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Revista Brasileira de Psicanálise

Print version ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.47 no.1 São Paulo Jan./Mar. 2013

 

ARTIGOS TEMÁTICOS: MEDO

 

Do terror primário ao medo protetor: considerações sobre terror, pânico, fobia e medo em crianças

 

From primary dread to protective fear: some considerations on terror, panic, phobia and fear in children

 

Del terror primario al miedo protector: algunas consideraciones sobre terror, pánico, fobia y miedo en niños

 

 

Maria Thereza de Barros França

Psiquiatra, Psicanalista de crianças e adolescentes, Membro efetivo da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo SBPSP

Correspondência

 

 


RESUMO

A autora examina os afetos de pânico, terror, fobia e medo valendo-se de referências teóricas e ilustrações clínicas de análise de crianças. Estabelece correlações entre psiquiatria, neurociência e psicanálise. Sugere a possibilidade de representação como ponte transformadora do terror primário em medo protetor. Utiliza o conto Chapeuzinho Amarelo como fio condutor.

Palavras-chave: terror; pânico; fobia; medo; representação; figurabilidade; análise de crianças.


ABSTRACT

The author examines the affects of panic, terror, phobia and fear by means of theoretical references and clinical illustrations taken from child analysis. Some correlations between psychiatry, neuroscience and psychoanalysis are established. Representation is suggested as a possible bridge for the transformation of primary dread into protective fear. The tale of Little Yellow Riding Hood is used as a guideline.

Keywords: terror; panic; phobia; fear; representation; figurability; child analysis.


RESUMEN

La autora examina los afectos del pánico, el terror, la fobia y el miedo mediante referencias teóricas y ejemplos clínicos de análisis de niños. Establece algunas correlaciones entre la psiquiatría, la neurología y el psicoanálisis. Sugiere la posibilidad de la representación como un puente trasformador del terror primario en miedo protector. Utiliza el cuento de la Caperucita Amarilla como hilo conductor.

Palabras clave: terror; pánico; fobia; miedo; representación; figurabilidad; análisis de niños.


 

 

Era a Chapeuzinho Amarelo.
Amarelada de medo.
Tinha medo de ludo...
Já não ria.
Em festa, não aparecia...
Ouvia conto de fada
e estremecia.
Não brincava mais de nada,
nem de amare.
..
(Chico Buarque, 1980).

Cantigas de ninar, de melodia suave e conteúdo amedrontador, falam de cuca, bicho-papão, boi da cara preta. Contos de fadas são terríveis. A sereia ganha pernas à custa de sentir que pisa em cacos de vidro. O lobo mau devora a vovó e a Chapeuzinho.

Não que provoquem pavor - tão só o expressam, e oferecem assim a oportunidade de atenuá-lo. Emoção assustadora, o medo desde logo se coloca em nossa vida.

Associações me ocorrem: terror sem nome (Bion, 1987b); mudança catastrófica (Bion, 1966 apud Sandler 2005a); medo de colapso (Winnicott, 1994); claustrofobia (Meltzer, 1994); agorafobia na adolescência (Ferrari, 1996).

O modelo de arborescência proposto por Green (2001) na posição fóbica central ganhou figurabilidade (Botella, 2003) e lançou-me um desafio: encontrar uma linearidade linguística para viabilizar a escrita.

A psicanálise de crianças se iniciou com o caso do pequeno Hans, em que Freud (1909/1976) descreve o atendimento de um menino de cinco anos com sintomas fóbicos. De lá para cá a psicanálise evoluiu - o espaço antes ocupado pela histeria hoje pertence ao "pânico".

Distintos, tanto em termos quantitativos quanto no respeitante às defesas e ações mobilizadas e à qualidade de representações envolvidas, os afetos de terror, pânico, fobia e medo, em suas penumbras, se aproximam e se confundem.

Recorro ao Aurélio (Buarque de Holanda, 1986).

Terror: qualidade de terrível; grande medo.

Pânico: terror que vem do deus Pã; que foge ao controle racional.

Fobia: medo mórbido; aversão irreprimível.

Medo: sentimento de grande inquietação ante a noção de um perigo real ou imaginário.

 

Pânico

Deus dos rebanhos e dos bosques, Pã infundia em solitários viajantes um medo imenso, que escapava ao controle e à razão.

O termo "pânico" é utilizado de acordo com a nosografia psiquiátrica. Houve época em que, mais próximas, psiquiatria e psicanálise usavam os mesmos diagnósticos para as neuroses: histérica, fóbica (histeria de angústia) e neurose obsessivo-compulsiva (neuroses de transferência), e neurose de angústia (neuroses atuais). Atualmente, esses distúrbios fazem parte dos Transtornos de Ansiedade (dsm-iv, Diagnostic and Statistical Manual, elaborado pela Associação Psiquiátrica Americana, 1994).

A psiquiatria distingue os Ataques de Pânico (ap) da categoria diagnóstica de Transtorno do Pânico. Os AP recebem destaque: podem ocorrer em vários transtornos mentais. Caracterizam-se por um período de intenso medo e desconforto; início súbito e intensidade ascendente; sensação de catástrofe iminente e desejo de escapar. Devem se acompanhar de ao menos quatro de treze sintomas.

1. Palpitações ou taquicardia

2. Sudorese

3. Tremores ou abalos

4. Sensações de asfixia

5. Dor ou desconforto torácico

6. Náusea ou desconforto abdominal

7. Sensação de tontura, instabilidade, vertigem ou desmaio

8. Desrealização (sensações de irrealidade) ou despersonalização (estar distanciado de si mesmo)

9. Medo de perder o controle ou enlouquecer

10. Medo de morrer

11. Parestesias (anestesia ou sensações de formigamento)

12. Calafrios ou ondas de calor.

Diante do receio de se tratar de doença física, tais sintomas costumam levar pessoas aos serviços de saúde.

Descrevem-se três tipos de ap.

♦ Inesperados ou não evocados, sentidos como vindos do nada, característicos do Transtorno do Pânico. Recorrentes, são a eles que nos referimos quando falamos de "pânico".

♦ Ligados a situações ou evocados, em que se percebe claramente a ocorrência, a par da situação que os deflagra. Estariam relacionados às fobias (ansiedade ligada a objeto fóbico).

♦ Predispostos por uma situação, não demonstram relação direta com um estímulo deflagrador, pois nem sempre acontecem ou não se dão logo após o mesmo. Ocorrem nos Transtornos de Ansiedade Generalizada, em que há uma ansiedade excessiva acerca de diversos eventos (ansiedade livre).

Tinha medo de trovão.
Minhoca para ela era cobra.
E nunca apanhava sol
porque tinha medo da sombra...
Não tomava sopa pra não se ensopar...
Não falava nada pra não engasgar...
Então vivia parada,
deitada, mas sem dormir,
com medo de pesadelo.

E de todos os medos que tinha,
o medo mais medonho
era o medo do LOBO.
Um LOBO que nunca se via...

Mesmo assim a Chapeuzinho
tinha cada vez mais medo
do medo do medo do medo
de um dia encontrar o LOBO.
Um LOBO que não existia.

(Chico Buarque, 1980).

Transtornos de Pânico costumam se acompanhar do medo de outros ap, o que leva a modificações e restrições na vida das pessoas, na busca de evitar sua ocorrência. O início se dá entre o final da adolescência e a faixa dos 30 anos. Pequeno número de casos começa na infância.

O texto do dsm evidencia o empenho da psiquiatria em atingir categorias nosológicas precisas e a dificuldade para diagnósticos diferenciais. Não há como escapar de certa arbitrariedade nos critérios que delimitam os transtornos mentais: a cada dia surgem novos diagnósticos e o uso de psicofármacos cresce assustadoramente.

Um dos equívocos da psiquiatria é tomar os sintomas por doenças. A psicanálise permite perceber que o que se denomina por ap são crises de angústia, em que o afeto é a ansiedade, a vivência é de risco de morte iminente, acompanhada dos concomitantes físicos descritos.

Fruto de gravidez não programada, Júlio, oito anos, tem uma irmã de dez muito bem-sucedida. Com um ano, ele queimou a mão ao colocá-la sobre uma lâmpada. Há dois meses, em razão das cicatrizes, enfrentou uma cirurgia. Desde então, tem crises de falta de ar. Fez vários exames: todos normais. Diz ter medo de morrer. Aos dois meses rejeitou o peito. Até hoje não se alimenta bem. Estuda em escola bilíngue; é agitado, mas bom aluno. Não está conseguindo ficar na escola: chora; o pai o traz de volta. É apegado à mãe. No colo do pai, começa a ter uma forte crise de falta de ar, pede para ir para o hospital: tem medo que sua barriga comece a tremer.

Converso com eles. Oriento para a necessidade de imediata medicação, que interrompa a crise de angústia, e o encaminho para análise. Prescrevo também outro remédio, que busque prevenir crises dessa intensidade. (Mais tarde, a mãe liga: tão logo medicado, ele melhorara.)

Desnecessário dizer da dificuldade que a família, fóbica, teve em manter o acompanhamento clínico e a análise, da qual Júlio se beneficiava. Tudo foi logo interrompido.

Talvez recebesse ele o diagnóstico psiquiátrico de Transtorno de Ansiedade de Separação, mas é o vértice analítico que auxilia na compreensão do seu sofrimento.

Em que a neurociência colabora para o entendimento do que se passa nos AP? Para os organicistas - que prescrevem psicofármacos -, eles decorrem de lesões cerebrais, às vezes ligadas a problemas genéticos. Os cognitivistas os atribuem a uma percepção distorcida dos sinais de medo: indicam a terapia cognitivo-comportamental. A visão psicodinâmica recomenda a análise, em busca de intervenção estrutural, não simplesmente sintomática.

Para De Masi (2004), os ap são psicogênicos (ligam-se à perda de continência interna e da capacidade de simbolização) e deflagram uma reação neurobiológica automática, tanto que se observam os dois momentos das crises. No primeiro, a angústia é vivenciada. No outro, o corpo fala de sua agonia por meio dos sintomas neurovegetativos, que serão interpretados pela mente como catástrofe iminente, retroalimentando-se o circuito, cuja vivência estabelece um evento traumático para o indivíduo, que passa a viver atento ao menor sinal que o leve a "farejar" outro ataque. Uma vez deflagrado, o mecanismo segue seu curso, independentemente do controle racional.

Embora se instale abruptamente, existe aí um "preparo" anterior, envolvendo canais mentais associativos que entram em jogo (os ataques tendem a se repetir de um modo constante). Segundo o neurocientista Le Doux (1996 apud De Masi, 2004), os meandros inconscientes do medo compreendem três vias, pelos circuitos:

♦ primitivo do medo, ligado ao sistema límbico (compreende a amígdala), responde rápida e automaticamente a um estímulo ameaçador acionando inervações bioquímicas ou neurovegetativas, que resultam no aumento de hormônios (adrenalina, noradrenalina) e colocam o indivíduo em condições de reagir com luta ou fuga, necessários à sobrevivência. Essa via não se caracteriza pela especificidade.

♦ racional do medo, vai do córtex pré-frontal ao sistema límbico, cuja resposta é mais lenta, porém mais específica, permitindo uma avaliação criteriosa e realística da situação sentida como ameaçadora.

♦ reflexivo, ligado a uma noção mais clara de estar com medo e o porquê disso. Exemplifica-se com o estímulo visual de uma cobra, proveniente do córtex occipital, atingindo o hipotálamo, que faz uma decodificação por comparação do estímulo aparentemente perigoso com experiências aprendidas ou inatas - só então o estímulo vai para o córtex e para a amígdala.

Nos dois últimos, as vias envolvidas são mais longas e as respostas mais lentas. Muitas vezes, ocorre um curto-circuito com estimulação direta da amígdala, mesmo diante de falsos alarmes ou de estímulos vindos pelo que De Masi denomina imaginação catastrófica. Isso porque o AP resulta em terror somático, traumático. Armazenado na memória implícita, pode criar elos associativos e imagens visuais ou amnésicas, constituindo um estímulo condicionado ligado a situação de perigo prévia.

Condições emocionais, físicas e situacionais favorecem o surgimento dos Ataques: continente psíquico fragilmente estabelecido; doenças orgânicas preexistentes; situações de vida ansiogênicas ou deveras catastróficas.

Para a psicanálise, é clara a importância das relações iniciais do bebê com o objeto primário no desenvolvimento de um espaço mental, no interior do qual, processadas, as sensações perceptivas adquiram a qualidade de vivências emocionais, passíveis de serem pensadas, representadas.

Freud foi o primeiro a postular um esboço de modelo de continente (1920/1976) ao sugerir a existência de uma "crosta protetora" que exerceria essa função, impedindo que estímulos externos excessivos afetassem a mente.

Outros autores abordaram o tema.

Winnicott (1982) propõe o holding propiciado pelos cuidados maternos, a preocupação materna primária (1978) e os espaços potenciais (1975) viabilizando o rumo dos fenômenos transicionais no sentido da simbolização.

Bick (1987) sugere o modelo de uma pele psíquica: desenvolvida no contato com a mãe, funcionaria como um invólucro. Daria coesão aos aspectos não integrados da personalidade do bebê.

Meltzer (1984) considera as dimensionalidades ligadas ao tipo de identificação estabelecida com o objeto e à forma como espaço e tempo são vividos.

Bion (1987b) destaca a rêverie materna (ao transformar angústias e devolvê-las de modo suportável para o bebê) no desenvolvimento de um continente psíquico e de um aparelho para pensar os pensamentos. Quando isso falha, a frustração é intolerável: em lugar de um pensamento, o sofrimento será negado ou evacuado.

Tustin (1990) fala do contato do bebê com partes macias do corpo da mãe, resultando na formação de película protetora contra vivências de escoamento de conteúdo interno, e com partes duras em crosta protetora contra o terror sem nome.

Ogden (1996) sugere o desenvolvimento de um invólucro no interior do qual se processariam as conexões simbólicas, a partir das pré-simbólicas iniciais.

A ausência, falhas ou rupturas nesses processos de organização (resultando em perda de coesão) seriam vivenciadas como liquefação: escoamento de fluidos corporais sem algo que os contenha (Athanassiou, 1982). A vivência é de não-integração do self.

A ansiedade no "pânico" é como um tsunami: afoga a mente e alaga o corpo. Isso se evidencia em Júlio: gravidez não planejada (continente pouco receptivo); rejeição do peito quando bebê, ora mantida na forma de recusa alimentar (dificuldade de introjeção, talvez por não se sentir em contato com um bom objeto); o acidente e as cicatrizes na pele; a angústia de morte reativada pela cirurgia; o nível de exigência em relação ao seu rendimento - e a ansiedade a extravasar.

Quanto à angústia de separação, Meltzer (1984) sugere: quando não há um espaço mental tridimensional estabelecido de modo firme, na bidimensionalidade, do tempo circular, o self se sente coeso quando grudado à superfície de um objeto raso (identificação adesiva). As separações são vividas como mutilação, um arrancamento, com sérias ameaças ao self e ao objeto.

As ligações também são sentidas como potencialmente ameaçadoras - nesse sentido refiro-me à "família fóbica", com indiferenciação entre os membros e frágil subjetivação. Andam em "bloco", fechados para o mundo (vivido como ameaçador), seus membros "protegidos" de perigos externos e experiências transformadoras.

Muitas dessas famílias mal conseguem chegar a um analista. Quando chegam, não conseguem, às vezes, trazer a criança. Quando trazem, têm dificuldade em manter o trabalho. Em certos casos, talvez por não lidar com os conteúdos internos envolvidos, a psiquiatria soa menos ameaçadora. Ou, ao contrário, quando medo e preconceitos com relação à loucura são intensos, o psiquiatra passa a ser uma figura extremamente ameaçadora.

A família de Pedro, oito anos, em análise com uma colega, me procura para avaliação psiquiátrica. Ele não dorme bem, quer a porta aberta e a luz acesa; levanta à noite e vai conferir se os pais estão dormindo; tem sonambulismo, terror noturno. Pergunta sobre terremotos e tsunamis. Aos seis meses, apresentou um sopro cardíaco, que não se revelou significativo; aos dois anos, teve convulsão febril. A mãe quando grávida pensava no medo de esquecer o bebê ao sol, de não cuidar dele direito. Não conheci Pedro.

A neurociência ajuda a compreender a importância de um trabalho conjunto, medicamentoso e analítico. A utilização de psicofármacos, com indicação e uso criteriosos, contribui para romper o círculo vicioso da ansiedade, enquanto a análise segue seu curso na busca de promover o desenvolvimento mental, favorecer a capacidade simbólica e a modulação dos afetos, carentes de representação.

O trabalho de análise, especialmente nesses casos, tem como ponto de partida a construção de um continente psíquico, com o analista atento às manifestações dos estados mentais primitivos. É fundamental ajudar a família a desenvolver continência.

 

Fobia

E Chapeuzinho Amarelo,
de tanto pensar ...
de tanto sonhar com o LOBO,
um dia topou com ele
que era assim:
carão de LOBO,
olhão de LOBO,
jeitão de LOBO
e principalmente um bocão
tão grande que era capaz
de comer duas avós,
um caçador, rei, princesa,
sete panelas de arroz
e um chapéu de sobremesa...
(Chico Buarque, 1980).

Fobia: medo irracional, persistente, de objeto ou situação específicos (estímulo fóbico), ocasionando intenso desejo de evitá-los (DSM-IV). O indivíduo passa a se esquivar do estímulo (específico ou genérico) ou a enfrentá-lo com temor. Nas fobias, diferentemente do "pânico", é como se o medo "ganhasse cara"; além disso, os concomitantes somáticos são menos intensos e frequentes.

No caso do pequeno Hans, Freud (1909/1976) considera o complexo de Édipo como central à fobia: repressão dos impulsos sexuais dirigidos à mãe, da hostilidade ao pai e fixação da ansiedade em objeto distante do conflito.

No homem dos lobos (1918/1976), o sintoma fóbico estaria ligado ao complexo de Édipo, expresso no conteúdo latente do pesadelo com os lobos, a par (apresentava ele pensamentos obsessivos) de "defeito" residual de neurose obsessiva surgida na infância.

Torna-se claro que a fobia de Hans inseria-se nos fenômenos neuróticos. A do homem dos lobos, com os transtornos de pensamento existentes, envolveria outra ordem fenomenológica.

A ocorrência dos sintomas fóbicos se liga a várias situações psíquicas. Hoje se atenta ao funcionamento mental se processando em variados níveis, sendo que algum deles predomina de modo geral.

Ao chamar a atenção para a diversidade dos fenômenos desse universo, nota Trinca (1988) não existir na literatura preocupação com uma classificação nosológica e a diferenciação de quadros clínicos. Para ele, há, antes, uma personalidade fóbica, do que manifestações sintomáticas fóbicas.

Apoiado em pesquisa, enumera as características da personalidade fóbica: falha na constituição do continente primário; existência de "buraco negro" no centro da personalidade, que tende a engolir todo resquício de estabilidade; intolerância à dor; esvaziamento do self e "uso do outro" como proteção contra o desamparo original. Graves são as decorrências para a identidade que se constitui de modo frágil.

Luiza, nove anos, tem uma irmã de 14 (com a qual a mãe diz nunca ter tido problemas). Segundo os pais, Luiza tem medo de cachorros e de bichos em geral. Evita andar a pé nas ruas e ir à casa de amigas que têm cachorros. Não quer ir ao acampamento com a escola. O casal demorou para ter filhos. A mãe trabalha muito e seusfamiliares residem no interior (para onde as filhas vão quando em férias). Luiza nasceu de cesárea. Mamou no peito 40 dias (o leite secou); a mãe começou a ter dificuldades com ela aos dois anos pelas intensas crises de birra. Luiza não suporta frustrações. É perfeccionista e exigente consigo mesma. Quando sugiro vê-la, juntamente com a família, surgem referências a angústias de morte. O tumor na tireoide da mãe, há cinco anos. A sarcoidose pulmonar do pai (curado há um ano). A morte súbita (há quatro anos) da avó paterna. A angústia de separação da irmã mais velha. Percebo dificuldades familiares para lidar com agressividade e sexualidade. Junto à família, Luiza mostra-se mais viva do que "sozinha", em análise comigo. Dizia: "meu medo é surdo!" - ou seja, refratário a argumentos racionais. Meu contato com sentimentos de vazio eram frequentes. Ela adorava livros; conseguimos trabalhar com a utilização deles. Meus comentários referiam-se aos personagens e suas vivências nos relatos - só assim suportava ouvir de mim algo sobre si. Foi um meio de ajudá-la a sentirse mais tranquila e a enfrentar melhor situações que antes evitava por medo.

A teoria das dimensionalidades de Meltzer (1984) é um bom instrumento para a prática clínica (França, 2009). Nas fobias, haveria o predomínio de dinâmicas ligadas à tridimensionalidade, em que se fazem presentes os mecanismos de identificação projetiva, bem como outros característicos da posição esquizoparanoide (PS) de Klein.

Existiria um espaço mental, ainda que não firmemente constituído. Com a primeira filha, a mãe "driblara" suas dificuldades com as funções maternas. Já Luiza nascera depois do tempo: ela não conseguira amamentá-la nem lidar com suas crises de birra - e, ora, com a "fobia". (Coloco o termo entre aspas, tal como em "pânico", para me referir a aspectos considerados como "típicos" de cada situação em que esses sentimentos estão envolvidos, embora com relação à "fobia", o aspecto defensivo mobilizado contra o sentimento de medo venha sempre associado.)

A eleição de um objeto fóbico, perseguidor (PS), se deve ao uso de uma representação (cachorros e outros animais) que se presta à projeção de impulsos destrutivos, sentidos como ameaçadores para o self. No caso de Luiza, tanto a agressividade quanto a sexualidade eram assustadoras - com as mesmas dificuldades, a família não podia ajudá-la a lidar melhor com esses aspectos. Os sistemas defensivos acabam falhando, e não há como não entrar em contato com ansiedade.

A identificação projetiva dá a qualidade do controle buscado sobre o objeto, no sentido de as defesas funcionarem contra a desintegração do self. Luiza tenta controlar a família, seu desempenho; evita lugares, situações, sentimentos. Tudo tem de ficar muito distante dela - até minhas interpretações baseadas nos personagens dos livros. Creio que ainda não se constituíra, como Meltzer propõe, um "esfíncter mental", capaz de modular sentimentos e entradas e saídas do self.

Luiza sabe que seu medo é "surdo", irracional, mas de certo modo a escuta analítica possibilitou que ele fosse ouvido e transformado.

Meltzer (1994) relaciona a claustrofobia ao aprisionamento no interior do corpo do objeto materno - o claustrum - que não se constitui como um continente, de tal modo que as identificações projetivas são intrusivas. Resultaria em vivências primitivas e terríveis, segundo o compartimento (cabeça/peito, reto e genital) em que se confinem.

Ferrari (1996) postula que o primeiro desafio ao nascer é criar uma mente a partir das vivências físicas, eclipsando o corpo. Na adolescência, as transformações da puberdade trazem outro: desenvolver uma nova configuração mental em consonância com aquele corpo.

Relaciona ele os sintomas de anorexia e bulimia, frequentes nas adolescentes, às transformações corporais e às novas demandas. A anorexia seria uma defesa contra a claustrofobia (vivência de aprisionamento dentro do corpo), uma tentativa de controle. A bulimia estaria relacionada à agorafobia e à vontade de dilatar-se, expandir os próprios limites (necessidade de ampliação de espaço mental).

Clara, 12 anos, diz que ao entrar em seu quarto tem a sensação de algo estranho, fora de lugar, que a deixa muito brava. Sente como se uma grande almofada que tem lá ("fom") crescesse de modo assustador. Pede para a mãe arrumar. Não adianta. Ela então "surta": grita e chuta as coisas do seu quarto.

Em vez de um sintoma fóbico, Clara desenvolve um contrafóbico, com tonalidades psicóticas e maníacas: a explosão de raiva como tentativa (frustrada) de lidar com suas angústias (ante as transformações da adolescência) e retomar seu tamanho ou a configuração egoica original, infantil, vivências estas projetadas no "fom".

Green (2001), ao examinar os fenômenos fóbicos na posição fóbica central, foca a livre associação durante a sessão analítica e os obstáculos ao acesso às cadeias associativas que se criaram no psiquismo ou que não puderam se formar devido ao trabalho do negativo. O mesmo mecanismo de evitação, ativo intrapsiquicamente, se manifesta na sessão, como defesa contra angústias insuportáveis ("terrores diurnos", no seu dizer).

Utiliza ele o termo central (nem profundo ou superficial, nem primitivo ou atual), no sentido de nuclear a uma disposição psíquica de base, que se observa na análise de alguns pacientes "limites" (nem neuróticos, nem psicóticos), e fóbica, no sentido de todos os mecanismos defensivos mobilizados contra o processo investigativo.

Utiliza ainda imagens ligadas a árvores (tramas, ramificações, frutos, sombra, arbores-cência do sentido), na figuração de uma situação enraizada na força das pulsões destrutivas, as quais as defesas negativistas tentam afetar e que resultam nos desafios à inteligibilidade analítica (dentre elas, a clivagem de Freud seria a forma mais sutil de matar as representações).

O artigo é denso, belíssimo. Ao final do relato dessa experiência analítica, afirma que o luto (pela perda concreta da mãe) se desenrolou da maneira mais comum, e que ora podia se sentir um homem "quase" livre. Isso aponta no sentido de a fobia ser aprisionante e as possibilidades da posição depressiva (pd), de Klein, libertadoras.

Apresenta a ocorrência em adultos de sentimentos que costumam ser referidos à infância: "medos de aniquilamento, de angústias sem nome", ou de "tormentos atrozes (agonias)".

 

Terror e medo

Mas o engraçado é que,
assim que encontrou o LOBO,
a Chapeuzinho Amarelo
foi perdendo aquele medo,
o medo do medo do medo
de um dia encontrar um LOBO...
Foi ficando só com um pouco
de medo daquele LOBO.
Depois acabou o medo
e ela ficou só com o LOBO...

(Chico Buarque, 1980).

No terror, destaca-se a qualidade de um medo terrível - no medo, o sentimento de grande inquietação ante a noção de um perigo real ou imaginário. Podem ser de várias ordens: inatos, como certos medos atávicos (de animais peçonhentos); adquiridos, tanto a partir de experiências com perigos reais (medos realísticos) ou os que parecem irracionais, oriundos do nosso mundo interno (medos imaginários) e que de alguma forma se inscrevem em nossa memória.

Na literatura psicanalítica, a partir de Freud, vivências aterrorizantes constituem tema de vários autores.

Klein (1982) atribuiu importância à pulsão de morte, e nisso se aprofundou. Para ela, as principais fontes de ansiedade primária seriam o medo da morte, a ansiedade de separação e a frustração das necessidades corporais. Na PS, a relação se dá com um objeto parcial, perseguidor, que ameaça o self e mobiliza defesas. O "universo" resultante dos processos envolvidos na PS é formado por sentimentos esquizoparanoides: a angústia é de aniquilamento; as frustrações são insuportáveis; os mecanismos projetivos, dominantes; a fragmentação, a cisão, a idealização e a negação são evidentes.

Outros que se dedicaram ao estudo dos estados mentais primitivos trouxeram aportes para o tema do terror, catástrofes e breakdown.

Winnicott (1994) designa certas vivências primitivas como sendo agonias originais (o termo ansiedade seria fraco). Exemplo: retornar a um estado não-integrado, cair para sempre; perder o conluio psicossomático, o senso do real, a capacidade de relacionar-se com objetos (mobilizando cada uma defesas específicas).

O medo do colapso, colocado no futuro, seria algo já "experienciado" como agonia no passado, ocasião em que o ego não tinha maturidade suficiente para integrar a experiência. O sistema defensivo utilizado provoca prejuízos para a vida dos pacientes; o colapso ocor-reria pela falha desse sistema.

Ao relacionar o medo do colapso a falhas no ambiente facilitador, sugere ele a importância de que a agonia primária seja vivenciada no presente - na análise. Não como um colapso que justificasse uma internação psiquiátrica: como algo equivalente ao efeito que a recordação tem de levantar a repressão nos psiconeuróticos.

O paciente que teme o horror do vazio de significado organiza como defesa um vazio controlado: passa a não comer ou não aprender. Ao experienciar essa vivência na análise, pode voltar a comer e a aprender com prazer. As ideias de suicídio poderiam ser entendidas como a vontade de enviar o corpo para uma morte psíquica que já teria ocorrido - e talvez impedir o suicídio real.

Bion (1987a) propõe a função a como a responsável pela transformação dos elementos β (impressões sensoriais não elaboradas, utilizadas para identificação projetiva e acting-out), em α (experiências emocionais elaboradas, utilizadas para o pensamento onírico; simbolizadas, passam à ordem dos fenômenos das palavras, ideias e imagens visuais). Os pesadelos seriam uma indigestão mental, uma falha nesse processo (Bion 1987b).

Para o terror sem nome (Bion, 1987b), propõe o modelo do bebê sentindo medo de morrer. Ele dissocia e projeta seus sentimentos no peito. Na vigência do vínculo +K (knowledge), o peito atenua o sentimento de medo do medo de morrer, tornando-o suportável. O bebê pode reintrojetar parte de sua personalidade estimulante para seu crescimento.

Na vigência do vínculo -K, o bebê projeta, juntamente com o medo, sentimentos de ódio e inveja pela condição que tem o peito de não se perturbar, o que impossibilita uma relação comensal (de benefício mútuo, sem dano para nenhuma das partes). Desse modo, o bebê sente como se o peito tivesse retirado o elemento bom e valioso contido no medo de morrer, forçando para dentro dele um resíduo sem valor, o que o leva a vivenciar um terror sem nome.

Esse conceito é visto como uma experiência primária, talvez a mais primitiva, segundo Sandler (2005b). Para ele, talvez uma dotação humana, ligada à capacidade para a crueldade e à identificação projetiva e o medo de aniquilamento de Klein, quando na ausência de rêverie materna.

Com respeito à mudança catastrófica, Sandler (2005c) chama a atenção para o uso que Bion faz do termo catástrofe: configuração mental de súbita mudança ou perturbação, que destrói uma situação estabelecida e que não deve ser confundido com trauma. Alerta também para o fato de que as mudanças são sentidas como catastróficas; têm um caráter de resistência ao nascimento criativo, ligado à elaboração da pd, obstruindo o crescimento. Podem ser encaradas como resistência e a tentativa de negar mudanças naturais e a natureza da realidade psíquica. O sentimento de que uma catástrofe ocorreu se liga à frustração da busca do prazer, à intolerância à frustração, mas sobretudo à intolerância à falta de sentido, pela impossibilidade de suportar o não saber (o espaço necessário para aprender).

Para Gaddini (1981), tanto o fear of breakdown, de Winnicott, como a mudança catastrófica, de Bion, se aplicam ao paciente que, em análise, de repente recua diante da possibilidade de uma mudança. Ela aproxima também outros conceitos: preocupação materna primária de rêverie e holding de contenção.

Lembra que Bion desenvolveu muitos trabalhos baseados em sua experiência com psicóticos, e Winnicott com crianças - do que talvez resultem importantes diferenças entre os dois conceitos: Bion esteve às voltas com fenômenos de desintegração e Winnicott com os de não-integração.

Refere que Tustin (1981) propõe que, aterrorizado pela perspectiva de uma mudança catastrófica, o paciente estaria vivenciando a reativação do terror primário, tal como o bebê que pela primeira vez se depara com o nascimento psicológico, o processo que ocorre nos primeiros meses de vida, pela sua contenção por parte da mente da mãe. A falta de contenção, ou a noção prematura do bebê de ser separado da mãe, levaria à vivência de angústias catastróficas.

O lobo ficou chateado
de ver aquela menina...
sem o medo dele...
porque um lobo, tirado o medo,
é um arremedo de lobo.
É... um...
LOBO pelado.

Ele então gritou bem forte...
LO-BO-LO-BO
LO-BO-LO-BO-LO-
BO-LO-BO-LO...
Já não era mais um LO-BO
Era um BO-LO

(Chico Buarque, 1980).

Jonas, quatro anos, apresenta manifestações do espectro autístico. Com a babá, entra ansioso para mostrar o cartão que fez de Dia dos Namorados. Nele, juntos, desenhou o pai e a mãe recém-separados. Nisso, irrompe violenta tempestade. Raios iluminam a janela e trovões parecem ribombar ali dentro. Assustador. Ele sai correndo para a sala de espera, deixa o cartão sobre a mesa e aninha-se no colo da babá. Vou falar com ele. Conta que a empregada destruiu o trem que ele e a babá haviam montado. Passa algumas sessões sem conseguir entrar ("medo da sala"), até que um dia vem com a mãe. Falo para eles sobre o que se passou e ele aceita nosso convite para entrarmos os três e conferirmos. Uma vez lá, pudemos tratar da associação: sala/trovões e relâmpagos/separação/medo da destruição.

Essa é a possibilidade de transformação do terror primário: a condição de simbolizar, de representar o medo, de pensar, propiciada pelas experiências de rêverie, preocupação materna primária, holding, continência e outros conceitos formulados, favorecedores da constituição de espaço mental criativo, capaz de processar sensações, e dar sentido às experiências emocionais.

Transformado, atenuado, o terror pode se constituir no medo, um medo realístico, protetor, que se manifesta como a condição do indivíduo cuidar de si de modo adequado; ou, mesmo, a condição de conviver com os medos imaginados, sem que se necessite lançar mão de potentes sistemas defensivos para não se desorganizar.

Paulo, nove anos, tem dificuldades escolares. Cursa novamente o terceiro ano. Recusa-se a fazer tarefas e a obedecer a professora. Não tolera frustrações. Desde os três anos apresenta, quando ansioso, uma movimentação corporal (torcer de mãos). O pai morreu há dois anos. Deprimida, a mãe racionaliza sua dificuldade de trabalhar o luto: seria um desrespeito à memória do marido. Percebe-se uma relação fusional entre eles. O funcionamento mental de Paulo épredominantemente psicótico. Se bem que exiba outras condições, não apenas as manobras autísticas (principalmente no momento de encerrarmos a sessão), mas possibilidades mais organizadas, tal como verificamos em seu desenho. Paulo desenha bem. Ele faz, à direita, um arremedo de menino/Mickey (que denomina Nigey); à esquerda, um bicho com a cabeça e boca enormes, cheia de dentes, parecendo um jacaré (Orimos). No centro, em cima, voando, um bicho com um chifre que parece asa (Ena) e, embaixo, algo que se assemelha à parte de um tronco de árvore petrificada com raízes e, no lugar da copa, algo com formato de garras (Crocomélio). Associo-os aos seus aspectos: normal, neurótico, psicótico e autístico. Nas sessões, expressa seus medos por meio de desenhos. Faço um desenho, transformando o dele: atribuo aos elementos do desenho características mais realísticas. A partir do meu desenho, ele elabora outro, de tal modo que quando comparamos o desenho inicial com o último, são desenhos completamente diferentes. As características de estranheza, de monstruosidades ganham formas menos assustadoras.

Para Meltzer (1984), na tetradimensionalidade haveria um espaço mental, a noção do tempo linear, com a possibilidade de identificação introjetiva com o objeto (esta não mais uma identificação narcísica), e a satisfação residiria em manter o objeto e se relacionar com ele de modo criativo. Estamos aqui às voltas com o "universo" da pd de Klein e a condição de experimentar perda, culpa e necessidade de reparação.

Parece estranho relacionar a tetradimensionalidade a essa criança tão comprometida, o fato é que nosso funcionamento mental se apresenta de acordo com a composição caleidoscópica de diferentes aspectos mentais. No caso de Paulo, a relação fusional com a mãe e, depois, a forma como ela lidou com a morte do pai, evidenciam sua dificuldade de separação e de lidar com sentimentos de perda. Na sessão, foi possível a Paulo experimentar outras condições de relacionamento, favorecedoras de contenção das suas angústias primitivas e, com a ajuda da analista, simbolizá-las, não por representação de palavras, mas graficamente, e transformá-las.

 

Considerações finais

Chapeuzinho não comeu
aquele bolo de lobo...
Aliás ela agora come de tudo,...
Não tem mais medo de chuva,
nem foge de carrapato.
Cai, levanta, se machuca,
vai à praia, entra no mato,
trepa em árvore rouba a fruta,
depois joga amarelinha
com o primo da vizinha,...
e o neto do sapateiro
(Chico Buarque, 1980).

Embora os sentimentos de terror, pânico, fobia e medo se entrelacem, força pensar, para finalidades clínicas, numa distinção central, focada no tipo de representação possível (ou não). Podemos falar da ausência de representação no "pânico" e no terror. Na "fobia", a eleição de um objeto fóbico se caracteriza como um tipo de representação que mantém o medo à distância. Já o medo é passível de vários níveis e qualidades de representação.

Deparar com o irrepresentável nos coloca em situações angustiantes. Como desenvolver com nossos pacientes condições propícias de continência, que favoreçam a possibilidade de representação e a transformação dos afetos?

Se para muitos pacientes se apresenta o medo de que algo ganhe um significado, ou um novo significado, para o analista o terror é sentir o desamparo da não-representação. Quando todos os sistemas defensivos do paciente falham, abrem-se brechas para a análise prosseguir. Quando todas as tentativas de intervenção do analista falham, remexemos, para prosseguir, nosso baú de acervo onírico.

Tal o relato de Botella (2003), acerca da análise de uma criança de quatro anos com um precário sistema representacional. Devido a várias hospitalizações, se viu exposto a intensos estímulos sensoriais, com resultados desorganizadores pela impossibilidade de serem representados.

Ao final de uma sessão, em que demonstrou um tropismo para estímulos sensoriais, a criança expressou angústias despersonalizantes. A analista fala algo sobre a separação. Tenta outras interpretações. Mas o terror toma conta do menino - até que ela faz um ruído semelhante ao que ele fizera e diz: "Você tem medo do lobo?" E imita um lobo mordendo, arranhando. Embora ele lhe faça sinais para parar, consegue ir embora tranquilo. Na sessão seguinte, o episódio se repete. E a criança sai da sala imitando o lobo, brincando, prazerosamente, de assustar os outros.

Diante da absoluta falta de conteúdos, tanto manifestos quanto latentes, a evocação do lobo, figura universalmente terrorífica, representante da sexualidade infantil, emergiu de um trabalho psíquico da analista e serviu para promover o pré-consciente do menino, permitindo um esboço de condição representacional.

O autor compara tal figurabilidade-pesadelo aos contos de fadas. Relatados pelos adultos com ternura e afeto às crianças, amenizam seu conteúdo ameaçador, repleto de representações carregadas de pulsionalidade. E resultam na diminuição da pressão desorganizadora do contingente pulsional pré-representado.

Mesmo quando está sozinha,
inventa uma brincadeira.
E transforma em companheiro
cada medo que ela tinha:
o raio virou orrái,
barata é tabará,
a bruxa virou xabru
e o diabo é bodiá

(Chico Buarque, 1980).

 

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Correspondência:
Maria Thereza de Barros França
Rua Alice Macuco Alves, 141
05434-010 São Paulo, SP
Tel.: (11) 3022-3319
tfranca.tln@terra.com.br

Recebido em 27.2.2013
Aceito em 11.3.2013

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