SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.47 número1O medo da perda do amorDo terror primário ao medo protetor: considerações sobre terror, pânico, fobia e medo em crianças índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.47 no.1 São Paulo jan./mar. 2013

 

ARTIGOS TEMÁTICOS: MEDO

 

Medo, estranheza e desmedida na transferência

 

Fear, strangeness and excess in transference

 

Miedo, extrañeza y desmesura en la transferencia

 

 

Camila Salles Gonçalves

Psicóloga, Psicanalista, Membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae e do Centro de Estudos de Teoria dos Campos CETEC, Professora de Filosofia, Doutora pela Universidade São Paulo USP

Correspondência

 

 


RESUMO

O artigo coloca a possibilidade de o medo ocorrer na transferência. As questões que surgem, então, são: o que dizem os pensadores da psicanálise a respeito de transferência e contratransferência? E o que faz o psicanalista na sessão de análise segundo sua compreensão destes conceitos?

Palavras-chave: medo; transferência; contratransferência; estranheza; desmedida.


ABSTRACT

The article points out that fear may occur in transference. The questions that arise are: what do the thinkers of Psychoanalysis say about transference and countertransference? And what does the psychoanalyst do according to his understanding of these concepts?

Keywords: fear; transference; countertransference; strangeness; excess.


RESUMEN

El artículo presenta la posibilidad de que el miedo ocurra en la transferencia. Las cuestiones que surgen son: ¿qué dicen los pensadores del psicoanálisis acerca de la transferencia y de la contratransferencia? Y ¿qué hace el analista en la sesión de psicoanálisis según su comprensión de estos conceptos?

Palabras clave: miedo; transferencia; contratransferencia; extrañeza; desmesura.


 

 

Ao leitor sem medo é o título de um livro - resultado de uma tese de doutorado defendida no Departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo - do professor Renato Janine Ribeiro; tem como subtítulo Hobbes escrevendo contra o seu tempo. Hobbes teria sido "o único dos filósofos a levar em conta o medo, este desdenhado de toda a filosofia" (Janine Ribeiro, 1984, p. 13). Não se sabe ao certo qual o efeito das condições históricas, mas somos lembrados que, quando ele nasceu, em 1588, existia na Inglaterra um grande medo. Aguardava-se a invasão espanhola, espreitava-se "o desembarque da armada, que se temia invencível" (p. 2). Inspirado em frases de Roland Barthes, que teria se mostrado seduzido por Hobbes, o autor apresenta-nos o filósofo inglês como aquele que foi capaz de "alicerçar seu pensamento numa paixão, a mais vergonhosa, porém - a rigor - a que melhor expressa o pathos, a passividade humana: a paixão por excelência, o medo" (p. 2). Acena com um fio condutor possível para leitores dos textos do autor de Leviathan, leitura obrigatória para os estudiosos de filosofia política, ao reconhecer

[...] que se pode percorrer toda a filosofia hobbesiana pelo trilho do medo: destaca-se então um pensamento conformista, da obediência ao Estado absolutista. Leitura que, além de fascinar (como a de Barthes), propõe um elo original e forte entre a vida e a obra de Hobbes (pp. 13-14).

Entretanto, como era de se esperar, o professor julga que essa leitura assenta num recorte excessivo e passa a desconstruir qualquer interpretação ao pé da letra.

É claro que, em nossa disciplina, a psicanálise, que se desenvolve no âmbito das paixões humanas, o medo, mesmo se considerado vergonhoso em certas culturas e ambientes, é abordado sob as mais diversas formas. Talvez a mais fascinante delas esteja em "Das Unheimliche" (Freud, 1919/1993), texto cujo título mereceu traduções como "O estranho familiar", "O ominoso", "O sinistro", e que se apoia na leitura freudiana do conto terrorífico de Hoffmann, "O homem da areia". Mas vale perguntar se seria possível percorrer um trilho traçado pelo medo experimentado pelos psicanalistas em sua prática e por aquilo que lhes é transmitido por escrito a respeito. Na clínica, se há medo, ele se presentifica na transferência.

Fenômeno constatável nas relações humanas, a transferência deu origem ao conceito estabelecido por Freud com base em suas primeiras experiências clínicas. Entre analista e analisando, como se sabe, ela fez sua primeira aparição como obstáculo, como estorvo inesperado na prática psicanalítica e ameaça à cura. Enquanto resistência e inclinação erótica, indissociável de projeção, estreou no caso Dora e nunca mais deixou de ser relida e reinvestigada no texto freudiano.

O gênio de Freud, alimentado por suas reflexões sobre a prática, acabou dando à transferência o destino de instrumento valioso da análise, de meio pelo qual esta ocorre e de condição para que a própria análise seja possível. Os sentimentos do analisando, ternos ou hostis, voltados para o analista, podem ter sua origem em outras vivências ou em algo que aconteceu em outro lugar. Esta ideia nunca mais deixará de ser levada em conta. E a outra face da moeda não pôde ser ignorada: a transferência também se dá por parte do psicanalista em relação ao paciente.

O conceito, que a psicanálise criou, subsume todos os relacionamentos humanos. Ele trouxe recursos para que se reconheça o fenômeno da transferência - recursos que, às vezes, permitem aos envolvidos lidar com este fenômeno de formas novas. Penso que todos os profissionais da área de saúde, além dos psicanalistas e dos pacientes de uns e de outros, devem muito a Donald Winnicott, à sua abordagem e esclarecimento a respeito do ódio na contratransferência. Seu famoso artigo "O ódio na contratransferência" (1947/1978) fala da psiquiatria, dos procedimentos adotados com certos pacientes, por médicos e outros profissionais - por exemplo, enfermeiros -, cuja escolha teria como fator determinante o ódio despertado nestes por aqueles. Não que o ódio seja pura projeção de relações em um espaço e um tempo distantes. Os pacientes de que nos fala Winnicott têm, efetivamente, comportamentos que tendem a provocar ódio. Creio que um grande serviço prestado por este psicanalista, no caso, foi tornar insustentáveis a negação e a racionalização por parte dos profissionais envolvidos. A psicanálise permite reconhecer e talvez admitir o ódio, descobrir o motivo, às vezes inconsciente, do uso de choques, injeções, confinamentos, imobilizações etc. Sobre aquilo de que continua a tratar, o autor nos diz: "embora o que se segue seja sobre psicanálise, tem um grande valor para o psiquiatra, mesmo para aquele cujo trabalho não o leve de modo algum a um relacionamento do tipo analítico com os pacientes" (p. 342).

O estado de coisas abordado acima não me deixa esquecer que, na clínica psicanalítica, pode haver situações muito semelhantes às sugeridas. Continuando a se referir aos médicos, o autor observa: "Para ajudar o psiquiatra, o psicanalista deve estudar para ele não apenas os estádios primitivos do desenvolvimento emocional do indivíduo doente, mas também a natureza do fardo emocional que o psiquiatra carrega ao fazer seu trabalho" (p. 342). Excluindo-se as situações óbvias de interrupção da análise, de encaminhamento visando à internação do paciente e outras que tais, como funciona, na análise, o medo que o analista tem do analisando?

Para o autor,

[...] o que nós, analistas, chamamos de contratransferência (countertransference) precisa ser compreendido também pelo psiquiatra. Por mais que ele ame seus pacientes, ele não pode evitar odiá-los e temê-los e, quanto melhor ele souber disto, menos o ódio e o temor determinarão suas ações sobre os pacientes (p. 342).

O analista pode ser afetado pelo modo de ser dos estágios emocionais primitivos do seu paciente. Em relação ao ódio e também ao medo, dirigidos ao paciente, que o analista venha a sentir, vale ressaltar o final da frase. Se nos detivermos em momentos singulares em que o medo acontece na clínica, como pode este tornar-se determinante daquilo que o analista faz com seu paciente? A pergunta tem potencial para desencadear um torvelinho vertiginoso de formas se colocarmos a tônica no que é sentido: medo do analisando? A transferência leva o analista a ter o medo que o analisando tem? De quem se tem medo? Quem, em mim, tem medo? De quem?

Penso que entramos no campo de ¡'étrangeté. Esta palavra, utilizada por Pontalis em seu escrito "l'étrangeté du transfer" (1990, p.57), gira em torno de sentidos de estranhamento, de estrangeiridade, inseparáveis de medo, do que é unheimlich.

Em outro lugar (Salles Gonçalves, 2002, p. 65), relatei um momento na clínica que me encheu de terror, despertado pelo olhar, pelo sorriso e pelo tom de voz de um analisando, que nunca deixara de se mostrar gentil e bem-educado. Depois de me informar que interrogara a secretária se ele era o último cliente do consultório naquela noite e que a resposta fora sim, ele me perguntou se eu conhecia serra de marcenaria. Para desviá-lo de nós dois, perguntei, por minha vez, com quem ele trabalhava na marcenaria. Chutei para a penumbra a palavra serra.

Meu primeiro relato escrito desta vivência pretendia tratar de concepções de regressão utilizadas em psicanálise e de modos correlatos de se conceber a temporalidade. Relendo a história, noto que me referi também ao intenso medo que o paciente sentia todas as noites. Ele estava se separando da mulher e nunca na vida teria dormido sozinho em casa alguma. Infância muito pobre, em meio a muitos irmãos. Adulto, deixara a moradia da família para se casar. Depois, deixou a casa da primeira mulher para ir morar com a segunda. Medo de dormir sozinho. Mesmo em vias de separação, durante a noite, saía do sofá e ia para a cama da mulher. Sozinho no consultório, ele me deu medo. O dele? Tive medo dele. Registrei minha gratidão ao supervisor - que já havia captado uma atmosfera kafkiana nas histórias do paciente - que me perguntou, quando expus a situação que tinha me apavorado, se eu havia pensado em esquartejamento. Um certo medo, presente em fases biográficas do paciente, transferiu-se. Mediante a minha escuta, ele foi passado para a do supervisor - da minha transferência para a escuta sensível deste último. O medo de esquartejamento, meu, apareceu na minha contratransferência.

Muitos autores deixaram para trás o termo usado por Winnicott, preferindo, por critérios diversos, abolir a palavra contra. Cabe rever o início e algo da trajetória do emprego da palavra transferência em Freud. A respeito do verbo übertragen (transferir) e do substantivo Übertragung (transferência), Luiz Hanns comenta, em seu dicionário, que a ação de buscar, trazer, como um processo, dá-se "como se víssemos o seu desenrolar." Acrescenta que, "em português, talvez pudéssemos descrever algo semelhante através da sequência: 'carregar-de-lá-para-cá-e-depositar-aqui', ou então na expressão 'transpor para'" (1996, p. 413). Note-se que o autor está apresentando conotações que independem do uso dos termos na teoria freudiana. Mais adiante, na seção da abordagem dos verbetes denominada "Exemplos de uso em Freud", encontramos a ideia de "falsa ligação", que aparece em 1895 ("A psicoterapia da histeria"), e a de "tendência à transferência", de 1916-1917 ("Conferência 27") (Hanns, 1996, pp. 416-418). A meu ver, acompanhar os exemplos pode ser um modo de se ver o desenrolar da teoria psicanalítica, seu desenvolvimento a partir da clínica.

O que apareceu primeiro como mésalliance (em francês, no texto), veio mais tarde a merecer, por parte de Freud, estes juízos: "Naturalmente, deve-se atribuir a toda pessoa normal uma capacidade de dirigir catexias libidinais às pessoas. A tendência à transferência (Übertragungsneigung) nos neuróticos, da qual falei, é apenas um aumento extraordinário dessa característica universal" (Freud, 1916-1917, citado por Hanns, 1996, p. 418).

Ainda, depois de lembrar início e quase fim de um percurso freudiano - por ora, deixando de lado o artigo "Recordar, repetir e elaborar" -, quero assinalar a convicção de que a transferência substitui a técnica da hipnose. O que teriam em comum? Para Freud, em sua paciente, a tendência à transferência equivale à sua sugestionabilidade:

Sua sugestionabilidade (de Bernheim) não era senão a tendência à transferência (Übertragung), concebida um tanto estreitamente, por não incluir a transferência (Übertragung) negativa [...]. E devemos dar-nos conta de que, em nossa técnica, abandonamos a hipnose apenas para redescobrir as sugestões na forma de transferência (Übertragung) (Freud, 1916-1917, citado por Hanns, 1996, p. 418).

Se existe também sugestionabilidade nos analistas, talvez, em relação à transferência, este seja um critério possível para dispensar o contra na palavra contratransferência. Exemplo meu de sugestionabilidade máxima, descrevi em outro texto (Salles Gonçalves, 1996, p. 35) uma situação de medo que se desenrola em cenário dramático, também de consultório, primeira entrevista. Colegas, vigia, zelador, todos ausentes da casa e do entorno. A moça, de uns trinta anos, rompe o tom queixoso e começa a me contar a briga que teve com o namorado, vai ficando furiosa e diz, como se estivesse pronta para repetir a ação: "Pulei em cima dele e estraçalhei o rosto dele" Antes de a luz se apagar, notei suas unhas cintilantes, enormes e fortes. Tive que acender velas e continuar escutando. Falta de luz, a sós com uma pessoa assustadora. Cenário, efeitos de iluminação, personagem, ingredientes para um conto ou cena, teatral ou cinematográfica, de terror.

Com este segundo exemplo, apresento toda a minha vivência de medo maciço na clínica. No primeiro, mudei de assunto; no segundo, disfarcei, procurei me mostrar muito interessada na história e em marcar um horário para que prosseguisse. É verdade que, neste último caso, não havia relação psicanalítica, mas eu me encontrava na função de analista, à escuta. Desde então, do ponto de vista prático e objetivo, tornei-me mais cautelosa. Não marco mais primeira entrevista com paciente encaminhado por psiquiatra em horários e situações perigosos. Mas não podemos prever, no processo de análise, o que o analisando pode trazer, em certas ocasiões, via transferência.

Pontalis fala em agir ses passions. Poderíamos pensar no que foi sugerido em relação ao filósofo Hobbes, perguntando se, no seu caso, o medo vivido como paixão não seria um agir o medo. A fantasia me levaria longe, mas o pensamento psicanalítico corta as asas dela: o medo não é dito no Leviathan.

Pontalis escreveu:

A transferência é um agir, a transferência é uma paixão, não um dizer (ou então um dizer que é um fazer), e é o que torna difícil, tanto para o paciente quanto para o analista, falar dela. Um sonho, sob a reserva de se manter no relato (récit), e mais ainda, se o qualificamos como material onírico, pode ser reconduzido para um texto e, no mínimo, para o papel; interpretá-lo é traduzido. Mas a transferência não pode ser relatada (ne se raconte pas) (Pontalis, 1990, pp. 72-73).

Na transferência, o medo pode ocorrer sob formas sutis. Talvez caiba falar agora de certo tipo de reação emocional à transferência do analisando, vivida pelo analista, situação que pode ter feito sua primeira entrada em cena no caso Dora, para alguns, pré-histórica. Continuo a encontrar recursos para refletir a respeito na obra de Pontalis.

Releio o momento em que, primeiro, o autor menciona aqueles que fazem objeções à sua abordagem daquilo que ressurge, sobretudo a de se apoiar em um período arcaico da psicanálise. Nesse período, Freud estaria tentando estabelecer limites para a transferência. Após a interrupção da cura de Dora, ele teria aprendido a justa medida. Bem, então, salienta Pontalis, ele teria "conhecido a desmedida: eco enfraquecido de Breuer fugindo de Anna O." (Pontalis, 1990, p. 67). Não é seu objetivo, ele nos diz, "retraçar a história, extremamente complexa, da noção (de transferência)", mas entendo que ele admite a possibilidade de seguirmos "provas da necessidade de Freud de circunscrever o alcance (da noção), tanto na teoria quanto na prática" (pp. 67-68)

Seria selvagem e excessivo deduzir que Freud sentiu medo ao se deparar com a transferência. Mas, quando me detenho nesse episódio pré-histórico, sou levada a entender a desmedida, no mínimo, como algo que afasta. Segundo Pontalis, eco enfraquecido, mas, saliento, de uma fuga. Conjecturas sobre as reações emocionais de Freud, a meu ver, encontraram seu lugar apropriado no roteiro cinematográfico de Sartre e nas imagens de John Huston, no filme Freud, além da alma. Representam com maestria os primeiros obstáculos com que o fundador e sua teoria tiveram que lidar. Inspiram. Mas é apenas o campo da arte que tem o poder de sugerir o aparecimento de algo que cada analista tem que elaborar para si mesmo.

Sabemos que a transferência tornou-se um meio para a prática, um conjunto aberto de questões para a teoria, e que acabou encontrando diversos modelos de manejo, segundo padrões e concepções vigentes, transmitidos pelas instituições formadoras. Para rastrear mínimas passagens que indicam funções do conceito de transferência na edificação da teoria psicanalítica, convido o leitor para uma pequena digressão. Quero fazer uso da perspectiva oferecida pelos conceitos de obstáculo e ruptura epistemológicos de Gaston Bachelard. A clareza dos comentários de Dominique Lecourt ajuda-me a esclarecer a que vêm:

Se se admite que o pensamento científico só progride por meio de suas próprias reorganizações, diremos que o obstáculo epistemológico aparece todas as vezes que - mas somente quando -uma organização de pensamento existente - já científica ou não - está em perigo (Lecourt, 1974, pp. 27-28).

Penso que a intensidade da transferência do paciente, mais do que criar um problema emocional para o psicanalista, traz a questão dos limites de sua técnica, parte do método que, por sua vez, está fundamentado pela teoria. Utilizo agora os conceitos da filosofia bachelardiana para introduzir algo da contribuição do pensamento de Pontalis a respeito dos destinos do encontro de Freud com a transferência de pacientes. Aponto, como se faz tantas vezes, para as transformações da teoria que tomam forma em "Recordar, repetir e elaborar" (Freud, 1914/1993) e em "Além do princípio do prazer" (Freud, 1920/1994). Em grande estilo, o pensador da psicanálise pergunta e responde: "O que é que vai, aparentemente, tudo mudar nessa maneira de proceder? A repetição" (Pontalis, 1990, p. 18).

Volto a Freud e recorto exemplos de como ele se refere ao que estou chamando de obstáculo epistemológico e se dispõe a lidar com eles:

Dissemos que o analisado repete em vez de recordar, e repete sob as condições da resistência; agora estamos autorizados a perguntar: o que, na verdade, repete ou atua? Repete tudo quanto a partir das fontes de seu reprimido abriu passagem até seu ser manifesto: suas inibições e atitudes inviáveis, seus traços patológicos de caráter [...]. O principal recurso para dominar a compulsão de repetição do paciente e transformá-la em um motivo para recordar reside no manejo da transferência [...]. Contanto que o paciente nos mostre pelo menos a solicitude de respeitar as condições de tratamento, conseguimos, quase sempre, dar a todos os sintomas da enfermidade um novo significado transferencial, substituir a neurose comum pela neurose de transferência, da qual pode ser curado em virtude do trabalho terapêutico (Freud, 1914/1993, pp. 153-156).

Lembremos que, em "Além do princípio do prazer", ele cita e retoma "Recordar, repetir e elaborar" e "a compulsão de repetição", que chega a chamar de "compulsão demoníaca" (Freud, 1920/1994, pp. 18-19), a qual se instala além do princípio do prazer, ou seja, antes deste.

Freud expõe suas indagações e a descoberta de uma pista:

De que modo se entrama o pulsional com a compulsão de repetição? Aqui não pode deixar de se impor a ideia de que estamos na pista de um caráter universal das pulsões (não reconhecido com clareza até agora, ou pelo menos não destacado expressamente) e talvez de toda vida orgânica em geral (p. 36).

Conhecemos alguns desfechos deste ensaio freudiano: a reformulação da teoria das pulsões e a concepção da pulsão de morte. Voltemos a Pontalis, à sua investigação no ponto em que surge o obstáculo epistemológico, ponto de ruptura: o analisando, em vez de rememorar, de elaborar, repete. Não faz o que se esperaria. Não diz, não simboliza - age. O autor afirma: "a repetição, mesmo se ela toma a via das palavras, é um 'agir'" (Pontalis, 1990, p. 68), e nos detém no reconhecimento de que haveria uma não memória, uma espécie de recusa de memória, algo bem diferente de amnésia. Salienta que o que se repete é a experiência dolorosa. O masoquismo, se adotado como hipótese, não traria a resposta. Na sequência, Pontalis reapresenta "Além do princípio do prazer", que, para ele, constitui "o texto mais aventureiro de Freud, o mais clínico também, sob seu encaminhamento especulativo" (Pontalis, 1990, pp. 68-69), com seus jogos de luz e sombra:

É lá, não há como contestar, que a estranheza da transferência nos aparece em plena sombra, muito mais do que à plena luz, no que há aí de "demoníaco", de profundamente unheimlich: o estrangeiro, desta vez, fica em nós e nos faz reféns (nous tient dans la demeure) (p. 69).

Embora seja difícil deixar de seguir a sequência destas passagens, por sua acuidade e beleza, limito-me agora apenas a indicar os quatro níveis de contratransferência de que o autor nos fala:

1. Empresa, empreendimento (Entreprise): o que faz de nós analistas e nos faz permanecer no papel;

2. Surpresas (Surprises): movimentos que percebemos em nós - ideias, emoções do paciente entram em ressonância com nossa história ou de nossa fantasmática, com um defeito de nossa couraça;

3. Presa ou ocupação (Prises): lugar que o analisando designa para nós e no qual procura nos manter (por exemplo, tirano, perseguidor, boca da verdade);

4. (Emprise)1: no exemplo tomado de Ferenczi, o analisando suscita, no analista, imobilização da psique, que pode acarretar também a do corpo. O analista desta vez é tocado, non au vif mais au mort (pp. 81-84).

Neste último nível, de particular violência psíquica, situar-se-iam as vivências de H. Searles com psicóticos, os objetos bizarros de Bion. Para Pontalis, é como se houvesse um tipo particular de reação passiva, na qual o analista é passivizado e o paciente transferiría "mais em nós do que sobre nós" (p. 85) a loucura, a potência destrutiva, os objetos maus. Aqui é sublinhado o gegen, o contra da contratransferência, condição em que o analista é contré (entendo como "contrariado" e "em face do contra") em suas capacidades, tornado incapaz e absorvido pela dor de ser apenas o que o paciente faz dele. Fica também no terceiro nível, no papel para ele designado. Se é deste modo que a transferência ocorre, no extremo de mudança de estado, a capacidade de migrar, que é da essência da análise, fica abalada.

Não tenho condições de reproduzir a complexidade do texto de Pontalis. Apenas acompanho agora o que apreendo em relação a uma oposição dinâmica entre a possibilidade de migrar, que faz parte da análise, e a possibilidade de paralisar o analista, que estão na contratransferência. Entre os dois protagonistas deve haver migração de uma representação para uma outra, de um sujeito na direção de um outro, de um mundo em um outro. O autor inspira-se em Freud, em suas migrações, e constata algo, a meu ver, de grande relevância - a própria palavra transferência é uma palavra que mexe, que migra como a coisa que ela quereria designar; tem afinidade com a capacidade migradora que está na própria análise. Afinal, a libido não cessa de se deslocar, de mudar de lugar e de objeto. A nossa disciplina, a psicanálise, seria essencialmente migrante.

Pontalis cita um artigo de Maurice Dayan, cujo título, como ele ressalta, é muito significativo: "A impossibilidade de se desfazer de si" (L'impossibilité de se défaire de soi), e observa que a análise só pode ser operante se o analista é capaz de se desfazer de si, de suas certezas, de suas teorias portáteis, de seu soi-analyste. Por outro lado, comenta o posicionamento de Winnicott, que dedica um de seus livros a seus pacientes, dizendo "que me ensinaram tudo". O autor vê, nessa posição, o que haveria de mais fundamental: "uma análise só encontra verdadeiramente sua eficácia se ela faz vacilar as referências (les reperes), modifica o regime de pensamento e, ousemos empregar a palavra, o ser do analista" (1990, p. 89).

A análise, na transferência, traria a nós, analistas, a experiência, totalmente ou até certo ponto, intransmissível, com um outro, que nos faria migrar. Não para dentro, mas na direção de uma terra, uma língua, um sistema estrangeiros. No tempo de início efetivo da análise, em que há o meu paciente, quando um outro mundo se tornou familiar (heimlich), estaria a especificidade da contratransferência. Pontalis constata: "O estrangeiro, a alteridade, está em nós. Era isto que eu visava na acepção que dou à contratransferência: transferência em nós do estrangeiro, do que é mais estrangeiro no paciente" (1990, p. 91).

Quero observar que, apesar de nos fazer tangenciar as determinações de aspectos intransmissíveis da contratransferência, em momento algum este pensador deixou de lado a função da fala na análise, e que, apesar de sua contribuição insuperável, admitiu: "Cabe às gerações seguintes efetuar em relação à contratransferência uma evolução comparável àquela que atribuímos a Freud em relação à transferência: obstáculo depois alavanca (ainda que as coisas, nós o vimos, sejam menos simples)" (p. 80).

O autor dá exemplos de contribuições que sugerem possibilidade de evolução, mas não se poupa de abordar os equívocos daqueles analistas que, ao considerar que a contra-transferência é análoga à transferência, concebem a sessão de análise como dois inconscientes, nem aqueles cometidos por Paula Heiman ter preconizado a utilização das reações emocionais do analista na interpretação.

A propósito, quero mencionar uma comunicação escrita pelo psicanalista Carlos Augusto Niceas. Ele retoma as críticas de Lacan a concepções de contratransferência, que, além de levarem ao abandono do fundamento da análise na fala, enveredaram por distorções do método psicanalítico. Reafirma que "Freud nunca promoveu uma relação de simetria entre o inconsciente do analisante e a contratransferência do analista" (Niceas, 2009, p. 2). Um dos exemplos que nos traz, daqueles que chamam "analistas da contratransferência", é Margaret Little, que teria introduzido "uma concepção de experiência analítica nos termos de uma reflexão mútua do paciente e do analista numa espécie de espelho onde o inconsciente de cada um se apresenta ao outro" (Niceas, 2009, p. 2). Reenvia-nos para o seminário sobre a angústia, em que Lacan comenta o caso Frieda, relatado por Little. Para o autor, o uso da contratransferência aí comentado deveria ser proibido, e ele reafirma que os analistas lacanianos são, de fato, proibidos de adotá-lo. Pontua seus comentários também com a carta de Freud a Ferenczi, em que ele teria afirmado o que o analista não devia fazer.

Parece-me ser agora o momento oportuno para retomar o desenvolvimento representado pela Teoria dos Campos, para qual a transferência é uma forma específica de apreensão do discurso humano. Seu autor, Fabio Herrmann, criou a noção de campo transferenciai, relacionada com "o método psicanalítico em operação na sessão de análise" (Herrmann, 2007, p. 23). Sem ignorar o fenômeno que pontua a história da teoria psicanalítica, mas transformando a conotação do conceito de transferência, ela restringe sua denotação ao método ativo na sessão e tem, pois, fundamentos para tirar de cena o contra, o gegen. "Como campo, tanto transferência como contratransferência perdem, portanto, a condição de serem tomadas como um conjunto de relações e de fenômenos" (p. 23).

Entendo que não se trata de ignorar nem de confirmar a universal tendência à transferência de que falou Freud. Não se visa nem a um saber que se possa objetivar em relação ao analisando nem a um sujeito abstrato universal. O que se busca é uma teoria para a clínica. Nesta, transferenciai é o modo de apreender o discurso, "que permite a revelação de seus valores inconscientes, por propiciar o surgimento de sentidos possíveis que aquele discurso compreende" (p. 24).

Leda Herrmann expõe perfis da "escuta peculiar por parte do analista" e dá exemplo de criatividade para operar em situação na clínica. Permite-nos entrever o efeito da disposição do analista para pôr "de parte o valor intencional consciente aprisionador da fala do paciente no assunto ou tema tratado pelo diálogo estabelecido entre os dois" (p. 24).

Uma vinheta clínica da autora descreve as características do discurso de uma paciente sua: "Ao relatar idéias ou acontecimentos, vale-se de um estilo fortemente telegráfico, deixando a mim a tarefa de transformar o telegrama em carta" (p. 25). Resumindo, mesmo contra a minha vontade, destaco o papel que a analisanda parecia designar para a analista, a obrigação de complementar seus ditos. Esta cria uma estratégia de comunicação, "um completar sem complementar", e escuta o que é omitido ou que não aparece no fluxo da fala da analisanda. E, como recurso técnico, completa seus telegramas, mas com lacunas e frases dubitativas. Acompanhando fases do processo, o leitor tem diante de si o desenrolar das intervenções, que vão possibilitar a ruptura de campo, ruptura do mesmo, que se repete, e a revelação do "terror à solidão" vivido pela analisanda - forma extremamente sutil de o medo estar presente, assim como autorrepresentações negadas, oculto pelo dizer incompleto. A autora comenta:

É a mobilização e presentificação dessas auto-representações negadas que, no decorrer do processo analítico, reencaminha o drama neurótico da repetição sintomática para a cura, entendendo por cura o estado de quem cuida do próprio desejo e o toma em consideração (Herrmann, 2007, pp. 30-31).

Neste final, permito-me um exercício, não mais que isto, usando minha exposição do medo que senti diante da fala que trazia a serra de marcenaria. Posso pensar em minha reação, fazendo de conta de que foi uma intervenção de acordo com o método. Pondo ênfase no que não aparece como foco, no que pode estar na penumbra, posso rebatizar o modo pelo qual fugi da pergunta assustadora. Como "estratégia de comunicação", pus entre parênteses o nome do objeto ameaçador, desviei para uma pergunta sobre companheiros de trabalho. Na lembrança que tenho, o que fiz, de fato, foi tentar, com a ajuda do imaginário do paciente, povoar a sala com outras pessoas, apelei para outras possibilidades de sua memória. Minha pergunta, de modo subjacente, pedia palavras que não denotassem coisas. Por outro lado, acredito que ele tinha medo de ficar sozinho e sei que fui tomada pelo medo de estar sozinha com ele.

Se eu soubesse mesmo o que estava fazendo, se tivesse uma estratégia desenvolvida a partir da teoria dos campos, talvez fizesse exatamente o que fiz. Afinal, em vez de ficar como vítima do descontrole violento que o paciente temia, porque não sabia o que seria capaz de fazer se se encontrasse só, fui transferida para outro campo, em outro papel. Sorrio quando me lembro de ter sido convocada como conselheira sentimental.

Escrevi sobre a sessão seguinte: "Sem jeito, o analisando me falou das dificuldades nas primeiras experiências de relacionamento sexual com a amada. Um garoto em confidências, desejando instruções" (Salles Gonçalves, 2002, p. 67). Se não sabia conscientemente o que, a sós comigo, seria capaz de fazer (ou cometer), ele queria saber o que fazer quando estivesse a sós com a namorada. Erotismo no campo, desse modo peculiar. Antes, em outras sessões, dera a entender que suas duas mulheres, primeira e segunda, eram autoritárias. Contudo, também me havia dado exemplos de comportamentos considerados socialmente adequados que aprendera com elas. Comigo, estava mostrando que queria aprender, mas que não era manso.

O encaminhamento dado à transferência pela Teoria dos Campos, sem desconhecer as polêmicas existentes nem a possibilidade de outras, resgata o método da psicanálise a cada sessão.

Espero ter sugerido, nestas reflexões, algo do que me vem sendo transmitido, e de que tenho podido usufruir para continuar me tornando analista. Nem a obra de Fabio Herrmann nem as de outros analistas que me ensinam e inspiram, como Pontalis e Winnicott, endossaram caminhos que fariam do analista presa do imaginário. Parecem-me ter, no Durcharbeiten, trabalhando através da estranheza e da desmedida e, sem desconhecê-las, ter mantido a busca pela justa medida, em cada caso.

 

Referências

Freud, S. (1993). Recordar, repetir y reelaborar. In S. Freud, Obras completas. (J. L. Etcheverry, Trad., Vol. 12, pp. 145-157). Buenos Aires: Amorrortu. (Trabalho original publicado em 1914).         [ Links ]

Freud, S. (1993). Lo ominoso. In S. Freud, Obras completas. (J. L. Etcheverry, Trad., Vol. 17, pp. 217-251). Buenos Aires: Amorrortu. (Trabalho original publicado em 1919).         [ Links ]

Freud, S. (1994). Más allá del principio de placer. In S. Freud, Obras completes. (J. L. Etcheverry, Trad., Vol. 28, pp. 3-62). Buenos Aires: Amorrortu. (Trabalho original publicado em 1920).         [ Links ]

Hanns, L. B. (1996). Dicionário comentado do alemão de Freud. Rio de Janeiro: Imago.         [ Links ]

Herrmann, L. (2007). Campo transferencial. Percurso, (38),23-30.         [ Links ]

Janine Ribeiro, R. (1984). Ao leitor sem medo: Hobbes escrevendo contra o seu tempo. São Paulo: Brasiliense.         [ Links ]

Lecourt, D. (1974). Pour une critique delépistémologie (Bachelard, Canguilem, Foucault). Paris: François Maspero.         [ Links ]

Niceas, C. A. (2009). A resposta contratransferencial. Texto não publicado. (Trabalho apresentado na Escola Brasileira de Psicanálise, Seção Rio de Janeiro, com o título "Os anos 1950: o inconsciente contratransferencial").         [ Links ]

Pontalis, J. B. (1990). Létrangeté du transfer. In J. B. Pontalis, La force d'attraction. (pp. 57-92). Paris: Seuil.         [ Links ]

Salles Gonçalves, C. (1996). Ódio e medo na contratransferência. Percurso, (17),35-40.         [ Links ]

Salles Gonçalves, C. (2002). Dois Leonardos. Percurso, (29),65-72.         [ Links ]

Winnicott, D. W. (1978). O ódio na contratransferência. In D. W. Winnicott, Textos selecionados - da pediatria à psicanálise. (J. Russo, Trad., pp. 341-353). Rio de Janeiro: Francisco Alves. (Trabalho original publicado em 1947).         [ Links ]

 

 

Correspondência:
Camila Salles Gonçalves
Rua Dr. Flávio Américo Maurano, 810
05656-020 São Paulo, SP
Tel.: (11) 3739-4464
camila_salles@uol.com.br

Recebido em 11.3.2013
Aceito em 21.3.2013

 


1 Nenhuma tradução dos termos parece-me convincente. Este último me parece ter o sentido de "ser agarrado", "submetido".

Creative Commons License