, The standard edition of the complete psychological works of Sigmund Freud. (J. Strachey, Trad., Vol. 23, pp. 141-207). London: Hogarth Press. (Trabalho original publicado em 1938).         [ Links ]

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Penrose, R. (1997). The large, the small and the human mind. Cambridge: Cambridge University Press.         [ Links ]

Rebbe Nachman of Breslov (1994). The empty chair - finding hope and joy. Vermont: Jewish Lights Publishing.         [ Links ]

 

 

Correspondência:
Ignacio Gerber
Av. Brigadeiro Faria Lima, 2121, cj. 64
01452-907 São Paulo, SP
Tel.: (11) 3813-3683
ignaciogerber@terra.com.br

Recebido em 4.3.2013
Aceito em 18.3.2013

 

 

1 Ver lógica inconsciente como outro nível de realidade em Gerber (2003a, 2004).
2 Como dizia Niels Bohr: "Quem não acha a mecânica quântica muito esquisita, não a compreendeu".

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